Casa do Dragão – Problemas de gênero dentro e fora das telas
A série do universo Game of Thrones chega ao fim da segunda temporada colocando o controle das condutas das mulheres no cerne da disputa política, refletindo o que se vê também no mundo real
As regras de sucessão dos Sete Reinos são claras: na ausência de um filho homem, a coroa deve passar para o parente mais velho do sexo masculino. Mas o rei Viserys Targaryen, ao se ver viúvo e pai de apenas uma filha, Rhaenyra, decide nomeá-la como sucessora. Anos mais tarde, o rei se casou novamente com uma jovem dama de uma importante casa nobre, Lady Alicent Hightower. Desse casamento vieram mais quatro filhos: Aegon, Aemond, Helena e Daeron.
Não obstante agora ter herdeiros masculinos, o rei seguiu firme na indicação da primogênita como sucessora. Mas, tão logo Viserys fechou os olhos, Alicent e seus aliados coraram Aegon antes que Rhaenyra soubesse da morte do pai e tivesse oportunidade de reivindicar o trono. Deste modo, ao fim da primeira temporada de A Casa do Dragão (HBO Max), exibida em 2022, Rhaenyra se prepara para a guerra.
A usurpação do trono já estava anunciada em um diálogo da primeira temporada, no qual as princesas Rhaenyra e Rhaenys. Esta, que já teve sua reivindicação ao trono frustrada no passado, adverte: os homens prefeririam atear fogo reino a ver uma mulher no trono de ferro. Em contrapartida, o papel social reservado às mulheres neste mundo é constantemente frisado. É preciso se casar para firmar alianças políticas e produzir herdeiros para garantir a linha sucessória. Nem mesmo um poder bélico do porte de um dragão é suficiente para escapar a esse destino.
Ao retratar a disputa entre as facções partidárias de Rhaenyra (negros) e Aegon (verdes), A Casa do Dragão mostra questões candentes na política de hoje. Não se trata de um debate acerca da legitimidade. Desde Game of Thrones fica explícito de que esta se fundamenta na força e, só depois, na conquista de corações e mentes. A Casa do Dragão nos mostra que eventuais conspirações para impedir que mulheres ocupem postos de comando operam em conjunto com esses papéis sociais atribuídos em função do gênero. Em outras palavras, para que exista uma ideia de que a mulher não é adequada para a esfera pública, é necessário existir um sistema de saberes e práticas cotidianas que fixem seu pertencimento à esfera privada.
A série aborda de modo muito hábil, um problema que não pertence ao mundo da fantasia. Ao contrário, está no cerne das disputas políticas de hoje: a questão de gênero. Rechaçada por grupos religiosos e reacionários aliados em sua visita ao Brasil, em 2017, a filósofa Judith Butler chama atenção para a centralidade do tema no livro Quem tem medo do gênero? (2024).
Expondo as conexões entre o Vaticano, igrejas evangélicas e políticos de extrema-direita, Butler mostra que o pânico moral criado em torno dos direitos das mulheres e pessoas LGBTQIA+ une fundamentalistas cristãos, ultraliberais, supremacistas brancos e ressentidos em geral. Propaga-se a ideia de que o mundo como o conhecemos está ameaçado de destruição e ela só pode ser contida pelo combate ao que chama de “ideologia de gênero”.
Problemas de gênero
Em meio a muitas violências praticadas contra mulheres nobres e plebeias, a rainha-consorte Alicent, destaca-se como bom exemplo de bom comportamento feminino. Sua antagonista Rhaenyra usa da posição privilegiada de princesa-herdeira para aceitar um casamento de conveniência com um parente homossexual, montar dragões e homens bonitos por ela escolhidos. Já Alicent, personificando a obediência, segue as ordens do pai para, ainda adolescente, seduzir um homem de meia idade e, por meio desse casamento, ampliar a influência de sua família no governo.
Alicent pariu quatro filhos do rei, concebidos não exatamente com consentimento, mas no “cumprimento do dever”. Muito religiosa, a rainha-consorte usa roupas discretas, algumas vezes austeras. Entretanto, persona bela, recatada e do lar é apenas o que a personagem apresenta publicamente. Ambiciosa, Alicent participa das reuniões de governo e influencia ativamente na tomada de decisões. É esse desejo de poder, muitas vezes exercido por meio de jogos de sedução – que faz com ela articule a coroação de Aegon no lugar de Rhaenyra.
Quando Aegon fica impossibilitado de governar devido a ferimentos de batalha, ela tenta se impor como regente. Argumenta ter experiência de anos participando daquelas reuniões ao lado do falecido marido. Como resposta, ela ouve de um de seus supostos aliados que não tem cabimento a facção tomar o trono de uma mulher para deixar que outra assuma. Como tantas outras mulheres conservadoras que fazem carreira política pregando a submissão que não praticam, Alicent só aprende a lição quando já é tarde. Aliar-se ao patriarcado pode ser útil, mas tem alcance e duração limitados.
Maternidade compulsória
Fora das telas, mas ainda sob os holofotes, a família real britânica fornece exemplos de que nem toda a pompa e fascínio público fazem a vida das mulheres menos insuportável nesses espaços. Elas seguem com a função primordial de produzir herdeiros (do sexo masculino) e de se apresentar como modelos de comportamento. E isso atinge a mulheres também dentro das instituições republicanas e democráticas.
