05 abril 2024

Estratégia para o Brasil na inserção ambiental: aposta na segurança multidimensional


Alberto Pfeifer

O mundo deste final de primeira metade do século 21 está marcado pela tendência de mais desigualdade e de maior fragmentação. É um mundo de derivação, de escape, de parte dos atores – em particular o ator principal, o Estado nacional – de um centro aglutinador. O ordenamento no sentido da convergência a um núcleo único constituiu o eixo lógico do pós-Segunda Guerra Mundial. Pautas comuns, tais como a dos Direitos Humanos, a de espaços compartilhados e acessíveis a todos, a do tipo da Organização das Nações Unidas e a das instituições econômicas legadas de Bretton Woods – o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, num primeiro momento; e o sistema GATT/OMC (General Agreement on Tariffs and Trade/Organização Mundial do Comércio), finalmente consolidado em 1995 –, perderam eficácia relativa, no sentido de uma governança multilateral pautada por normativas e regimes aceitos universalmente.

Ao mesmo tempo, percebe-se, hoje, a Terra como um planeta rondado por um novo espectro: o espectro da mudança do clima. Todas as potências do antigo mundo na Guerra Fria aliaram-se numa sagrada perseguição a este espectro: a sociedade civil e as elites, os sindicatos e os partidos políticos, a grande imprensa e as redes sociais, as forças armadas e as igrejas, as corporações transnacionais e as organizações sociais, as famílias e os cidadãos comuns. A mudança do clima, com elevação das temperaturas médias e maior frequência de fenômenos meteorológicos extremos, está associada à aceleração do aquecimento global e correlacionada ao aumento da concentração de carbono na atmosfera, atribuível ao modelo civilizatório intensivo em combustão de combustíveis fósseis e na milenar trajetória da humanidade de eliminação da cobertura vegetal, em particular das florestas.

Este breve artigo tentará conciliar, de modo esquemático e preliminar, a lógica subjacente aos fenômenos das crescentes desigualdade e fragmentação no plano internacional à elevação de importância de um novo tema – a variável ambiental. O desequilíbrio ambiental foi alçado, nos últimos dez anos, ao patamar de grande ameaça planetária, agravada pela ocorrência da pandemia de Covid-19. Em particular, buscar-se-á evidenciar como o Brasil pode tirar proveito de tal condição e, a partir do aproveitamento mais racional de suas disponibilidades ambientais, aumentar seu poder relativo.

Steven Pinker[1]documenta notáveis progressos em termos de bem-estar da humanidade graças aos avanços institucionais e organizacionais referentes ao conhecimento e à produção de derivados da matriz iluminista – os últimos 200 anos espelham avanços populacionais quantitativos e qualitativos. A espécie humana se expandiu e melhorou a qualidade de sua vida. Aumentou a população, a longevidade, o nível de educação e a renda média: o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) médio no planeta elevou-se de modo firme e continuado.  

Por outro lado, autores como Robert Cooper[2], já no início dos anos 2000, indicavam o surgimento de um Estado nacional e de uma ordem mundial pós-moderna, com a tendência à granularização e à atomização das ações dos atores políticos: o conceito de uma ordem estabelecida, baseada em normas, é questionado e contestado, em virtude da tendência de concentração de poder – desigualdade – na mão de uns poucos. São características desse mundo a crescente indistinção entre temas externos e domésticos, a irrelevância das fronteiras nacionais e a interferência mútua tolerada no primado dos temas nacionais.

Ordem baseada em regras e a rejeição ao uso da força

Contudo, outras duas características da pós-modernidade global, uma ordem baseada em regras e a rejeição ao uso da força, perderam consistência nesta segunda década do século 21. Prossegue, ainda que em grau decrescente, a interdependência econômica preponderante ao final da Guerra Fria, que teve seu ápice no primado da globalização dos anos 2000 – a da supremacia da economia de mercado e dos regimes democráticos como vias inequívocas e universais para o atingimento de maior bem-estar por toda e qualquer sociedade. A fragmentação contemporânea denota o ressurgimento do primado da lógica da busca dos interesses nacionais de modo autônomo e o decorrente ressurgimento dos conceitos de geopolítica.

A organização do espaço internacional mostra-se mais influenciada por forças centrífugas do que centrípetas, o que acarreta a fragmentação do ordenamento prevalecente até então dominante, qual seja, o do multilateralismo pós-Guerra Fria. A perda de efetividade da regulação positivada multilateralmente leva à uma paulatina transferência de poder do espaço da negociação cooperativa para o da ação unilateral, na qual os fatores de poder de cada Estado nacional e seu exercício incontrastado se sobrepõem à busca de soluções compartilhadas, na qual a força dos hegemônicos não se impõe por si só.

