27 agosto 2024

A geoengenharia do clima e sua influência na justiça intergeracional

Poderíamos continuar a explorar combustíveis fósseis porque, com os recursos obtidos, equiparemos as próximas gerações com o arsenal tecnológico necessário para se adaptar a eventos climáticos cada vez mais austeros

Ilustração criada por inteligência artificial mostra a manipulação do clima pela ação humana para proteger o meio ambiente (Foto: Dall-e)

Por Marcelo de Araujo, Pedro Fior Mota de Andrade e Pedro Ribeiro Menezes*

A catástrofe climática que atingiu o Rio Grande do Sul, entre abril e junho de 2024, precipitou um intenso debate sobre as consequências das mudanças climáticas no Brasil. Muito se fala agora sobre o modo desigual como as mudanças climáticas atingem populações mais vulneráveis.

Grupos sociais que já eram vítimas de injustiças sociais por conta de graves desigualdades econômicas se veem agora ainda mais fragilizados diante de desastres climáticos. Sem políticas climáticas específicas, problemas de injustiça social tendem a se agravar no Brasil.

O que fazer? Que políticas para a promoção da justiça social são necessárias, isso ninguém negaria. O que nem todo mundo percebe, porém, é que desigualdades sociais e econômicas constituem apenas um aspecto das questões de justiça que emergem em decorrência das mudanças climáticas.

Desigualdades de poder na relação entre gerações são igualmente importantes. No entanto, pouca atenção tem sido dada a questões de justiça intergeracional nos debates sobre mudanças climáticas no Brasil. Isso é estranho, pois a injustiça intergeracional é tão preocupante quanto a injustiça social.

Em certas circunstâncias, políticas para promover a justiça social podem, inclusive, entrar em conflito com políticas para promoção de justiça intergeracional. Isso pode ocorrer, por exemplo, quando a busca pela adaptação climática se dá em detrimento de considerações pelas próximas gerações.

Reinventando a estrutura física e social das cidades

O governo brasileiro tem elaborado políticas de adaptação climática tanto no âmbito do Poder Legislativo quanto no âmbito do Poder Executivo. Políticas para adaptação são, sem dúvida, urgentes e necessárias, mas elas não podem estar desvinculadas de políticas para a redução das emissões de gases do efeito estufa (GEE), especialmente o dióxido de carbono e o metano. Sem a redução radical das emissões, a temperatura média do planeta pode se elevar nas próximas décadas a ponto mesmo de comprometer a capacidade que muitas regiões teriam de se adaptar.

Ou seja: planos para adaptação climática, capazes de proporcionar segurança em igual medida para as pessoas da geração atual, correm o sério risco de ficar “desatualizados” nos próximos anos, como reconheceu a Ministra do Meio Ambiente em dezembro de 2023. Ou pior: se a temperatura média do planeta superar 4°C ao final do século XXI, a única forma de adaptação para muitas pessoas consistirá em abandonar a região em que vivem.

Um cenário em que a demanda por justiça social colide com a demanda por justiça intergeracional se dá, por exemplo, quando um governo tenta promover a justiça social com fundos gerados pela exploração de combustíveis fósseis. Essa tem sido, infelizmente, a estratégia do governo brasileiro. Ao mesmo tempo em que se compromete a eliminar desmatamentos e a estabelecer legislações para adaptação climática, o governo federal permanece firme no propósito de não apenas continuar explorando, mas de ampliar ainda mais a produção de combustíveis fósseis.

A justificativa do governo para esse tipo de estratégia é a seguinte: “O petróleo é uma fonte energética importante para combater desigualdade.” Esta seria uma justificativa razoável, se o único tipo de desigualdade com que tivéssemos de nos preocupar diante das mudanças climáticas fossem as desigualdades de natureza social e econômica. O problema, no entanto, é que as mudanças climáticas têm todo o potencial para agravar um outro tipo de desigualdade: a desigualdade entre as condições de vida vigentes para a geração atual e as condições de vida que legaremos às próximas gerações.

Os membros da geração atual podem ao menos protestar, exigir segurança, lutar pelo direito a cidades mais robustas e igualitárias. Os membros das gerações futuras, por outro lado, permanecem inteiramente vulneráveis às prerrogativas da geração atual, seja porque são jovens demais pra exigir qualquer coisa, seja porque ainda nem sequer existem.

Alguém poderia alegar, porém, que a geração atual produz riquezas para benefício das gerações futuras, e que isso confere à geração atual legitimidade para continuar a explorar e consumir combustíveis fósseis. Mas essa alegação seria eticamente aceitável?

A geoengenharia do clima

Uma estratégia que tem sido usada para justificar a continuação da exploração de combustíveis fósseis é suposição de que o aquecimento global decorrente das emissões da geração atual (e das gerações passadas) poderá ser atenuado no futuro por meio da geoengenharia do clima. Ou seja: poderíamos continuar a explorar combustíveis fósseis porque, com os recursos obtidos, equiparemos as próximas gerações com o arsenal tecnológico necessário para se adaptar a eventos climáticos cada vez mais austeros.

