Tuvalu quer ‘migrar’ para o metaverso para sobreviver às mudanças climáticas
Nação diminuta no meio do oceano Pacífico é uma das mais ameaçadas pelo aumento do nível do mar provocado pelo aquecimento global e pode sucumbir se o aumento da temperatura do planeta passar de 1,5ºC
Por Vinicius Gomes Melo
No primeiro dia da 28ª Conferência do Clima da ONU (a COP28), em Dubai, Naomi Maheu, uma jovem de sorriso fácil usando uma tiara de flores polinésia, fazia uma apresentação com uma maquete desmontável de Funafuti, capital de Tuvalu, um país-arquipélago do Pacífico Sul. Com a ajuda de projetores e dados científicos, ela demonstrava como uma elevação do nível do mar equivalente a uma régua escolar de 30 centímetros afetaria a cidade.
Aos poucos, o modelo era tomado pela cor azul, representando o avanço do mar sobre a ilha. Em determinado momento da apresentação, Naomi pausou por alguns segundos e se desculpou. “Eu fiquei um pouco emocionada”, disse, apontando para o modelo reduzido de sua cidade. “Porque as partes que agora estão em vermelho são as casas que foram alagadas. E a minha casa também está em vermelho.”
Sem colinas nem montanhas, com uma altura média de apenas dois metros acima do nível do mar, Tuvalu também é conhecido como um dos primeiros países que poderão desaparecer por conta da elevação do nível do mar provocada pelo aquecimento global. Cientistas estimam que suas ilhas possam ficar submersas em algumas décadas.
Sob o risco de desaparecer, engolido pelo oceano, também pode ser o primeiro país do planeta a se tornar uma versão digital de si mesmo, de migrar da existência física para uma virtual, no metaverso.
Em sua versão real, Funafuti tem o formato de um bumerangue, cujo trecho mais extenso possui apenas 400 metros e é o lar para pouco mais que a metade dos 12 mil habitantes de Tuvalu. Ali não há caixa eletrônico nem máquinas de cartão de crédito. Praticamente todos se locomovem em motos e scooters, de avós a adolescentes. As casas, em geral com dois quartos e um banheiro, chegam a abrigar até 15 pessoas, e é possível entrar em contato com o primeiro-ministro indo até a residência oficial sem grades e bater em sua porta.
O crime quase inexiste, sendo desordem pública por excesso de álcool a razão predominante para detenção. As principais fontes de renda de Tuvalu são a concessão de pesca estrangeira em suas águas e o licenciamento do seu providencial domínio de internet: “.tv”. Cerca de 440 mil sites, incluindo uma das maiores plataformas de streaming, a Twitch, utilizam o sufixo “.tv”.
O único meio de transporte entre suas 124 ilhas é através de barco e só há um voo comercial no país, vindo de Fiji, e apenas três vezes durante a semana – o que também contribui para que Tuvalu mantenha o título de “país menos visitado do mundo”.
Assim, nos fins de tarde, quando o Sol oferece uma trégua ao cair no horizonte da lagoa Te Namo, a pista de pouso do aeroporto se converte em praça pública. Crianças correm e pedalam de um lado para o outro, jovens praticam esportes, grupos comunitários se organizam, amigos e familiares se reúnem para jogar conversa fora. Quando a noite se instala, namorados e amantes encontram ali, a céu aberto e estrelado, um pouco de privacidade para o romance.
O cenário idílico, no entanto, convive com o de um filme-catástrofe. Basta uma chuva forte e uma maré mais alta que o usual para as águas ao redor de Funafuti inundarem casas e salas de aula, e a assombração climática retornar, trazendo com ela a pergunta sobre o que será do futuro de Tuvalu.
“Áreas que dificilmente eram inundadas, ou somente [passavam por isso] num pico da maré elevada, já estão sofrendo mais frequentemente [com inundações]”, diz Richard Gokrun, diretor-executivo da TuCAN (Tuvalu Climate Action Network). “A elevação do nível do mar já teve um grande impacto na nossa segurança alimentar, segurança hídrica, a economia, o nosso estilo de vida social, e outros impactos culturais. Quanto mais emissões na atmosfera, [mais] aumentará também o nível do mar.”