O grau de ordem reduziu-se: há menos ordem, mais desordem; menos hierarquia e mais anarquia; menor eficácia da regra, da norma, da regulação, da lei e do Direito. Há, então, a efetividade da imposição dos fatores de poder clássicos, no seu estado puro e bruto: o poderio econômico, o poderio estratégico-militar e o poderio político, a partir da vontade e da atuação direta de cada Estado nacional. Neste mundo, a ação coletiva passa a ser mais uma variável dependente do poder relativo de cada ator envolvido em cada caso específico – alinhamento ad hoc caracteriza os posicionamentos e aproximações – do que propriamente o perfilamento automático e compulsório a conjuntos axiológicos previamente determinados, devido à sua finalística mais benéfica a todos os envolvidos. O mundo é menos principista e mais pragmático.

O Brasil acumula possibilidades de atuar num mundo desordenado, fragmentado e desigual de modo incisivo, em seu favor e como supridor de bens públicos globais neste final de primeira metade do século XXI. De fato, não importa a geometria que se imponha no plano internacional; importa que o Brasil saiba identificar seus atributos e seja capaz de transformar potencialidades em ativos de alcance estratégico, por meio dos quais alavancará seu poder relativo e assumirá posição de maior relevo frente a seus pares.

Veja-se a temática ambiental, alçada ao centro das agendas e das ações em escala planetária.  Nos últimos cinco anos, desde a COP21 de Paris, em dezembro de 2015[3], quando foram definidas as Contribuições Nacionalmente Determinadas, ou NDCs[4], a tarefa de cada ator nacional ganhou dimensão e prazo: foi-se além dos aspectos retóricos qualitativos, para os compromissos quantitativos voluntários vinculantes.  A agenda ambiental tornou-se um comprometimento de todos em prol de um bem público global: a ação coletiva de manutenção da estabilidade do clima na superfície do planeta.

O papel do Brasil na seara ambiental é de flagrante contribuição positiva e de exemplo a seus pares de padrão de desenvolvimento similar. O Brasil detém tudo o que os outros não têm: cobertura florestal, nativa e plantada; biomas preservados; reservas hídricas; agricultura sustentável; geração de energia de fontes renováveis, com perfil elétrico limpo e combustível de tecnologia verde autóctone. O Brasil é um campeão mundial de sociedade ambientalmente sustentável.

O país, no entanto, governo após governo, falha quanto à óbvia constatação de seu inequívoco papel exemplar e do alinhamento das forças produtivas e políticas internas, no sentido de potencializar seu cacife externo: o Brasil põe-se no polo passivo de um tema em que está vocacionado a ser agente ativo; o Brasil iguala-se num mundo desigual, em que a grande maioria é devedora ambiental, e o Brasil é credor ambiental global.

O Brasil possui pontos de apoio próprios e, por conseguinte, tem a ganhar num mundo que migra para a proeminência da postura unilateral em oposição ao primado da cooperação multilateral até então vigente.  O Brasil encontra-se distanciado dos pontos de conflagração aberta ou potencial – Europa Oriental, Oriente Médio, Mar do Sul da China; enfrenta ameaças à sua soberania de volume reduzido e manejável, de natureza assimétrica; é o país sobranceiro de sua região, a América do Sul, por qualquer dimensão que se observe; e é preponderante nos espaços lindeiros do Atlântico Sul e da América Latina.

A Segurança Multidimensional como fornecedora de bem público

Neste mundo de desigualdade e fragmentação crescentes, a variável ambiental sobressai-se em importância relativa. A motivação varia, mas o objetivo é comum: conter o aquecimento global. No Ocidente, ressalta a convicção quanto aos princípios da preservação e da conservação. As economias emergentes agem movidas pelo pragmatismo quanto ao enfre ntamento das consequências daninhas e a contenção de custos associados à mudança do clima: o tema ambiental passa a ser limite e um ônus ao próprio desenvolvimento. O principal meio é a redução das emissões de carbono e/ou a correspondente compensação, através de sua fixação. 

A maior parte dos países é devedora ambiental, conforme os NDCs assumidos desde a COP de Paris, em 2015[5]. Os países do G20 – grupo que o Brasil preside entre 01/12/2023 e 30/11/2024 – perfazem cerca de 85% do Produto Interno Bruto mundial, 80% do comércio internacional e uns dois terços da população do planeta; juntos, são responsáveis por 75% das emissões de gases de efeito estufa. Os países industrializados do G20 (Estados Unidos, Canadá, Japão, Reino Unido, Alemanha, França, Itália) são os maiores responsáveis pelo estoque de emissões de carbono e pela devastação das coberturas vegetais originárias. EUA e União Europeia, em conjunto com China, Índia e Rússia, perfizeram cerca de 60% das emissões de gás de efeito estufa, em 2023[6].

