25 setembro 2024

Angra III e os descaminhos da política nuclear brasileira

Projeto representa uma aposta na diversificação da matriz energética nacional, mas se consolidou como símbolo das dificuldades estruturais que marcam o desenvolvimento do setor nuclear no Brasil

Obra da usina nuclear de Angra III (Foto: Eletronuclear)

A usina nuclear de Angra III, cujas obras se arrastam desde 1984, é um símbolo dos desafios enfrentados pelo programa nuclear brasileiro. Questões orçamentárias, políticas e técnicas paralisaram as obras diversas vezes ao longo de décadas, tornando o projeto um verdadeiro “elefante branco”. Até o momento, foram investidos cerca de R$ 12 bilhões, enquanto o custo para sua conclusão está estimado em R$ 23 bilhões. Abandonar a usina implicaria um desperdício ainda maior, com uma perda avaliada em R$ 21 bilhões, sem que qualquer energia fosse gerada.

O impasse em torno de Angra III reflete os desafios logísticos e de planejamento do programa nuclear brasileiro, expandido durante o regime militar sem a devida integração com o setor acadêmico e empresarial, mas sob forte impulso nacionalista catalisado com o Acordo Nuclear de 1975 com a Alemanha Ocidental. 

A falta de continuidade nas políticas energéticas ao longo dos governos subsequentes, aliada às frequentes mudanças no planejamento estratégico do setor, tem atrasado a consolidação da energia nuclear no Brasil. Recente estudo de viabilidade apresentado pelo BNDES sinaliza uma possível retomada das obras, mas também evidencia a complexidade de um projeto iniciado há quase quatro décadas, cujas dificuldades estão diretamente ligadas à falta de planejamento de longo prazo e à ausência de uma visão integrada para o desenvolvimento do setor nuclear.

‘O plano que levou à construção de Angra III estava inserido no contexto do Plano 90, que previa a inauguração de até oito usinas nucleares no Brasil com capacidade de produção de estimados 10 mil mWs’

O plano que levou à construção de Angra III estava inserido no contexto do Plano 90, formulado pela Eletrobras na década de 1970, que previa a inauguração de até oito usinas nucleares no Brasil, espalhadas pelas regiões Sudeste e Nordeste – totalizando uma capacidade de produção de estimados 10 mil mWs. O objetivo era que cerca de 15% da energia nacional fosse gerada por fontes nucleares até os anos 1990, em resposta às crises de petróleo no Oriente Médio e aos alegados alertas sobre o estresse das reservas hídricas do país devido ao crescimento populacional e econômico – problema que se acentuaria com a suposta inviabilidade financeira de trabalhar com instalações de usinas hidroelétricas na Amazônia e suas redes de transmissão à longa distância. A parceria com a Alemanha para a importação de reatores nucleares de água pressurizada (PWR), firmada em 1975, foi a base dessa estratégia.

Vale salientar que o Plano 90 encontrou diversos obstáculos. Por exemplo, a ideia era estabelecer duas usinas nucleares nas proximidades da Baixada Santista (entre Peruíbe e Iguape). Diante da oposição política motivada pelo ressentimento com o programa nuclear, muito recluso na mão dos militares, o governo de São Paulo, liderado nos anos 1980 por Franco Montoro, inaugurou o Parque Estadual da Jureia, em 1986, que inviabilizou a instalação de complexos nucleares planejados em Iguape para proteger a biodiversidade da região​. 

Num momento em que a memória de Three Miles Island ainda estava fresca, a sociedade também estava muito reticente com instalações de centrais nucleares ao redor de grandes centros urbanos. Igualmente, Angra II e III deveriam entrar em operação nos anos 1980, mas diversos fatores impediram a realização desse plano. A usina Angra II, por exemplo, só entrou em operação comercial em 2001, em meio à crise do apagão no Brasil, que afetou o fornecimento de energia em várias regiões do país. O apagão foi resultado da falta de investimento em infraestrutura energética, levando a um racionamento severo.

‘O Plano 90, revisado nos anos 1980 como Plano 95, reduziu a ambição original de inaugurar várias usinas nucleares no Brasil’

As dificuldades enfrentadas pela construção de Angra III foram se acumulando ao longo dos anos. O Plano 90, revisado nos anos 1980 como Plano 95, reduziu a ambição original de inaugurar várias usinas nucleares no Brasil, focando apenas na conclusão do complexo de Angra. Houve retomada das obras em 2010, mas em 2015 o projeto foi novamente interrompido devido à falta de recursos financeiros. 

Durante os governos de Dilma e Temer, crise econômica e as investigações da Operação Radioatividade da Lava Jato, alegadamente envolvendo autoridades ligadas ao programa nuclear a ilegalidades, contribuíram para o esgotamento dos recursos, além de complicações técnicas e de governança que paralisaram o andamento da obra. Desde então, Angra III permanece incompleta com 65% de suas obras concluídas, com um investimento de R$ 7,8 bilhões já realizado, faltando a construção de prédio destinado ao reator alemão da Areva ANP (anteriormente Siemens)​. 

Nos últimos anos, o governo brasileiro mantém interesse na finalização de Angra III – por exemplo, o governo Bolsonaro editou a MP998 para encorajar investimentos privados nesse contexto. Assim, a construção de Angra III foi retomada em 2022, após anos de interrupção, pelo consórcio Agis, composto por Ferreira Guedes, Matricial e ADtranz, venceu a licitação para reiniciar as obras – tal acordo fora rescindido pela Eletrobras em junho de 2024 por alegado não cumprimento de normas contratuais. Ademais, a estatal ENBPar, uma das principais acionistas do projeto, fez um aporte de R$ 3,5 bilhões para a tentar incentivar a retomada das obras. 

‘Abandonar o projeto de Angra III implicaria em um custo de cerca de R$ 21 bilhões’

Embora os relatórios oficiais demonstrem que os custos da produção energética mW/h seja maior do que em usinas hidrelétricas, abandonar o projeto de Angra III implicaria em um custo de cerca de R$ 21 bilhões – relativo ao capital já investido e dívidas contraídas com a Caixa Econômica, BNDES e outros contratos empresariais. 

O futuro de Angra III coloca o governo brasileiro diante de uma encruzilhada que vai além de questões financeiras. A conclusão da usina representa uma aposta na diversificação da matriz energética nacional, mas os obstáculos enfrentados ao longo de quatro décadas evidenciam as fragilidades de um planejamento que, inicialmente ambicioso, foi sendo redimensionado com o passar do tempo. As sucessivas paralisações, mudanças nas prioridades políticas e desafios técnicos tornaram o projeto um verdadeiro símbolo das dificuldades estruturais que marcam o desenvolvimento do setor nuclear no Brasil.

Com Angra III ainda inacabada e com altos custos de continuidade ou desistência, o governo precisa equilibrar os interesses econômicos e ambientais com a demanda crescente por energia. A recente retomada das obras em 2022 sinaliza um esforço para concretizar um projeto que há muito extrapolou seus prazos e orçamentos. Contudo, esse movimento não apaga as incertezas que continuam a cercar a obra, colocando em evidência a necessidade de um planejamento mais integrado e eficiente para que o Brasil possa, finalmente, consolidar seu programa nuclear.

João Paulo Nicolini Gabriel é doutor em Ciência Política pela UFMG e pela Universidade Católica de Louvain

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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