Um estudo da Nasa, a agência espacial dos EUA, apontou que o nível do mar em Tuvalu está quase 15 cm mais alto do que há 30 anos, com uma taxa média de aumento de 5 milímetros por ano. Esse nível de elevação é uma vez e meia mais rápido do que a média global.
“Nós entendemos que cada pedaço de terra tem uma memória. E quando ele é levado pelo mar, ela se perde”, reflete Talua Nivaga, representante de Tuvalu na Rising Nations Initiative – programa da ONU de capacitação de jovens lideranças nas ilhas do Pacífico para criar uma mobilização internacional de apoio aos países e comunidades que estão na linha da frente da crise climática.
Em suas viagens internacionais, Nivaga costuma falar sobre a crise existencial que Tuvalu enfrenta, mas conversando com a reportagem em sua terra natal, ele revela o impacto mais profundo sentido pelo seu povo. Há uma relação íntima da população com as praias, com a lagoa – são parte da infância de todo mundo, são os locais em que as pessoas se unem às noites para cantar, brincar, comer juntos. “Além de memórias, todas essas coisas são riquezas.” Mas o mesmo mar que lhes é tão familiar, agora é a maior ameaça que enfrentam.
Internamente também há uma sensação de que o resto do mundo não está sensível à situação de Tuvalu. “As grandes potências estão queimando combustível fóssil, emitindo gases estufa e relaxando em suas casas, enquanto nós enfrentamos as consequências climáticas”, afirma o ativista Gokrun.
A maioria dos países do mundo concordou, em 2015, pelo Acordo de Paris, a reduzir suas emissões a fim de tentar conter o aquecimento global. O tratado estabelece como meta que o aumento da temperatura fique bem abaixo de 2ºC. Mas, justamente por pressão dos países-ilha, como Tuvalu, foi acrescentado um adendo: que se esforce para que essa elevação não passe de 1,5ºC em relação aos níveis pré-industriais, o limite considerado o mais seguro, especialmente para essas nações mais vulneráveis à mudança do clima.
A ciência já mostrou que esse 0,5 grau pode fazer toda a diferença. Um planeta 2ºC mais quente terá consequências muito mais danosas. No entanto, apesar do acordo, nos últimos oito anos as emissões mundiais continuaram crescendo e o mundo perigosamente já se aproxima do 1,5ºC. Esse marco foi ultrapassado várias vezes nos últimos 12 meses, apesar de ainda não ser considerado um aquecimento sustentado nessa temperatura. Daí o desespero do governo tuvaluano em buscar alternativas heterodoxas.
O ministro do futuro
Em 26 de janeiro de 2024, uma sexta-feira, os cidadãos foram às urnas escolher seus novos representantes no parlamento. Nas eleições do país, disputam-se dois assentos para cada um dos seus oito grupos de ilhas. A partir do momento em que se confirmam os vencedores, dois barcos deixam o cais da capital para buscar os eleitos em suas respectivas ilhas – de acordo com a lei tuvaluana, todos os candidatos devem estar em seus distritos eleitorais no dia da votação – e levá-los à Funafuti, onde nos dias subsequentes elegerão entre si quem será o primeiro-ministro de Tuvalu.
Neste ano, porém, essa escolha levou quase um mês para ser realizada. Alguns candidatos eleitos se viram impedidos de chegarem à capital por várias semanas devido às péssimas condições climáticas. Ondas de até 4 metros tornavam a travessia muito perigosa para os barcos, e uma combinação de ventos fortes e marés altas que inundaram partes da cidade, fizeram com que o país continuasse a ser governado pelo então primeiro-ministro Kausea Natano, que já estava na capital por ter concorrido novamente por Funafuti, mesmo não tendo conquistado a reeleição.
Outro parlamentar que também se encontrava na ilha era Simon Kofe, provavelmente o rosto político mais conhecido de Tuvalu – ao menos para o resto do mundo. Em 2021, quando era ministro da Justiça, Comunicação e Relações Exteriores, Kofe começou a chamar atenção internacional quando um vídeo seu foi exibido durante a COP26, realizada em Glasgow, na Escócia.
