Sem alardes, euro completa 25 anos ajudando na estabilidade do projeto europeu
Antes vista como vilã, moeda ganhou importância na consolidação do bloco e tem avançado gradualmente para cada vez mais países. Para 2024, as expectativas são de inflação dentro da meta, desemprego em baixa e juros reduzidos
Antes vista como vilã, moeda ganhou importância na consolidação do bloco e tem avançado gradualmente para cada vez mais países. Para 2024, as expectativas são de inflação dentro da meta, desemprego em baixa e juros reduzidos
Em fevereiro de 2020, a Bolsa de Milão sofreu queda histórica, abalada pelo avanço da Covid-19, que teve na Itália um de seus primeiros epicentros na Europa. Por sua vez, não fosse o euro, o efeito para a economia italiana, notória pelo alto nível de dívida e problemas fiscais, provavelmente seria ainda mais desastroso. O tombo de uma eventual lira italiana traria enormes dificuldades, assim como vários países enfrentaram pelo mundo. No entanto, o que veio neste caso foi um programa emergencial de compras de títulos (PEPP) do Banco Central Europeu (BCE) que ajudou a estabilizar as emissões do país. Ao longo de 25 anos, esta foi só uma das vezes que o euro e a política monetária comum garantiram estabilidade aos membros da União Europeia (UE).
O caso mais notório foi em 2012, quando o então presidente do BCE Mario Draghi proferiu o discurso Whatever it takes (custe o que custar). Em meio à crise das dívidas na zona do euro, Draghi deixou claro que a autoridade monetária iria assumir a responsabilidade comum pelas emissões, e juros disparados, dos membros mais frágeis do grupo. O momento é visto como um dos mais importantes do projeto europeu e para o avanço de uma política realmente comum no continente.
Menos questionado hoje, o euro era percebido por muitos como um verdadeiro vilão há uma década. A chamada “troika” – composta por BCE, Fundo Monetário Internacional (FMI) e Comissão Europeia – era apontada como responsável por cortes de gastos e programas de austeridade no sul do bloco. À época, a Alemanha era vista como intransigente e sem responsabilidade social, o que levou a chanceler Angela Merkel a sofrer com vaias e protestos em viagens pela Europa.
No momento de maior risco, veio a tentativa grega de sair da zona do euro, apelidada “grexit”. Uma das maiores dificuldades do projeto europeu é o fato de que quase toda crise é inédita e sem precedentes. A saída de um integrante poderia colocar em risco toda a ideia de política monetária comum. Ou poderia ser contornada sem maiores dramas. Ninguém sabia, mas a incerteza era suficiente para causar um forte choque nos mercados e levar tensões por semanas. De uma hora para outra, o então ministro das Finanças grego Yanis Varoufakis passou a ser a figura mais acompanhada da União Europeia.
A fricção entre os países do norte e do sul do continente avançava. Os chamados frugais, que seriam dotados de maior responsabilidade fiscal, acusavam os membros do sul de irresponsabilidade. Até as divisões religiosas entre protestantes e católicos eram evocadas, usando como base a noção do capitalismo weberiano, que justificaria que os países do sul teriam menor produtividade. Em 2017, o então presidente do Eurogrupo e ministro das Finanças holandês Jeroen Dijsselbloem afirmou que estes estados-membros gastavam seu dinheiro com mulheres e bebidas para depois ir pedir ajuda ao bloco.
Em uma reviravolta, seu sucessor no comando do Eurogrupo foi justamente um português. Mario Centeno assumiu a frente do organismo que reúne os ministros das Finanças da zona do euro em um momento em que a responsabilidade fiscal de Portugal era apontada como um exemplo no bloco. Wolfgang Schäuble, que comandava a economia alemã à época e nos tempos da “troika”, chegou a chamar Centeno de Cristiano Ronaldo das Finanças.
