12 setembro 2024

A camisa da seleção como campo de batalha constante

De um símbolo ressonante e altamente mitológico de uma coesão nacional imaginada nos anos 1950, o uniforme amarelo tornou-se um local emotivo de contestação política e luta entre as forças da direita e da esquerda brasileiras, e continua um emblema importante

Torcedores assistem partida do Brasil contra Jamaica pela Copa do Mundo Feminina da FIFA (Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

O fracasso recente no futebol e a instrumentalização política da camisa da seleção brasileira durante o governo de Jair Bolsonaro contrastam com a resiliente popularidade do uniforme amarelo como um símbolo quase mitológico do país e do esporte. Mesmo no que pode parecer uma série de crises, este emblema transcende disputas ideológicas e resultados nos gramados e se mantém como uma representação da identidade brasileira dentro e fora do país, superando a política e o momento, como um aceno a grandes momentos do futebol e do Brasil. 

A péssima atuação da seleção brasileira de futebol e a derrota diante do Paraguai ampliou um sentimento de decepção global com o time nacional que vem se desenvolvendo na última década, com destaque desde a goleada por 7 a 1 diante da Alemanha em 2014. “Esta é provavelmente a pior seleção brasileira da história do futebol”, dizia, em inglês, um dos principais comentários sobre o tema na rede social X (banida no Brasil, mas ainda popular no resto do mundo). A opinião ecoava o que disse um dos maiores jogadores que já representaram o país nos campos, Ronaldinho Gaúcho, que disse ter desistido da atual seleção, de tão ruim que acha o time. 

‘O uniforme da seleção continua sendo usado como se o time não estivesse passando por um dos seus piores momentos e como se sua cor não tivesse sido alvo de uma batalha política no país nos últimos anos’

Diante de um contexto tão negativo, surpreende ver a quantidade de pessoas, muitos deles estrangeiros e especialmente crianças, que ainda vestem a camisa amarela que representa o Brasil caminhando nas ruas de cidades europeias. Por todos os lados, o uniforme da seleção continua sendo usado como se o time não estivesse passando por um dos seus piores momentos e como se sua cor não tivesse sido alvo de uma batalha política no país nos últimos anos.

A popularidade global da camisa da seleção brasileira não é fruto do acaso. Desde as primeiras Copas do Mundo, em especial a partir das décadas de 1950 a 1970, com a ascensão de Pelé, o Brasil se consolidou como o “país do futebol”. A seleção brasileira colecionou títulos e momentos históricos, encantando o público mundial com seu estilo de jogo ofensivo e artístico, o jogo bonito. Por muito tempo, a camisa amarela se consolidou como ícone global de excelência esportiva e de um estilo de vida alegre, associado à festa e à música, símbolos de um Brasil vibrante e cheio de energia.

No artigo Becoming Brazilian: The Making of National Identity through Football, Felipe Tobar e Luana Gusso discutem como o futebol se tornou uma ferramenta poderosa para a construção da identidade nacional brasileira, rompendo barreiras raciais e de classe ao longo do tempo. A camisa amarela da seleção brasileira emergiu como símbolo de unidade nacional e orgulho popular, representando a miscigenação e a habilidade única dos jogadores brasileiros.

Essa popularidade transcendeu gerações e fez a camisa da seleção brasileira figurar entre os mais reconhecíveis símbolos nacionais no mundo, sendo associada a conceitos de “paixão”, “talento” e “alegria” . Mesmo com o avanço das redes sociais e a transformação da cultura jovem global, muitos adolescentes e jovens adultos ainda associam a camisa com esses valores positivos. 