Vestindo terno e gravata, e com as bandeiras de Tuvalu e da ONU postadas ao seu lado, Kofe falava em um lugar aberto. “Em Tuvalu, vivemos a realidade das mudanças climáticas e da elevação do nível do mar. Enquanto vocês me observam hoje na COP26, não podemos esperar por discursos quando à nossa volta o mar está constantemente a subir.” Conforme a câmera começa a se afastar, revela-se que o ministro está dentro do mar, com a água nos joelhos.
Na ocasião, ele deu mais uma declaração que passou meio despercebida. “Estamos também adotando ferramentas e plataformas digitais inovadoras para construir uma nação digital. Novos sistemas digitalizados permitirão que continuemos a funcionar plenamente como um Estado soberano, independentemente da perda de terras ou de relocação”.
A fala só ganharia mais explicações no ano seguinte. Na COP27, no Egito, mais uma vez a delegação de Tuvalu exibiu um vídeo do ministro. Parecia ser uma reprise do anterior: “Falo novamente do meu país, de uma pequena ilha que provavelmente será um dos primeiros pontos de Tuvalu a ser submerso pela elevação do nível do mar. Desde a COP26, o mundo não agiu, e por isso nós, no Pacífico, tivemos que agir”, disse.
Ele estava numa praia, ao fundo era possível ver uma faixa de areia e folhas de palmeiras. Mas então os sons do vento, dos insetos e das gaivotas e do gentil balançar das ondas ganham a companhia de uma ameaçadora trilha sonora, que cresce em volume enquanto o foco da câmera volta a se distanciar dele.
“À medida que a nossa terra desaparece, não temos outra escolha senão nos tornarmos a primeira nação digital do mundo”, disse. “Nossa terra, nosso oceano, nossa cultura são os ativos mais preciosos do nosso povo. E para mantê-los seguros, não importa o que aconteça com o mundo físico, vamos movê-los para a nuvem. Ilhas como essa não vão sobreviver ao rápido aumento da temperatura, então vamos recriá-las virtualmente.”
A surpresa que o ministro trazia é que ele discursava desse cenário virtual, ou como ficaria popularmente conhecido, metaverso – e foi assim que o país forçou sua entrada no noticiário mundial e no imaginário popular como um símbolo da ameaça existencial que a mudança climática apresenta.
“Essa é apenas uma das três iniciativas que compõem o Projeto Futuro Agora”, explicou posteriormente Kofe à Agência Pública, no único escritório governamental de Tuvalu que possui uma porta personalizada, onde lê-se First Digital Nation. Mas para concretizar o status de Primeira Nação Digital – que busca se antecipar ao pior cenário, aquele em que as ilhas de Tuvalu desaparecerão sob as águas do Pacífico, o ministro explica que duas outras ações devem ser feitas antes.
A primeira delas possui um caráter mais filosófico, que é a incorporação dos valores e princípios de Tuvalu em seu trabalho diplomático no contexto das mudanças climáticas. Conceitos como olaga fakafenua (sistemas de vida comunitária ), kaitasi (responsabilidade compartilhada) e falepili (ser um bom vizinho), estão na base do modo de vida do país. “Tuvalu é uma sociedade baseada na comunidade e somos bem unidos, vivendo próximos uns dos outros”, diz Kofe, que, após as eleições, assumiu a pasta de Transporte, Energia, Comunicação e Inovação.
Para ele, essa mensagem pode encorajar a comunidade internacional a assumir maior responsabilidade e a tomar medidas mais concretas em relação às mudanças climáticas. “Estamos tão interligados que nos tornamos uma única comunidade”, afirma.
A população de Tuvalu sabe que a ameaça que enfrenta não foi criada por eles. Segundo dados do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), os países e territórios insulares do Pacífico têm emissões per capita muito mais baixas do que a média global, embora estejam entre os mais vulneráveis às suas consequências. Essas nações contribuem com 0,03% do total mundial de emissões de gases de efeito de estufa.
Kofe acredita que esses princípios servem também como lembrete aos tuvaluanos. “Muitas vezes quando entramos no palco internacional, colocamos um ‘chapéu diferente’. Nós começamos a pensar como o Ocidente trata de assuntos internacionais, concentrando-se em concorrência e avançando seus interesses nacionais a todo custo”, explica.
