De Cali a Belém – Biodiversidade, florestas e além
Brasil tem demonstrado interesse e capacidade de exercer protagonismo nas COPs, mas para que essa ambição se converta em resultados, o país terá que liderar pelo exemplo e mostrar que está disposto a contribuir para a reversão da atual tripla crise planetária de poluição, clima e biodiversidade
No fim de outubro ocorre em Cali, na vizinha Colômbia, a COP16 da Biodiversidade. Essa edição da conferência das partes acontece em um momento delicado do cenário nacional e global, em que o diálogo e a capacidade de criar pontes e consensos parecem verdadeiros animais em extinção.
Algumas semanas atrás, recebemos na Universidade de Oxford a secretária nacional de Biodiversidade, Florestas e Direitos Animais do Ministério do Meio Ambiente, Rita Mesquita. Em meio a sua atribulada agenda, a secretária se reuniu com um grupo de pesquisadores e ativistas que trabalham com essas questões ao redor do mundo, mas que sabem da importância do Brasil nestas agendas. O país lidera a lista de países mais biodiversos do planeta, e hoje também figura na lista dos maiores emissores de gases de efeito estufa.
Nos últimos anos, as COPs do clima ganharam grande destaque na agenda internacional e nos debates internos no Brasil. Mas enquanto a pauta da descarbonização cresce em visibilidade, a pauta da biodiversidade (e o nexo entre ambas) ainda não alcançaram o mesmo patamar.
No caso brasileiro, entretanto, ambas as agendas estão intimamente conectadas. Isso porque a maior fonte de emissões de carbono do país advém de mudanças no uso da terra e floresta, sobretudo da conversão de vegetação nativa em áreas de florestas tropicais para outros fins (tais como urbanização, agricultura ou especulação fundiária).
Os ecossistemas brasileiros, a começar por florestas tropicais como a Amazônia, são fonte riquíssima de diversidade biológica e portanto, ao zerar o desmatamento, o Brasil também contribui para proteger a biodiversidade, atuando ao mesmo tempo em dois dos três pilares da atual tripla crise planetária.
Ainda que a interface com a proteção das florestas seja inegável e fundamental, a biodiversidade do país vai muito mais além. Biomas como o Cerrado e a Caatinga também são ricos em biodiversidade, abrigando uma quantidade importante de espécies endêmicas e exclusivas e contribuindo para a riqueza e para o hercúleo desafio do país nessa agenda.
Neste contexto, cabe ao Estado brasileiro construir uma agenda de proteção da fauna e flora do país em diálogo com a agenda de proteção e valorização de populações locais, sobretudo os povos indígenas e comunidades tradicionais que há séculos atuam como guardiões dessa riqueza biológica.
Hoje, tanto a insegurança jurídica na posse da terra para certos grupos bem como as constantes invasões e múltiplas pressões econômicas (sobretudo do agronegócio) ameaçam o delicado equilíbrio entre homem e natureza e empurram comunidades inteiras para a desintegração social e cultural, marginalização e violência.
O desafio brasileiro aqui, nos contou a secretária, é pensar e implementar políticas públicas a partir da matriz da sociobiodiversidade: avançando na criação de áreas protegidas (incluindo reservas extrativistas), na titulação de terras indígenas e quilombolas e na construção de modelos justos de pagamento por serviços ambientais focados em carbono e em biodiversidade que possam criar fontes de renda sustentáveis e compatíveis com a preservação da natureza.
O diagnóstico e as propostas são claros – e por vezes até óbvios – para gestores como a secretária Rita Mesquita ou os especialistas que a escutaram em Oxford. Mas os desafios de implementação não são poucos.
Termos como “bioeconomia” e “mercados de carbono” – antes relegados às conversas entre especialistas e ativistas – já circulam amplamente e aos poucos se diluem ao ponto de inclusive tornarem-se ferramentas na manutenção de modelos e práticas econômicas que pouco ou nada alteram o “business-as-usual”.
Pesquisas recentes, por exemplo no caso do açaí na Amazônia, alertam para os perigos de mercantilização, commodificação e financeirização da natureza, criando bonança para alguns poucos e produzindo (ironicamente) degradação ambiental e desigualdades, marginalizando populações locais que tanto anseiam por recursos e oportunidades.
No campo das políticas públicas, há também desafios na pactuação e articulação interna ao Estado, a começar pela orquestração entre setores do próprio governo. Tal como na agenda climática, para ser efetiva a agenda de biodiversidade precisa ser encampada para além do Ministério do Meio Ambiente. E tal tarefa está longe de ser trivial no atual contexto da vida política nacional.
