O sucesso e o legado de ‘Cidade de Deus’ depois de duas décadas
Apesar de ser alvo de críticas pela forma como retratou as favelas, o filme brasileiro é relançado no exterior e mostra que continua importante para a projeção internacional do país
Apesar de ser alvo de críticas pela forma como retratou as favelas, o filme brasileiro é relançado no exterior e mostra que continua importante para a projeção internacional do país
Por Stephanie Dennison*
Cidade de Deus, de Fernando Meirelles e Kátia Lund (2002), foi um grande sucesso no Brasil e no mundo, quebrando recordes de bilheteria para filmes em idiomas não ingleses em mercados como o do Reino Unido. Foi indicado para quatro Oscars, um recorde para um filme brasileiro. Para muitos, foi o primeiro filme a tentar capturar na tela uma versão “autêntica” da vida nas favelas do Brasil. De fato, dizem que colocou a palavra “favela” no dicionário inglês.
Ele também marcou uma mudança no estilo “global” de atuação que havia dominado as performances na tela grande, por meio do uso de atores não profissionais que contribuíram para os diálogos, numa tentativa de representação mais naturalista.
O filme marcou uma mudança significativa ao apresentar pela primeira vez em uma produção de grande orçamento (pelos padrões brasileiros) uma equipe composta quase inteiramente por afro-brasileiros. Duzentos atores foram selecionados para trabalhar no projeto do filme, a maioria dos quais eram adolescentes e jovens negros que moravam em favelas e não tinham contato prévio com o cinema.
O grupo serviria de base para o Cinema Nosso, uma cooperativa cinematográfica criada em conjunto com a O2 Productions de Meirelles, a principal empresa de produção por trás de Cidade de Deus. Cinema Nosso continua a ser uma importante produtora de talentos audiovisuais negros. Este é um trabalho de legado cinematográfico importante do tipo que ainda vemos com muita raridade. A cooperativa esteve envolvida em vários filmes importantes, incluindo o documentário Cidade de Deus – 10 anos Depois (2013). Co-dirigido por um membro da cooperativa (Luciano Vidigal), o documentário fornece uma visão sobre as vidas reais de muitos dos jovens envolvidos no filme original. De muitas maneiras, ele preenche as lacunas em Cidade de Deus, com seu foco em escolhas de vida pouco glamourosas e mundanas em comparação. Importante destacar que ele coloca maior foco em questões relacionadas à raça e preconceito racial, pouco abordadas em Cidade de Deus.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva abraçou completamente o filme Cidade de Deus, interpretando-o como uma demanda para chamar a atenção para a situação dos habitantes das favelas. Ele incorporou referências ao filme em sua campanha eleitoral presidencial em 2002. Ele e o Partido dos Trabalhadores interpretaram o filme como uma amostra da ausência do Estado nessas comunidades.
No entanto, nem todos estavam entusiasmados com a representação da favela no filme. O cineasta afro-brasileiro Joel Zito Araújo (O Pai da Rita, 2021) descreveu o filme como uma “modernização do estereótipo do negro como marginal”. Para vários críticos de cinema, como Ivana Bentes, a violência em Cidade de Deus parece ser gerada espontaneamente, sem relação com economia ou injustiça social. Como Bentes colocou, a favela no filme é reduzida ao “espetáculo consumível dos pobres se matando entre si”.
Da mesma forma, os habitantes da favela real Cidade de Deus não ficaram satisfeitos com a forma como sua comunidade foi retratada no filme, onde praticamente todos os moradores foram retratados como traficantes de drogas, e as mulheres estavam em grande parte ausentes. O rapper MV Bill, morador da Cidade de Deus, foi especialmente vocal em suas reclamações, criticando em particular a falta de respeito mostrada às comunidades das favelas pelos cineastas. O que aqueles que elogiaram Cidade de Deus deixaram de perceber, segundo o artista, foi o perigo de que o preconceito contra jovens negros marginalizados realmente aumentasse como resultado de como foram retratados no filme.
