A hora e a vez da participação social em política externa
Discussão aprofundamento da interlocução do Itamaraty com a sociedade completa uma década de processo lento e gradual. A hora de institucionalizar a participação social na política externa é agora
Em 2014, o então chanceler Luiz Alberto Figueiredo Machado publicou na Folha de S. Paulo um artigo sobre a intenção do Itamaraty de aprofundar sua interlocução com a sociedade. Nele o Ministro argumentava: “A velocidade das transformações no país e no mundo tornou essencial uma renovada capacidade do Ministério das Relações Exteriores de ouvir os interesses da sociedade para melhor formular e executar a política externa brasileira”.
O artigo completa hoje uma década, mas o tema da participação social em política externa segue, ou melhor, voltou para agenda.
Em um contexto mais favorável desde a volta do Partido dos Trabalhadores ao Planalto, um conjunto de representantes da sociedade civil entregou ao Itamaraty e à Presidência uma nova proposta para a velha demanda de criação de um Conselho Nacional de Política Externa (Conpeb). O tema também foi abordado em oficina durante o G20 Social, no Rio de Janeiro, no mês de novembro.
A demanda pela criação do Conpeb é reivindicação antiga de organizações não-governamentais, acadêmicos e movimentos sociais e reflete um longo processo de mobilização social pela democratização da Política Externa.
Longe de se tratar apenas de uma reivindicação, a lenta e gradual abertura do processo decisório em política externa é um fenômeno bastante conhecido dos especialistas do campo. Não faltam estudos sobre a politização, horizontalização e verticalização da política externa brasileira nos mais diferentes âmbitos e temáticas desde a redemocratização e seu aprofundamento nos anos 2000. Tampouco faltam estudos sobre as transformações na produção de política externa, com o progressivo desinsulamento do MRE rumo a um novo papel de articulação e coordenação de preferências e um crescente processo de diversificação do corpo diplomático.
Ao longo das gestões petistas, enquanto acadêmicos se debruçavam sobre o fenômeno, a pressão social aumentava sobre a Presidência e o Itamaraty. Em 2013, foi organizada a primeira Conferência Nacional sobre Política Externa, na Universidade Federal do ABC, em São Bernardo do Campo. Encabeçando a iniciativa coletivos como o Grupo de Reflexão em Relações Internacionais (GR-RI) e a Rede Brasileira de Integração dos Povos (Rebrip).
Em paralelo, o próprio MRE passou a timidamente dar mais atenção às interfaces com a sociedade na agenda de transparência, diplomacia pública e no marco dos debates sobre planejamento diplomático. Em 2014, o MRE sediou o inédito Diálogos sobre Política Externa, processo que inspirou o então chanceler Figueiredo a escrever seu artigo na Folha. A promessa à época era que de lá saíssem insumos para um Livro Branco da Política Externa. O livro segue em branco, ou na gaveta, mas o diagnóstico feito pelo Chanceler segue mais vivo e importante do que nunca.
O consenso formado no início dos anos 2010, diante da constatação do entrelaçamento cada vez maior entre questões domésticas e internacionais e de uma política externa abertamente ativa (ou até mesmo extrovertida), já apontava para uma necessária e inevitável institucionalização de espaços de diálogo com a sociedade. As razões eram claras: a política externa brasileira do século 21 interessa e impacta cada vez mais atores sociais no país e para ser legítima e eficiente precisa de mais e melhores canais de diálogo junto a distintos setores da sociedade.
Longe de descabida, dada a ênfase nas gestões petistas na construção de espaços de participação nas mais distintas políticas e esferas, a mobilização social por mais participação social em política externa é digna de reconhecimento. Tal mobilização, ainda que modesta, impulsionou não apenas uma mudança de discurso no Itamaraty, mas a abertura de uma pequena (e breve) janela para debate e negociação.
Mas em 2014 a agenda de participação esbarrou em muitos obstáculos, incluindo reticências e resistências dentro e fora do Itamaraty e um contexto político cada vez mais delicado para a Presidência de Dilma Rousseff. Em um país cada vez mais polarizado, a própria agenda de participação foi posta em xeque pela oposição e o governo, que já não havia sido capaz de avançar sua proposta de criar uma Política Nacional de Participação Social, engavetou a proposta de criação do Conpeb que recebeu da sociedade civil.
O que era reticência e desacordo virou desprezo e, na década seguinte, a esfera federal perdeu muitos de seus órgãos participativos. O desmonte sob Michel Temer e sobretudo Jair Bolsonaro não foi uniforme, mas atingiu em cheio áreas importantes das políticas sociais e ambientais. Já não havia espaço para falar em formalização da participação social em política externa. No atual momento de reconstrução da política externa brasileira, levada a cabo por um governo de coalizão liderado pelo Partido dos Trabalhadores, há novamente um espaço para a retomada das negociações. Ou ao menos, um espaço para que a sociedade civil mobilizada ao redor desta pauta retome sua mobilização.
Estará o governo federal pronto para sentar-se à mesa de negociações? Seria importante que o atual governo, que peitou parceiros internacionais e expandiu ainda mais o diálogo social durante sua Presidência do G20 em 2024 ao incluir espaços como o G20 Social, lograsse avançar nessa pauta em âmbito doméstico. O contexto político é tão ou mais polarizado do que dez anos atrás, a janela temporal é curta, e não há seguro contra desmontes antidemocráticos no futuro. Mas a mensagem é clara: a hora de institucionalizar a participação social na política externa é agora.
Laura Trajber Waisbich é cientista política afiliada ao Skoll Centre, na Said Business School da Universidade de Oxford. Foi diretora do Programa de Estudos Brasileiros e professora de estudos latino-americanos na universidade.
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