Para o ministro, enquanto todos tiverem essa atitude, em especial nos encontros internacionais de negociações climáticas, as soluções para essa crise global jamais serão encontradas. “É um espaço único para Tuvalu e para países como o nosso, onde podemos trazer esses valores e princípios para o primeiro plano”, diz.
O que fundamenta a existência de um país e o direito de exploração do mar?
A segunda iniciativa do Projeto Futuro Agora é a manutenção do reconhecimento de Tuvalu como ele é hoje, independente do que aconteça no futuro.
Os elementos constitutivos de um Estado são, em resumo, um território físico definido, uma população habitando-o, uma forma de organização política governando-o e a capacidade de manter relações com outros países. Esse entendimento deriva da Convenção de Montevidéu, de 1933, o principal tratado internacional que versa sobre o assunto, embora só tenha sido aprovado pelos países que compõem as Américas.
Ser reconhecido como Estado é essencial para qualquer país, pois é isso que lhe garante seus direitos como nação, soberania sobre suas terras e mares, que podem ser importantes ativos para geração de renda e, consequentemente, capacidade de cumprir com suas obrigações aos cidadãos. Assim, o que seria de um país caso ele fosse submerso pelo oceano e sua população tivesse que buscar outro local para chamar de lar?
Foi para garantir a melhor resposta possível para Tuvalu a essa pergunta que Kofe, após as eleições deste ano, foi nomeado presidente da comissão selecionada para revisar a Constituição. O principal ponto desse trabalho é tentar atestar a condição permanente de Tuvalu como Estado, independente do que aconteça ao território do país no futuro.
No entendimento de Kofe, essa condição poderia ser atestada por meio de um conceito chamado Direito Internacional Consuetudinário, ou “direito dos costumes”, que consiste de normas internacionais independentes da existência de tratados sobre elas, baseando-se simplesmente na presença de uma “prática geral” dos países.
Em novembro de 2023, durante o Fórum das Ilhas do Pacífico (PIF na sigla em inglês), nas Ilhas Cook – a principal conferência internacional da região –, o governo de Tuvalu conseguiu incluir no documento final da cúpula a aceitação dessa nova definição de Estado elaborada por Kofe não apenas para Tuvalu, mas para todos os 18 membros do grupo.
Para Kofe, ter o apoio do grupo, que inclui também Austrália e Nova Zelândia, pode conferir um peso a mais para que os países do Ocidente também possam aceitar a proposta. Para além do Pacífico, Tuvalu já havia angariado a assinatura de 13 países que não necessariamente compartilham de sua realidade climática, como Taiwan, na Ásia, Kosovo, na Europa, Gabão, na África, e Venezuela, na América do Sul.
“A ideia é obter um reconhecimento generalizado desta proposta legal”, diz Kofe. “Quanto mais países no mundo a aceitarem, mais garantias que a condição de Estado de países como Tuvalu permanecerá inalterada.”
A estratégia também é importante para preservar os direitos de Tuvalu junto a outros tratados do direito internacional, como a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, que se refere às fronteiras marítimas. Apesar de ter uma área territorial de 26 km², Tuvalu conta com mais de 900 mil km² de área oceânica – contabilizando águas internas, linhas de base arquipelágicas, mar territorial e, mais importante de tudo, uma zona econômica exclusiva que corresponde à 717.174 km², a 38ª maior do mundo.
Isso significa que por toda essa porção do Pacífico, de acordo com o artigo 56 do Direito do Mar, Tuvalu tem “direitos de soberania para fins de exploração e aproveitamento, conservação e gestão dos recursos naturais, vivos ou não vivos das águas sobrejacentes ao leito do mar, do leito do mar e seu subsolo, e no que se refere a outras atividades com vista à exploração e aproveitamento da zona para fins econômicos, como a produção de energia a partir da água, das correntes e dos ventos”.
Na eventual submersão de ilhas, desapareceriam também os pontos usados para traçar as linhas de base arquipelágicas, e, com elas, os limites de mar territorial, zona contígua, zona econômica exclusiva e plataforma continental desaparecerão. Assim, um país vizinho poderia estender seu território e até mesmo aumentar sua área de pesca na zona econômica exclusiva, algo vital para a economia de todas as ilhas do Pacífico.