Mas, sem tempo para triunfalismos, a realidade se impôs, e mais uma vez provou que a visão de Jean Monnet de que a “Europa será forjada em crise e será a soma das soluções adotadas para essas crises” é a tônica de seu projeto. À pandemia logo se somou a crise da Ucrânia, em um desafio mais uma vez sem precedentes para a política monetária e fiscal do bloco. A disparada dos preços de energia foi somada aos pacotes de ajuda bilionários para apoiar Kiev. O resultado foi inflação nos maiores níveis da moeda comum, que levou a uma alta de juros duríssima pelo BCE.
No entanto, os países da UE fora da zona do euro sofreram muito mais com as consequências deste cenário. No caso da Hungria, a inflação ficou acima de 20% por quase um ano, estimulada por uma forte desvalorização do forint, que chegou às suas mínimas históricas. O cenário em Budapeste foi o mais grave, mas países como Polônia e República Checa sofreram com movimentos parecidos, contando com fortes desvalorizações do zloty e da coroa checa, respectivamente. Por outro lado, a partir de 2023, a Croácia passou a ser o vigésimo país a adotar a moeda, sinalizando uma expansão, ainda que lenta desde os primeiros 12 estados- membros, e fugindo da volatilidade da kuna.
Recentemente, até a Suécia, que tem o banco central mais antigo do mundo e sempre foi um dos integrantes da UE mais céticos ao euro, rechaçado por referendo em 2003, passou a avaliar a adoção da moeda ao observar sua inflação persistentemente mais alta. Segundo reportagem da Bloomberg sobre o tema em outubro, o economista sueco Lars Calmfors afirmou: “Entre 2010 e 2022 não recebi nenhum pedido para falar sobre a adoção do euro. Pela última contagem, esse número chega a seis ou sete por semana”.
É imperativo também tratar dos problemas, especialmente em um cenário de descrença generalizada com as instituições. As eleições para o Parlamento Europeu são a melhor oportunidade para os cidadãos se manifestarem sobre o projeto, e as sinalizações são de uma manifestação forte de rechaço, com provável avanço dos eurocéticos em junho de 2024. Uma das maiores dificuldades da UE sempre foi se justificar aos seus, e a sombra do brexit completa oito anos deixando isso bem claro.
Uma das principais insatisfações vem justamente dos mais jovens, que têm cada vez mais indicações de que seu padrão de vida será inferior ao das gerações anteriores. Neste caso, a alta dos juros foi refletida nas taxas de hipotecas, tornando a aquisição de imóvel algo impensável para uma parcela significativa da população. As autoridades devem levar as queixas com muita seriedade e buscar alternativas, mas é imperativo lembrar que o mesmo fenômeno é visto em partes da Ásia e nos Estados Unidos, muitas vezes com quadros ainda mais graves, não podendo ser inteiramente creditado ao espaço europeu.
Para 2024, as expectativas são de uma inflação convergindo para a meta de 2% do BCE, com os níveis de desemprego seguindo baixos para os níveis históricos, enquanto o PEPP é gradativamente encerrado, e os juros reduzidos. Por sua vez, em um mundo dominado por incertezas, todas estas perspectivas são ameaçadas por eventuais novas crises. Mas, o que os últimos 25 anos provaram é que, seguindo mais uma vez Monnet “nada é possível sem os homens; nada é permanente sem as instituições”, e o BCE estará lá para garantir a continuação e estabilidade do projeto europeu.
*Matheus Gouvea de Andrade é jornalista focado em temas internacionais baseado na América Latina. Trabalhou no Grupo Estado e publicou em veículos como BBC, Rest of World, Climate Change News, DW Brasil, Folha de S. Paulo, Piauí e Público, escrevendo a partir de Lisboa, Medellín, Lima, Buenos Aires e São Paulo
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Matheus Gouvea de Andrade é jornalista focado em temas internacionais baseado na América Latina. Trabalhou no Grupo Estado e publicou em veículos como BBC, Rest of World, Climate Change News, DW Brasil, Folha de S. Paulo, Piauí e Público, escrevendo a partir de Lisboa, Medellín, Lima, Buenos Aires e São Paulo
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