Em sua conversa conosco em Oxford, Rita Mesquita foi clara quanto aos limites de seu Ministério e até mesmo do Executivo federal no diálogo e pactuação destas soluções, por exemplo no que tange à expansão de áreas protegidas, na Esplanada, com o Legislativo e com demais entes federativos.
Tendo posto os desafios na mesa, a secretária também apontou para algumas oportunidades. Na esfera nacional, o mais recente Plano Clima prioriza a restauração florestal, por meio de iniciativas como o Plano Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa – PLANAVEG. Ou seja, ao se comprometer como zerar o desmatamento e investir em restauração florestal, o Brasil estará agindo não apenas para cumprir com sua parte no Acordo de Paris, mas também para uma transição ecológica pautada em biodiversidade. No caso do Brasil, argumenta Rita, a restauração florestal é também bioeconomia.
Com esse panorama em mente, como pensar a agenda brasileira na COP de Cali, em Baku e rumo à COP do Clima de Belém em 2025?
Desde 2023 o Brasil tem demonstrado interesse e capacidade de exercer um papel de maior protagonismo e liderança nas COPs, criando ademais pontes entre processos de negociação no âmbito da ONU e os debates em outros foros (como o G20). Mas para que essa ambição se converta em resultados ao país (e à cooperação internacional), o Brasil terá que “liderar pelo exemplo”, mostrando que está disposto a contribuir com a parcela que lhe cabe das responsabilidades comuns, mas diferenciadas de todos os países na reversão da atual tripla crise planetária de poluição, clima e biodiversidade.
O Brasil é bastante vocal e contundente na denúncia das assimetrias e desigualdades internacionais. Tal como outras potências emergentes, o país faz desta crítica um dos pilares de seu projeto de ascensão ao rol das grandes potências: uma potência reformista capaz de apoiar processos multilaterais em um mundo em ebulição.
Potências médias, ou aspirantes a global players, como o Brasil têm a difícil missão de ascender por meio de um reformismo que seja compatível com a manutenção de sua reputação e de sua imagem enquanto países construtivos e responsáveis.
Em questões como as agendas de clima e biodiversidade, a manutenção de tal reputação passa por saber equacionar o nexo entre política doméstica e externa e lograr converter vulnerabilidades em potencialidades. Para lograr o tal sonho de potência, o Brasil terá que enfrentar os muitos “trade-offs” impostos pelos imperativos de transição ecológica, bem como assumir de forma mais consistente e coerente a sua parcela de responsabilidade na solução de problemas globais pautados nos princípios de justiça e equidade na esfera doméstica e internacional.
Países como o Brasil têm o dever de atuar de maneira assertiva, cobrando o mundo desenvolvimento para que cumpra com compromissos assumidos no passado de apoiar o mundo em desenvolvimento com transferência de recursos e tecnologia, bem como oferecendo, na medida de suas capacidades, apoio (inclusive técnico) para demais países em desenvolvimento.
Aqui a liderança brasileira para viabilizar uma maior cooperação e concertação entre países amazônicos – ou até mesmo entre países tropicais – é fundamental para garantir que recursos, tecnologias e saberes cheguem aonde devem chegar.
Para além da região, o Brasil também pode e deve fazer uso de outras plataformas das quais participa. No âmbito dos Brics+, um grupo que agora congrega diversos países na lista dos maiores poluidores atmosféricos, bem como importantes players da agenda energética,
China e África do Sul também figuram na lista de países mega-diversos em termos de biodiversidade. Isso faz com que o grupo possa e deva funcionar como plataforma para uma maior e melhor articulação e cooperação em questões de clima e biodiversidade daqui para frente.
Seja na seara internacional, seja em âmbito doméstico, os desafios não são poucos. E o Brasil, esse gigante por natureza, é em alguma medida “vítima”, nas palavras de Rita Mesquita, do seu tamanho e sociobiodiversidade. Ou seja, na pauta da biodiversidade, como em tantas outras agendas, não há uma solução única a ser aplicada em todo o país. Mas resolvendo problemas locais e colocando sua diplomacia e capacidade de inovação pública à serviço da cooperação e do consenso, o país contribuirá – e muito – com as dinâmicas globais. Mas para isso, o país vai precisar melhorar seu samba e sincronizar o ritmo da transição ecológica justa, com maior coordenação interna e mais diálogo e integração com vizinhos e parceiros estratégicos.
Laura Trajber Waisbich é cientista política afiliada ao Skoll Centre, na Said Business School da Universidade de Oxford. Foi diretora do Programa de Estudos Brasileiros e professora de estudos latino-americanos na universidade.
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