14 agosto 2024

África: a arte como processo terapêutico para o trauma colonial

‘A arte se apresenta hoje, para protagonistas das novas gerações, como um caminho terapêutico para um continente traumatizado”, diz pesquisadora

Festival de Eyo realizado no ano de 2017 em Lagos, na Nigéria (foto: acervo Antonia Costa de Thuin)

Por José Tadeu Arantes

Na década de 1960, os movimentos pela independência dos países africanos empolgaram o mundo. À frente desses processos, líderes como Patrice Lumumba (Congo), Sékou Touré (Guiné), Kwame Nkrumah (Gana), Jomo Kenyatta (Quênia), Nelson Mandela (África do Sul), Agostinho Neto (Angola), Léopold Senghor (Senegal) e outros tornaram-se os rostos de um continente que se reerguia ou lutava por se reerguer depois de séculos de espoliação colonial, consagrada pela partilha da África entre as potências europeias na Conferência de Berlim (1884-1885). Ideias como a da “negritude” na esfera cultural e do “pan-africanismo” na esfera política, com várias conotações, da esquerda à direita, foram intensamente debatidas.

Apesar das muitas diferenças entre os processos nacionais, do ponto de vista de conjunto, as décadas seguintes foram decepcionantes. Golpes de Estado fomentados pelas antigas potências coloniais e exploração neocolonial, guerras interétnicas e epidemias, ditaduras e corrupção administrativa pareceram aprisionar a África em um círculo vicioso sem saída.

“Nesse contexto, a arte se apresenta hoje, para protagonistas das novas gerações, como um caminho terapêutico para um continente traumatizado”, diz a pesquisadora Antonia Costa de Thuin, da Universidade Federal do ABC (UFABC).

Vinculada ao Projeto Temático Fapesp “Do coração das guerras a poéticas da plasticidade: criação e engajamento no pensamento artístico em contextos africanos dos anos 1980 a nossos dias”, ela fez estágio doutoral na Universidade de Obafemi Awolowo, em Ilê-Ifé, na Nigéria, e conclui atualmente seu pós-doutorado com o projeto de pesquisa “A produção artística e a curadoria em espaços não ocidentais, formas de lidar”, apoiado pela Fapesp.

Em artigo publicado na Revista Z Cultural, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Thuin faz um balanço de iniciativas culturais contemporâneas no continente africano, com destaque para as curadorias de festivais e oficinas. O artigo, Tecer redes: aranhas e mulheres, curadorias no contexto africano, enfatiza as contribuições femininas e estabelece uma relação entre a personagem mítica da “Aranha”, como tecelã de redes, e o papel das curadoras e curadores desses eventos culturais. Estes evoluíram da posição de guardadores de acervos em museus para se tornarem criadores de conexões e significados, no contexto dos movimentos decoloniais.

“Os festivais de arte e cultura, como os de Dacar [Senegal] e Lagos [Nigéria], tornaram-se eventos políticos plurais importantes. E a organização destas e outras iniciativas colocou em destaque as figuras de curadores muito influentes, como Okwui Enwezor [Nigéria] e Koyo Kouoh [Camarões]”, diz a pesquisadora.

Okwui Enwezor, falecido em 2019, foi curador da Documenta de Kassel 11 e da Bienal de Veneza nos anos 2000 e tornou-se uma figura icônica no campo da curadoria. “Um artista mais jovem, como o ganense Ibrahim Mahama, atualmente com 37 anos, tornou-se internacionalmente conhecido graças a Enwezor, que o convidou a participar da Bienal de Veneza”, conta Thuin.

Mahama teve uma participação marcante na 35ª Bienal de São Paulo, em 2023. Podendo residir em qualquer grande capital, ele decidiu, desde 2020, fixar-se em Tamale, cidade no norte de Gana de onde se originou sua família. “Lá, Mahama fundou o Red Clay Studio, um espaço de criação pessoal e trocas com a comunidade. Depois, criou também o SCCA Tamale e o Nkrumah Volini, instituições com ambição de fomentar educação e pensamento artístico e ecológico na região. O espaço foi inspiração para sua instalação na 35ª Bienal de São Paulo, em que reproduziu o anfiteatro em tijolos de barro, local de conversa, trocas e pensamento artístico e coletivo”, informa Thuin.