Por isso, já em 2019, quando o Tuvalu sediou o PIF, o grupo regional aprovou uma declaração dizendo que a interpretação desses países sobre o Direito do Mar é que as linhas de base que definem as zonas marítimas “não devem ser contestadas nem reduzidas como resultado da elevação do nível do mar e das mudanças climáticas.”
Esse entendimento foi submetido à Comissão de Lei Internacional da ONU, e um grupo de estudo foi destacado para avaliar todas as questões referentes à elevação do nível do mar no direito internacional, cuja estimativa de conclusão é 2025.
Independente do resultado, Kofe acredita que “a situação se tornará tão grave que os países não terão outra opção a não ser se juntar e resolver esse problema”, ainda que exista a possibilidade de que quando isso acontecer, poderá ser tarde demais. “Esta é parte da razão pela qual estamos nos preparando para o pior cenário possível.” É onde entra em cena a terceira etapa do projeto Futuro Agora, a Nação Digital.
Do Pacífico para a nuvem
O cenário que aparece no vídeo mostrado pelo governo de Tuvalu na COP do Egito, em 2022, quando Kofe anunciou a migração para o metaverso, é uma recriação virtual de Te Afualiku, a inabitada menor ilha do país e uma das que podem desaparecer mais rapidamente com o aumento do nível do mar, como diz o ministro no vídeo.
O trabalho de criar o “gêmeo digital” da ilha, assim como a produção do vídeo, foi feito em apenas seis semanas, em parceria com a Accenture. A empresa de consultoria de gestão e tecnologia já havia tido experiências prévias semelhantes de construção de realidade virtual ao trabalhar com outras ilhas do Pacífico, com o Instituto Australiano de Ciências Marinhas e com a Amazon Web Services (AWS), num projeto de conservação e monitoramento de recifes de corais.
Segundo a empresa, a construção virtual de Te Afualiku baseou-se em filmagens de drones, mapeamento através de capturas de tela em um sistema de mapas online e também fotografias para referência – não só das paisagens, mas também de pessoas, o que ajuda a garantir um dimensionamento preciso do local.
Esse material foi provido por tuvaluanos, uma vez que o país seguia com restrições de acesso devido à pandemia de covid, e era recriado virtualmente nos estúdios da empresa, em Sydney, na Austrália. Havia duas equipes distantes mais de 4.000 km uma da outra trabalhando em conjunto.
O processo de modelagem é semelhante à criação de mundos digitais para jogos de computador. Começando com uma tela em branco, as imagens de referência e marcadores de escala foram usados para esculpir o local. Tudo isso foi carregado em uma ferramenta de criação 3D para ser usada como base e, nas semanas seguintes, a ilha foi modelada manualmente.
Para o filme a ser exibido na COP27 o processo foi igualmente desafiador. A produção foi dirigida remotamente pela equipe na Austrália por meio de mensagens pelo WhatsApp, devido à instabilidade na conexão em Tuvalu. Com uma janela de tempo curta, a equipe local gravou o discurso de três minutos do ministro numa única tomada. No dia seguinte à exibição, Tuvalu estava nas manchetes do mundo inteiro.
Muitos tomaram o anúncio como ação de marketing ou de uma ambição fantasiosa. Outros viram um primeiro plano para o que talvez seja o futuro para muitos países como Tuvalu. Enquanto todas essas alternativas possam ser verdadeiras, o ponto principal da Nação Digital é ser uma continuidade da iniciativa de reconhecimento de Tuvalu como Estado e a da manutenção de suas fronteiras marítimas.
“Pedaço por pedaço, vamos preservar nosso país, vamos prover consolo à nossa população e lembrar aos nossos filhos e netos como foi o nosso lar. Também é uma questão de soberania. Estamos dando passos ousados para garantir que a nossa condição de Estado e nossas fronteiras marítimas sejam permanentemente mantidas”, declarou Kofe no vídeo.