Como podemos explicar o interesse duradouro em Cidade de Deus? Para começar, é um filme tecnicamente muito bem feito, como testemunhado pela atuação e diálogos, resultado de horas de workshops e preparação dos atores; a cinematografia, pela qual César Charlone foi indicado para um Oscar; e na edição muito comentada – os detratores reclamaram de uma estética estilo vídeo musical da MTV, mas para milhões de outros, isso adicionou ao prazer de assistir. Este último ponto é importante: independentemente do que se possa pensar agora sobre a representação da vida na favela, Cidade de Deus é incrivelmente divertido.
Também vale ressaltar que o co-diretor Meirelles já era um produtor bem estabelecido e bem conectado e um diretor muito procurado de comerciais de TV internacionais, como os da Nike, que sabia como promover seu filme no circuito de festivais e prêmios internacionais, apesar de ele frequentemente negar isso. Depois de estrear em Cannes com grande aclamação, o filme foi adquirido e distribuído pela Miramax: a importância disso para a trajetória internacional do filme não pode ser subestimada.
Muito mudou nos 22 anos desde a estreia de Cidade de Deus em Cannes. Uma nova geração de cineastas negros, curadores e programadores emergiu no Brasil, e eles estão fazendo sérias incursões no circuito internacional de festivais e prêmios. Isso foi evidenciado em 2019 com a mostra Alma no Olho do Festival de Cinema de Roterdã, composto por 28 filmes feitos por afro-brasileiros, selecionados por Janaína Oliveira, e pela seleção do filme Marte Um do diretor afro-brasileiro Gabriel Martins para representar o Brasil no Oscar de 2023 (competição de melhor filme estrangeiro).
Hoje em dia, há uma consciência muito maior sobre questões relacionadas à representatividade e ao chamado “lugar de fala”, com a expectativa de uma gama muito mais ampla de experiências negras sendo representadas por afro-brasileiros atrás, assim como na frente, das câmeras.
Neste contexto, Cidade de Deus em 2024 pode parecer um anacronismo. Mas tais críticas ao filme geralmente não tiveram impacto no exterior, além do alcance limitado da academia. Os debates no Reino Unido sobre a necessidade de “descolonizar” as telas tendem a aceitar como garantidas as credenciais de filmes do Sul Global, raramente questionando a posição do diretor, por exemplo.
O novo trailer de Cidade de Deus destaca a classificação do filme no IMDB como o 25º na lista dos 250 melhores filmes de todos os tempos, sugerindo que o filme continua a encontrar novos mercados e audiências mais jovens. Será interessante acompanhar o sucesso das incursões da distribuidora Front Row nos mercados do Oriente Médio, onde o filme nunca foi lançado. A Arábia Saudita é atualmente o maior mercado cinematográfico da região do Oriente Médio e norte da África e está investindo pesadamente nas indústrias audiovisuais. Uma temporada bem-sucedida poderia abrir caminho para um maior interesse nos filmes brasileiros: bom para o negócio cinematográfico doméstico, mas potencialmente ruim para a imagem do Brasil no exterior, se as audiências apenas procurarem mais violência urbana e espetacularização dos corpos negros. Com os direitos do filme retornando a Meirelles em dois anos, e uma “versão do diretor” remasterizada já em andamento, para o bem ou para o mal, Cidade de Deus parece que vai continuar por perto por um bom tempo.
*Stephanie Dennison é colunista da Interesse Nacional e professora de Estudos Brasileiros da Universidade de Leeds, Inglaterra. Dirigiu a rede de pesquisa “Soft Power, Cinema and the BRICS”, que buscava investigar a relação entre atores não estatais nas indústrias culturais do Brics e estratégias nacionais de soft power.
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Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Stephanie Dennison é colunista da Interesse Nacional e professora de Estudos Brasileiros da Universidade de Leeds, Inglaterra. Dirigiu a rede de pesquisa “Soft Power, Cinema and the BRICS”, que buscava investigar a relação entre atores não estatais nas indústrias culturais do Brics e estratégias nacionais de soft power.
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