Essa estratégia, evidentemente, é bastante arriscada. Ela é bastante injusta também, pois esse é um risco que a geração atual impõe às próximas gerações sem qualquer garantia de que tecnologias de geoengenharia estarão disponíveis nas próximas décadas, ou que elas sequer funcionarão.

Se o risco se materializar em tragédia, com uma elevação da temperatura média do planeta na ordem de 4°C ao final do século XXI, a geração atual – e mais especificamente as pessoas mais velhas da geração atual, em posição de tomar decisões que afetarão a vida das pessoas no futuro – não estará lá para sofrer as piores consequências das mudanças climáticas.

Ainda assim, cada vez mais pessoas apoiam o desenvolvimento de tecnologias para a geoengenharia do clima. Mas como, exatamente, funcionaria a geoengenharia?

O efeito estufa ocorre porque a radiação solar, que penetra a atmosfera do nosso planeta, é parcialmente retida pelos GEE ao ser refletida de volta para o espaço. Sem o efeito estufa, nosso planeta seria gélido, possivelmente inabitável para seres humanos. O problema, no entanto, é que o acúmulo de GEE na atmosfera se elevou a ponto de reter mais radiação do que era retida no passado.

A geoengenharia busca atenuar o efeito estufa bloqueando parcialmente a entrada da radiação solar na atmosfera. Esse efeito bloqueador pode ocorrer naturalmente. Quando uma grande erupção vulcânica acontece, uma imensa quantidade de partículas – ou aerossóis – é injetada na atmosfera. Ao se espalhar pela atmosfera, os aerossóis bloqueiam parcialmente a entrada de radiação solar, diminuindo assim a temperatura média do planeta. Isso ocorreu, por exemplo, em 1816, conhecido como o “ano sem verão”, em decorrência da erupção do Monte Tambora, onde hoje é a Indonésia, no ano anterior.

O “ano sem verão” foi seguido de uma série de colheitas fracassadas, geadas, inundações, e epidemias em várias partes do mundo, inclusive no Rio Grande do Sul. Um efeito semelhante ocorreu em decorrência da erupção do Pinatubo em 1991, nas Filipinas, ocasionando uma redução da temperatura média do planeta em cerca de 0,5ºC nos dois anos subsequentes. A geoengenharia consiste na tentativa de reproduzir, de modo controlado, por um período indefinido de tempo, o mesmo efeito que grandes erupções vulcânicas têm sobre o clima do planeta.

Uma numerosa frota de aviões seria necessária para manter a injeção regular de aerossóis na atmosfera. Uma vez iniciada, a geoengenharia não poderia ser interrompida subitamente, pois isso poderia causar um aumento brusco da temperatura do planeta, com consequências devastadoras para diversos segmentos da população mundial, pegos desprevenidos por ondas de calor e sem a capacidade de se adaptar à nova situação.

Mas quem seria responsável pela governança global da geoengenharia? Quais seriam as consequências da gradual precipitação de aerossóis sobre a saúde das pessoas e de animais não humanos? Qual seriam as consequências para os oceanos? São tantas dúvidas que pairam sobre as implicações da geoengenharia que poderíamos nos perguntar se a geração atual teria algum direito de continuar a explorar e consumir combustíveis fósseis com a alegação de que as próximas gerações estarão bem equipadas para lidar com as mudanças climáticas.

Há também questões geopolíticas importantes. A redução de GEE exige a cooperação de todos os países. Basta que um pequeno grupo de países com as dimensões do Brasil, Índia, China, Rússia ou Estados Unidos continue emitindo GEE para que todo o esforço cooperativo dos outros países seja comprometido. A geoengenharia, por outro lado, poderia ser implementada unilateralmente.

Mas e se algo der errado? Nesse caso, todos os países sofreriam as consequências negativas da geoengenharia. Ou pior: a geoengenharia poderia ser utilizada para promover os interesses de alguns países, mesmo que esses países saibam que a intervenção causará eventos climáticos extremos em outras partes do planeta.

Assim como não existem instituições internacionais robustas capazes de obrigar os países a cooperar, também não há instituições capazes de impedir que um grupo de países promova a geoengenharia do clima por conta própria. O potencial para conflitos geopolíticos é monumental.

É esse então o dilema ético que a geoengenharia do clima envolve: a quantidade de GEE acumulada na atmosfera já é tão grande, e os riscos já impostos às gerações futuras tão extremos, que muitos pesquisadores e pesquisadoras se perguntam se não seria o caso de já começarmos a investir massivamente em geoengenharia, apenas por precaução.

No entanto, ao mesmo tempo em que a geoengenharia pode se tornar indispensável para garantir a segurança das gerações futuras, ela pode também ser vista pela geração atual como um pretexto conveniente para continuarmos a explorar e consumir combustíveis fósseis com a alegação de que as próximas gerações estarão bem equipadas para lidar com as mudanças climáticas no futuro.


*Marcelo de Araujo é professor de filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e professor de filosofia do direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ);

Pedro Fior Mota de Andrade é pós-doutorando em filosofia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e

Pedro Ribeiro Menezes é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

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Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original em https://theconversation.com/br

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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