Sem um território físico e com uma população provavelmente espalhada pelo mundo, ainda que reconhecido internacionalmente como Estado, Tuvalu precisaria contar com algum tipo de estrutura para um governo funcional, oferecendo serviços administrativos desde registros cartoriais – como nascimento, mortes e casamento – até a condução de eleições e referendos.
A criação da cópia digital das ilhas físicas de Tuvalu, preenchida com suas histórias, lendas, músicas, danças e artefatos, busca também preservar a cultura do país. A ideia é que a plataforma proporcione ao usuário uma experiência imersiva no ambiente virtual. Numa eventual diáspora completa, esse seria o lugar em que os tuvaluanos poderiam “retornar” ao seu país, ou, até mesmo, para os nascidos no “exílio”, possam aprender sobre ele.
Após a apresentação na COP27, o governo de Tuvalu passou o ano passado fazendo varreduras tridimensionais detalhadas de todo o país com a tecnologia LiDAR (Detecção e Alcance de Luz), que realiza um sensoriamento remoto similar ao radar, mas que em vez de ondas de rádio, utiliza o laser. O processo, no entanto, não é simples. Foram seis semanas para recriar digitalmente uma única ilhota desabitada de Tuvalu. O país possui 124.
“Para mim, o foco está em empoderar o povo”, responde Kofe quando questionado sobre prazos e previsões de conclusão. A ideia dele é que o governo realize treinamentos, especialmente aos mais jovens, para aprenderem sobre a digitalização, captura e criação de conteúdo. Essa apropriação do processo pelas pessoas é considerada importante para o engajamento do país. “Poderia retardar o processo, mas acho que ir devagar é importante para garantir a longevidade do projeto”, afirma o ministro.
Outro aspecto importante dessa participação popular é que isso daria a oportunidade das pessoas coletarem as informações e histórias de suas próprias famílias, com a digitalização de bens com valor sentimental, fotografias, registros em áudio e vídeo. Eles poderiam dar a permissão para que essas informações fossem de domínio público, ou optar pelo acesso privado, contando com logins e senhas. “Do ponto de vista das pessoas que estão envolvidas neste processo, eu acho que é emocionante e fortalecedor para que eles também sejam capazes de preservar sua história”, diz Kofe.
Mas antes de mais nada, o país precisa melhorar e reduzir os custos da conectividade com a internet. “É algo que o governo precisa resolver antes de chegarmos ao estágio de criar uma nação digital nessa plataforma”, reconhece o ministro. A modernização da sua infraestrutura de comunicações envolve um cabo submarino, em colaboração com parceiros de desenvolvimento, que fornecerá a banda larga necessária para a iniciativa.
“A única solução viável para proteger e salvar Tuvalu: mais terra acima do nível do mar”
Mas entre a nuvem digital e o mar ameaçador, outro tuvaluano buscava outra saída para a crise climática em Tuvalu: mais terra.
No fim do ano passado, durante a COP28, em Dubai, Seve Paineu era um homem em uma missão. Era seu último mês como ministro das Finanças e Mudança Climática de Tuvalu e, além de ser o negociador designado a representar seu país na conferência, ele estava determinado a mostrar que, com financiamento, seu país poderia encontrar uma maneira de não apenas sobreviver aos desafios climáticos, mas ainda prosperar. O projeto que ele carregava debaixo do braço entre os pavilhões da conferência era o T-CAP (Projeto de Adaptação Costeira de Tuvalu).
Na maquete de Funafuti utilizada durante a apresentação da jovem Naomi Maheu, que abre este texto, é possível distinguir uma área adentrando a lagoa de Te Namo que parece não pertencer à paisagem natural da ilha. Trata-se de uma porção de terra artificial, técnica mais conhecida como land reclamation, com cerca de 1,1 quilômetro de comprimento por cem metros de largura e uma altura de dois metros acima do nível do mar.
Financiado pelo Green Climate Fund da ONU, o T-CAP foi implementado pelo PNUD-Pacífico (Programa das Nações Unidas de Desenvolvimento), o maior projeto realizado até hoje pela agência da organização no Pacífico, ao custo de US$ 38,9 milhões. “Esse é o verdadeiro custo da adaptação climática”, afirmou Seve, apontando para a maquete.