Como outros artistas da nova geração africana, Mahama reitera sempre a importância de “devolver à comunidade”, para que outros possam ter as oportunidades que ele teve, principalmente em uma região como o norte de seu país, empobrecido e próximo de espaços em guerra.

A ideia de retorno também marcou a trajetória de Koyo Kouoh. Depois de cursar economia e administração na Europa, ela decidiu trabalhar com arte e voltar para a África. “Não voltou para Camarões, seu país de origem, mas para o Senegal. E diz que escolheu esse país por ser mais cosmopolita e também por seu interesse no Islã. O Senegal é um país de maioria sunita. Nos anos 2000, depois de compartilhar a curadoria dos Encontros de Bamako, no Mali, um importante evento mundial no campo da fotografia, Kouoh fundou a Raw Material Company, um espaço em Dacar voltado para a formação em artes”, afirma Thuin.

O local compreende biblioteca, sala de exposição e espaço para as formações. Nessas formações, pensadores e artistas do continente se encontram para discutir o tema do ano. Fluente em inglês, francês, alemão e italiano, e consultora curatorial da Documenta 12 (2007) e da Documenta 13 (2012), Kouoh foi convidada a ser a primeira curadora-chefe do Zeitz Mocaa, um moderníssimo museu de arte contemporânea na Cidade do Cabo, África do Sul. Mas fez questão de assumir a nova função sem se afastar da Raw Material Company.

A trajetória de Kouoh tem vários pontos de contato com a de Bisi Silva. Nigeriana de Lagos, ela se formou no Royal College of Art, em Londres, e, depois de um tempo, voltou para a Nigéria, onde criou o Centro de Arte Contemporânea de Lagos (CCA Lagos), uma instituição que reúne as funções de galeria, espaço de memória e centro de produção de conhecimento no campo das artes. “Paralelamente ao CCA Lagos, Silva também criou a Asiko Art School, uma escola itinerante de artes visuais, em que pessoas selecionadas passam por aulas teóricas e práticas para aperfeiçoar seu trabalho. A Asiko já teve edições em Lagos, Praia, Dacar e outras cidades. E diversos se fortaleceram com as redes de conhecimento e relacionamentos nela construídas”, diz Thuin.

Bisi Silva faleceu em 2019, após uma longa batalha contra um câncer de mama. Mas a instituição que criou continua a existir, com a intenção de manter a memória para as gerações futuras, inclusive da história oral da arte de um país ainda marcado pela lembrança da Guerra de Biafra e pelas violências diárias causadas pela desigualdade.

A ideia da arte como terapia para o trauma de guerra também inspira o Inema Arts Center, criado em Kigali, Ruanda, pelos irmãos Emmanuel Nkuranga e Innocent Nkurunziza. “Integrando galeria de arte, local de ensino e residência artística e espaço comunitário, o centro tornou-se uma referência e gerou o Art with a Mission, iniciativa de ensino de artes para órfãos da região, com o intuito de oferecer novas possibilidades de futuro, com cursos de arte, artesanato e culinária”, relata Thuin.

Os exemplos aqui mencionados são destaques de um conjunto muito mais amplo de curadores e criadores que estão revitalizando a intervenção artística no continente africano. Tradicionalmente voltado para a Europa e os Estados Unidos, o Brasil passou a olhar com interesse para essas iniciativas a partir de eventos como a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) e a Bienal de São Paulo, ao mesmo tempo que estudos focados na África e na diáspora e reflexões decoloniais ganham espaço no contexto acadêmico e fora dele.

O artigo Tecer redes: aranhas e mulheres, curadorias no contexto africano pode ser acessado em: https://revistazcultural.pacc.ufrj.br/tecer-redes-aranhas-e-mulheres-curadorias-no-contexto-africano/.
 

Este texto é uma republicação da Agência FAPESP sob licença Creative Commons (CC-BY-NC-ND). Veja mais no site da Agência: https://agencia.fapesp.br/

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Tags:

África 🞌 Arte 🞌

Cadastre-se para receber nossa Newsletter