O Brasil é posto como o sexto maior emissor, muito mais em função da perda de cobertura vegetal – deflorestação – do que em função do uso de energia. No G20 e no mundo, o Brasil é o segundo colocado em cobertura florestal, com quase 500 milhões de hectares (ha), atrás apenas da Rússia, que detém 815 milhões de ha de florestas. Em seguida vêm Canadá, EUA e China, com, respectivamente, 350, 310 e 210 milhões de ha cada. Indonesia, Índia e México seguem, com 92, 72 e 66 milhões de ha, respectivamente[7]

Em diversos temas ligados à disponibilidade de recursos naturais estratégicos, o Brasil lidera o mundo. A matriz energética brasileira é a mais limpa do G20, com cerca de 50% oriunda de fontes renováveis, em particular hidrelétrica e biocombustíveis[8]. O Brasil possui a maior reserva hidrológica do planeta, com 5,661 bilhões de metros cúbicos: a Índia tem um quarto disso e, a China, cerca de metade. O Brasil é o campeão mundial no ranking de biodiversidade[9], seguido por Indonésia, Colômbia, China e México.

O Brasil ocupa o primeiro lugar em desenvolvimento tecnológico e produtivo agrícola em zonas tropicais. É o maior exportador mundial de produtos agrícolas, com 86,1 milhões de toneladas. É o segundo maior produtor de biocombustíveis, atrás dos Estados Unidos, embora com maior consumo per capita. Tomando-se em conta a disponibilidade de recursos naturais e de seu aproveitamento tecnológico de parte do Brasil, propõe-se que o país adote uma estratégia externa, ampla e permanente, de ofertante de bens públicos globais. 

Bem público tem duas características: não excludente e não rival

Bem público, define a teoria econômica, tem duas características principais: ser não excludente e não rival. Não excludente significa que é oneroso ou impossível para um usuário excluir outros de se beneficiarem do bem. Não rival significa que quando uma pessoa utiliza o bem, não impede outros de o utilizarem também. Bens públicos geram externalidades positivas. Bens públicos globais são aqueles de dimensão planetária, que beneficiam todos os habitantes do mundo[10].

A Floresta Amazônica pode ser considerada como um bem público global, já que o consumo de seu efeito sobre o clima do Planeta, mantida conservada, é apropriado por todos, sem exclusão de ninguém, e gera externalidades positivas. A característica de bem público global pode justificar que se lancem mão de mecanismos de ação coletiva de parte da comunidade global de modo a preservar bens públicos globais – algo que atentaria à soberania brasileira.

Como, então, aproveitar-se deste e de outros bens públicos globais ofertados pelo Brasil, com benefício ao interesse nacional brasileiro, mantendo nossa soberania, promovendo o desenvolvimento econômico, o bem-estar e a justiça social, ou seja, reduzindo desigualdades e a fragmentação ambiental mundial?

Uma chave explicativa, de impulso à inserção internacional do país, é a da conversão da detenção de recursos ambientais com características econômicas –em que o Brasil é acusado de acumular passivos ambientais e ônus de suas preservações – no conceito de segurança multidimensional, por meio do qual o Brasil se consolida como ofertante de bens públicos globais de diversos perfis, ligados ao tema amplo da Segurança de suprimento ao planeta em geral e a cada país e sociedade demandante de tais tipos de Segurança.

Numa primeira varredura, o Brasil poderia pleitear-se e formatar uma estratégia ampla e de longa duração – grosso modo, uma Grande Estratégia – na qual todos os recursos disponíveis servem à promoção do interesse nacional. O mundo atual assiste ao incremento da lógica geopolítica para explicar as disputas de poder entre os estados nacionais. O Brasil não tem tradição nem propensão à utilização ofensiva de seu poder militar, nem do uso da força para a consecução de seus objetivos externos. Mas é fato que a detenção de recursos escassos de cunho estratégico, ligados à disponibilidade e à capacidade de extração de riqueza dos recursos naturais ambientais, torna o Brasil suscetível, no longo prazo, ao assédio de parte de competidores externos. 