Seu olhar intenso e a voz de autoridade não abriam dúvidas de que fosse lá o que ocorresse ao longo das duas semanas de COP, nada teria mais relevância e urgência do que encontrar o financiamento necessário para reproduzir o projeto de land reclamation em outras áreas do país. “Esse é o único meio de salvar e proteger Tuvalu: construir mais terras acima do nível do mar.”
Ao lado de Alan Resture, o chefe do projeto da PNUD em Tuvalu, a Pública pôde testemunhar a obra. “Temos que esperar por um ano para avaliar como eles se comportam”, disse, apontando para os sacos de areia empilhados para promover a elevação. Ao longo desse tempo vai ser verificada a resistência às marés altas, tempestades e erosão.
Segundo Resture, o T-CAP envolvia, inicialmente, a construção de uma barreira contra água na área de Funafuti, que foi identificada como a mais afetada com inundações por conta das marés altas e tempestades. Mas a comunidade local decidiu que aquilo não seria suficiente. “Tivemos tantas barreiras de concreto no passado que, mesmo se construíssemos uma nova realmente boa, ela eventualmente colapsaria”, conta.
Os moradores da área então olharam para o Parque Queen Elizabeth II, uma pequena praça ao lado do centro de convenções que foi construída a partir de land reclamation e perguntaram se não poderiam ter algo semelhante, só que maior. De fato aquilo fazia mais sentido, pois protegeria as comunidades e ainda criaria mais terra para uma ilha que sofre com sua falta. O projeto foi aprovado em 2019 e quando os trabalhos estavam prestes a começar, veio a pandemia e tudo ficou paralisado por dois anos. Só em março de 2023 a obra foi retomada. Em outubro ela estava concluída.
A fase atual do T-CAP, que deve seguir até o final de 2024, é de observação e monitoramento sobre como a terra reclamada se comporta em termos de erosão e inundação. Mesmo assim, uma segunda versão do T-CAP já está sendo preparada para reclamar novas terras ao longo da costa da lagoa. Para o ex-ministro Seve Paineu, isso mostra como Tuvalu não está perdida. “O projeto nos indica que é viável proteger as nossas ilhas da elevação do nível do mar, e que também é viável construirmos mais terrenos”, disse.
Uma iniciativa ainda mais ambiciosa é o L-TAP (Plano de Adaptação a Longo Prazo), que envolveria construir terras artificiais elevadas de 3,6 km² para dentro da lagoa de Te Namo, com o objetivo de acomodar um aeroporto internacional, capaz de receber aeronaves maiores e que também serviria como terminal de captação de água da chuva. Também seria construído um porto de águas profundas, de acordo com padrões internacionais, com espaço suficiente para contêineres e atracagem de navios de grande porte. Além de oferecer mais possibilidades de moradia para a população, incluindo aqueles que vivem nas ilhas mais distantes.
O plano inclui ainda áreas adicionais para recreação, escolas, hospitais, uma praia protegida, hortas comunitárias e um distrito comercial. Numa segunda fase, após a realocação de toda população, a atual área de Funafuti seria também elevada e coberta com solo para possibilitar o seu replantio, criando um cinturão verde para garantir a segurança alimentar do país – além de também uma nova camada de proteção contra tempestades vindas do mar aberto.
“Não é um exercício fácil, nem um investimento barato”, admite Resture. Foi estimado um custo de cerca de US$ 1 bilhão. “Mas penso que atenderá as necessidades de todo o país, tanto as de desenvolvimento como as sociais.”
Enquanto os estudos para viabilizar o L-TAP continuam, a imensa área de terra construída segue como uma das maiores esperanças para Tuvalu, ao menos no médio prazo. Feita de areias, rochas e terra, aquela faixa de um quilômetro claramente destoa dos seus arredores. Vista do mar, ela é indecifrável, de perto, inóspita. Chega-se a pensar como aquele lugar se parecerá no futuro e se ele será capaz de comportar a vida em Tuvalu.
Mas todo final de tarde, as crianças correm pelo seu chão desértico, pulam dos seus sacos de areia na lagoa e criam suas memórias de infância. Talvez não exista sinal maior de que aquela terra foi realmente reclamada.
Edição: Giovana Girardi
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