‘O futebol sempre foi um dos principais vetores de projeção da imagem do país e continua sendo um dos principais meios pelos quais as nações constroem suas identidades globais’

E isso tem se demonstrado forte mesmo décadas após os últimos sucessos em campo e a perda de parte de seu prestígio internacional. Essa falta de sucesso poderia impactar a maneira como o Brasil é visto globalmente, já que o futebol sempre foi um dos principais vetores de projeção da imagem do país e continua sendo um dos principais meios pelos quais as nações constroem suas identidades globais. O sucesso ou fracasso da seleção costuma influenciar diretamente na percepção global do Brasil e no orgulho nacional, afetando inclusive setores não relacionados ao futebol, como o turismo e a diplomacia cultural. É comum considerar que a performance esportiva e a força simbólica da camisa estão interligadas: quando a seleção vai bem, a camisa ganha ainda mais prestígio e visibilidade; quando falha, como tem ocorrido recentemente, sua força icônica é desafiada.

Esse simbolismo vai muito além do esporte, entretanto. A imagem da camisa sofreu com a polarização política durante o governo de Bolsonaro. O uso da camisa amarela em manifestações de apoio ao ex-presidente transformou o que antes era um símbolo de união em um objeto de divisão. Em diversas ocasiões, a camisa passou a ser vista como uma espécie de bandeira política, perdendo parte do seu caráter inclusivo e apartidário. 

A imprensa estrangeira chegou a apontar o que se sentia claramente no país, relatando que, durante as eleições de 2022, muitos brasileiros deixavam de usar a camisa com receio de serem associados ao bolsonarismo. Esse fenômeno foi destacado também por estudos de comportamento eleitoral, que evidenciaram a crescente relutância de brasileiros em usar a camisa em eventos sociais não relacionados ao futebol.

‘Com o fim do governo Bolsonaro, a camisa da seleção começou a passar por um processo de “despolitização” gradual’

Com o fim do governo Bolsonaro e a ascensão de um governo de orientação política mais à esquerda com Luiz Inácio Lula da Silva, a camisa da seleção começou a passar por um processo de “despolitização” gradual. Ainda assim, resquícios da polarização permanecem. A influência do bolsonarismo sobre a camisa amarela, apesar de enfraquecida, não desapareceu completamente, e o processo de reapropriação nacional está em andamento.

Um estudo acadêmico publicado recentemente se debruçou sobre essa oscilação do que a camisa da seleção representa. De um símbolo ressonante e altamente mitológico de uma coesão nacional imaginada nos anos 1950, o uniforme amarelo tornou-se um local emotivo de contestação política e luta entre as forças da direita e da esquerda brasileiras, segundo o artigo É nossa, é do Brasil Inteiro” (It’s Ours, It’s for the Whole of Brazil”): Football, The Yellow Shirt, National Politics, and Conjunctural Contestation , de Bryan C. Clift, David L. Andrews e Victor B. Lopes. 

O texto argumenta que, dentro de uma conjuntura brasileira contemporânea marcada por cisões políticas, econômicas e culturais, a camisa se tornou um “campo de batalha constante”, onde ideologias e imaginários políticos nacionais em conflito disputam a supremacia. Ela tornou-se “tanto um produto quanto um produtor das cisões ideológicas e afetivas responsáveis pelo desmantelamento (mas também pela potencial reconstrução) da identidade e sociedade nacionais brasileiras”.

Neste contexto, os autores mapeiam a relação mutável e cada vez mais contenciosa entre a camisa da seleção e o imaginário nacional, apontando três momentos importantes:

  1. A articulação histórica da camisa e sua relativa estase inicial como símbolo de unidade nacional moderna, orgulho e otimismo brasileiro no período de 1950 aos anos 2010
  2. a desarticulação e apropriação da camisa por um movimento populista de direita emergente durante meados dos anos 2010, liderado por Bolsonaro; e 
  3. a subsequente rearticulação da camisa, e do próprio imaginário político nacional, pelas forças da esquerda política brasileira

Mesmo com os desafios recentes no esporte e na política, a camisa da seleção brasileira ainda tem um peso considerável. Em um cenário global onde o futebol continua a ser uma das principais plataformas de visibilidade internacional, a camisa amarela continua a representar uma ideia do Brasil. Mesmo em meio à polarização política e à falta de títulos recentes, o símbolo ainda tem a capacidade de se reconectar com o orgulho nacional e o sentimento de pertencimento. 

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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