Apresentar-se como fornecedor de Segurança Multidimensional coloca o Brasil no plano dos países indispensáveis para o equilíbrio ambiental e o bem-estar social do planeta. Constitui-se num recurso de poder primordial num mundo ditado pela lógica da geopolítica e pela prioridade da questão ambiental. O Brasil será um ofertante de Segurança Ambiental lato sensu; de Segurança Florestal; de Segurança Hídrica; de Segurança Alimentar; de Segurança Energética, de Segurança Territorial; de Segurança da Biodiversidade; enfim, de todo e qualquer dimensão de segurança nacional e planetária que dependa da gestão de recursos ambientais escassos dos quais o Brasil seja detentor de tecnologia e capacidade produtiva, desonerando a necessidade de países escassos em tais atributos terem que, diretamente, buscarem tal suficiência.

O Brasil se aproveitaria, no plano econômico e político, e se apropriaria, no plano das relações exteriores, das vantagens comparativas e competitivas na produção de bens e serviços ligados aos meios ambientais naturais, ao oferecer e garantir esse suprimento ao mundo, gerando eficiência econômica e bem-estar social por todo o planeta. No caso da segurança alimentar, por exemplo, o aquecimento global leva a uma tropicalização do mundo; o Brasil, detentor da melhor tecnologia de produção agrícola tropical, tenderá a beneficiar-se e a situar-se cada vez mais como país-chave no suprimento de Segurança Alimentar e de demais produtos agrícolas, ampliando a atual liderança exportadora no setor. Segurança Hídrica, associada ao acesso e uso de água potável, igualmente pode ser considerada suprida em parte por um país capaz de oferecer produtos intensivos em água – agricultura e pecuária, por exemplo – poupando ao país carente o custo de acesso próximo. 

Cabe ao Brasil organizar e apresentar ao mundo este conceito de Segurança Multidimensional, ligada à disponibilidade nacional de recursos ambientais e de sua capacidade de transformá-los em bens e serviços acessíveis, como um bem público global, situando-o no centro das soluções globais quanto à temática ambiental, dotando-o de maior poder relativo, melhorando sua inserção internacional e alcançando o objetivo precípuo de uma grande estratégia, que é a garantia da soberania nacional e do bem-estar de sua população. A oportunidade está dada, durante a presidência do G20 e da organização da COP30, em 2025. Basta a transformação de um atributo ambiental de valor econômico em um fator de poder e de sua utilização racional de parte das autoridades encarregadas.   

Referências bibliográficas

2.COOPER, R. The Breaking of nations. London: Atlantic Books, 2003.

DEN ENZEL, M. et al. Are the G20 economies making enough progress to meet their NDC targets?   Energy Policy, n.126, p.238-250, (2019). Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.enpol.2018.11.027.

EUROPEAN COMMISSION. Emissions database for global atmospheric research (EDGAR) Disponível em:   https://edgar.jrc.ec.europa.eu/. Acesso em: 21 mar. 2024.

WHAT is the global biodiversity index. Disponível em: https://theswiftest.com/biodiversity-index/. Acesso em: 21 mar. 2024.

INTERNATIONAL Energy Agency (IEA). Disponível em: https://www.iea.org/data-and-statistics/charts/total-energy-supply-by-source-g20-countries-2019. Acesso em: 22 jul. 2021.

GUBER, Jonathan. Public finance and public policy, 4thed. Worth Publishers, 2012. Capítulo 7.

FOOD and Agriculture Organization of the United Nations. Forest area. Disponível em: https://data.apps.fao.org/catalog/dataset/forest-area-1990-2020-1000-ha/resource/285cf62f-d4cf-436f-acd8-b14954386de3. Acesso em: em 20 mar. 2024.

1.PINKER, Steven. O novo Iluminismo: em defesa da razão, da ciência e do humanismo. São Paulo: Cia das Letras, 2018.


[1]. Pinker, S. “O Novo Iluminismo”.

[2]. Cooper, R. “The Breaking of Nations”.

[3].
O Acordo de Paris é um tratado internacional legalmente vinculante sobre mudança do clima.  Foi adotado pelos 196 membros da Conferência das Nações Unidas em Mudança do Clima (COP21) em Paris, França, em 12 de dezembro de 2015, e entrou em vigência em 4 de novembro de 2016.

[4]. NDC é o acrônimo do inglês National Determined Contributions.

[5]. den Enzel, M. et al, p. 239.

[6]. Emissions Database for Global Atmospheric Research (EDGAR), 2023.

[7]. Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO)

[8]. International Energy Agency (IEA), 2021.

[9]. Global Biodiversity Index, 2022.

[10]. Gruber, J. 2012, chapter 7.

ALBERTO PFEIFER é coordenador do Grupo de Análise de Estratégia Internacional, da Escola de Segurança Multidimensional e do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo, é doutor pela USP, mestre pela Fletcher School e colaborador do Instituto de Estudos Avançados da USP

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