Tão logo foi anunciada como sucessora de Joe Biden na próxima eleição nos EUA, Kamala Harris, foi alvo de ataques dos adversários justamente pelo fato de não ter filhos. Um dos críticos foi o vice na chapa de Donald Trump, J.D. Vance, que diz estar em guerra contra o que chama de “ideologia anti-filhos. O discurso natalista não é exceção entre a extrema-direita. Na Hungria, Viktor Orbán, combina políticas anti-imigração com isenções fiscais para famílias numerosas. Há movimentos semelhantes em países como Espanha, Itália e na França.
De modo geral, essas políticas têm como pano de fundo o “temor” de que a população branca de países europeus e dos Estados Unidos seja “substituída” por imigrantes e seus descendentes, uma combinação de racismo, xenofobia e eugenia. Ela é aliada ao controle dos direitos reprodutivos e inclui tentativas de proibição total do aborto e dificultar o acesso a métodos contraceptivos, como DIU, laqueadura e a pílula do dia seguinte.
No Brasil também há ecos da política natalista. Além do fechamento de centros de referência para a realização do aborto legal e das dificuldades até mesmo para crianças violentadas terem acesso ao procedimento, tramitam no Congresso diversos projetos de lei visando a proibição total do aborto, da comercialização da pílula do dia seguinte até da colocação do DIU.
Mesmo sendo um método totalmente legal, já houve denúncias de hospitais que negam a colocação de DIU por motivos “religiosos”. Ao mesmo tempo, mulheres que precisam acionar a justiça para ter acesso à laqueadura. As cirurgias costumam ser negadas por “objeção de consciência” dos médicos, quando a mulher é considerada jovem ou não tem filhos.
Assim como no mundo de A Casa do Dragão, o acesso a métodos contraceptivos em países que o aborto é legalizado segue como privilégio reservado às classes dominantes. Dentro e fora das telas, homens seguem gerando filhos sem assumir as responsabilidades da paternidade. Apenas as mulheres são julgadas pela decisão de não tê-los e em muitas vezes, são obrigadas a isso.
Trabalho invisível
A defesa da maternidade compulsória e da mulher fixa no papel de mãe e esposa não é uma obra de ficção. Nas redes sociais começaram a ganhar popularidade influenciadoras que se afirmam tradwife. Belas, recatadas e “do lar”, elas vendem a ideia que a vida dos sonhos é ser sustentada e fazer pão enquanto cuidam de oito crianças em lares impecáveis.
Enquanto personificam o discurso de dedicação ao lar, as esposas tradicionais constroem carreiras como embaixadoras de produtos voltados para donas de casa. Como estar na Internet é um trabalho que requer tempo, essa fantasia só existe porque nos bastidores há várias outras pessoas cuidando das crianças, mantendo a casa limpa e arrumada e preparando refeições. Na ficção são amas e criadas. Na vida real, quem cumpre esse papel é a família (avós, tias, as filhas mais velhas) ou mulheres pobres (faxineiras, cozinheiras, babás), em geral negras, que são precariamente remuneradas.
O trabalho reprodutivo (o cuidado do lar, das crianças, doentes e idosos) dentro e fora da ficção é realizado majoritariamente por mulheres. No discurso conservador, é tratado como aptidão natural ou algo que seria feito por amor, conforme explica a filósofa italiana Silvia Federicci. Não por acaso a glamourização dona de casa emerge em um contexto de desregulação e precarização do trabalho e de redução de investimentos em creches e pré-escolas.
A arte imita a vida, mas já chega
Ao longo da segunda temporada de A Casa do Dragão, vemos a grande desilusão que Alicent experimenta ao saber que o cumprimento do dever não garante nem que ela possa realizar suas ambições políticas, nem que sua experiência seja valorizada pelo entorno totalmente masculino do assento que tenta ocupar. Nem isso nem a hipocrisia de quem pratica no privado aquilo que ataca a rival por fazer em público.
Dentro e fora da fantasia, o gênero não é mera “cortina de fumaça” que pretende tirar o foco da economia, “o verdadeiro problema”, como supõe certa esquerda que não leu nenhum livro publicado neste século. Ele é o foco da destruição. A fumaça é apenas o sinal de que estão ardendo fogueiras terríveis. Porque a exaltação da masculinidade grosseira, violenta, misógina, abusiva, que vemos em A Casa do Dragão, também é uma questão de gênero. Não por coincidência, a expressão dessa masculinidade violenta é um elemento fundamental para os fascismos de ontem e hoje, dentro e fora das telas. A diferença é que no mundo real não existem dragões.
Fhoutine Marie é colunista da Interesse Nacional, jornalista e cientista política. Participa como co-autora dos livros "Tem Saída – Ensaios Críticos Sobre o Brasil" (Zouk/2017), "Neoliberalismo, feminismo e contracondutas" (Entremeios/2019) e "O Brasil voltou?" (Pioneira/2024). Seu trabalho tem como foco temas como gênero, raça, terrorismo, neoconservadorismo e resistência política numa perspectiva não-institucional.
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