A Nova Agenda Exeterna para o Brasil em um Mundo em Transformação
Cenário internacional
Embora sem mudança de natureza estrutural, seja na forma de funcionamento dos mercados, seja nas tendências estruturais de mais longo prazo, o cenário internacional experimentou modificações, aceleradas pela crise financeira e econômica de 2008, que estão trazendo ajustes e alterações nas tendências da globalização e do mercado.
São exemplos dessas modificações a gradual transferência do eixo econômico e político do Atlântico para o Pacífico com a emergência da Ásia sob a liderança da China, novo motor do reordenamento produtivo global (o deslocamento de certos vetores produtivos, comerciais e financeiros para a região da Ásia Pacífico já estava em curso antes da crise de 2008 e continuou se processando antes, durante e depois dela); a multipolaridade dos centros de poder econômico e político, tendo como elemento principal o maior peso dos países emergentes como, em especial, a China, a Rússia, a Índia e o Brasil, a negociação de acordos comerciais de nova geração, como os acordos dos EUA com a Ásia e com a Europa, discutidos fora da Organização Mundial de Comércio (OMC). A desaceleração da economia global e do comércio internacional, bem como o crescimento do protecionismo, cada vez mais sofisticado, inclusive por meio de barreiras técnicas e de novos padrões de consumo, e a competição com produtos fabricados na China são fatores complementares que afetam todas as economias. A revolução energética trazida pela exploração do “shale oil” – folhelo – poderá colocar os EUA como potencial exportador de petróleo e gás e modificará a geopolítica e a geoeconomia global. O multilateralismo passa por um longo período de crise de representatividade. As Nações Unidas perderam influência nas questões de paz e segurança, como se viu na crise da Ucrânia e nos conflitos no Oriente Médio. O Conselho de Segurança não mais representa as forças que influem no cenário internacional atual. O esvaziamento e as dificuldades da OMC, com o fracasso das negociações multilaterais da Rodada de Doha, colocam problemas novos para os países em desenvolvimento.
Do ângulo político e econômico, o pano de fundo em que o governo e o setor privado, empresas e trabalhadores, têm de atuar para ajudar o país a superar as dificuldades atuais, tornou-se complexo e volátil. O cenário internacional é desfavorável com uma mistura de elementos diversos, de naturezas muito diferentes, alguns derivados das ações de governos, outros pelas forças de mercado: queda do preço das “commodities” e do petróleo; baixo crescimento das economias europeias e do Japão, crise da Grécia, turbulência no mercado chinês e possibilidade de aumento da taxa de juros nos EUA, conflitos na Síria e no Iraque, conflitos Israel-Palestina e Ucrânia-Rússia, além de crescentes ameaças do Estado Islâmico. Somam-se a essas questões a nova presença global da China e as tensões derivadas das disputas por maior espaço internacional e as implicações políticas e comerciais relacionadas com a questão do reconhecimento desse país como economia de mercado na OMC, a partir de 2016.
O comércio internacional, fonte de crescimento e de emprego, acentuou as significativas transformações, lideradas pelos EUA e pela China, que procuram ajustar suas políticas externas e comerciais à nova ordem internacional multipolar. A proliferação de acordos regionais e bilaterais incorporando as cadeias produtivas de valor agregado começou a representar talvez o maior desafio para as economias dos países em desenvolvimento, como o Brasil, que estão fora desse processo.
Ao lado das transformações do cenário internacional, a emergência dos movimentos sociais, ocorridos na maioria dos países sul-americanos, e étnicos, em alguns, nas últimas décadas, modificaram de forma significativa o entorno geográfico regional com o aparecimento do populismo nacionalista.
O Brasil no mundo
Vinte anos atrás, o Brasil lutava para sobreviver às fortes crises internacionais e à grande instabilidade econômica interna. Ainda está na memória coletiva o impacto das crises mexicana, asiática, russa e argentina, do déficit fiscal, dos desmandos do Estado empresário e dos efeitos nefastos da inflação para o trabalhador.
Os avanços políticos, econômicos e sociais, no curso dos governos FHC e Lula tiveram grande impacto sobre a sociedade brasileira, até recentemente.
No início do governo Lula, graças à continuidade da política econômica iniciada com o Plano Real, no governo Itamar Franco, com o ministro da Fazenda FHC, a situação mudou de forma profunda. A estabilidade econômica e os programas sociais, nos últimos 20 anos, permitiram a expansão do mercado interno com a ascensão da classe média que representava, antes da crise atual, mais de 50% da população brasileira. Respaldada pelo fortalecimento e pelo crescimento da economia brasileira e pela estabilidade política e institucional, a percepção externa sobre o Brasil, no primeiro mandato do presidente Lula, foi mudando gradualmente, ao mesmo tempo em que aumentaram a visibilidade e a atuação brasileira no cenário internacional.
A projeção externa brasileira, naquela época, refletiu-se numa presença internacional para além dos limites do continente sul-americano. Ela se deu com o protagonismo da política presidencial, com a intensificação do processo da internacionalização da empresa brasileira, contrabalançada pelo processo de desindustrialização e perda enorme de competitividade externa, apenas em parte por problemas cambiais, mas a maior parte por carga fiscal extorsiva e com a afirmação de nossos interesses no Brics e nos fóruns internacionais em temas globais como meio ambiente, mudança de clima, comércio exterior, energia, agricultura, água e direitos humanos. Um novo conjunto de áreas passou a preocupar a comunidade internacional, com pouca participação do Brasil, apesar de, em muitos casos, terem reflexos sobre nosso país: terrorismo, guerra cibernética, regulamentação digital, migrações, crimes transnacionais e tráfico de drogas, em especial.
A partir da metade do segundo mandato do presidente Lula e mais concretamente nos dois mandatos de Dilma, a situação se transformou radicalmente.
Da política externa, chamada de ativa e altiva, ficou a lembrança da desastrada operação com a Turquia na discussão para tentar resolver os questionamentos sobre o programa nuclear do Irã, a devolução dos pugilistas cubanos, que haviam pedido asilo ao Brasil, ao regime comunista de Cuba, a expropriação “manu militari” de duas refinarias da Petrobras na Bolívia sem reação adequada do governo brasileiro, as negociações entre a PDVSA e a Petrobras para a construção da refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco, as concessões ao Paraguai e à Bolívia para aumentar o preço da energia de Itaipu e o gás de Santa Cruz, por razões exclusivamente políticas, e não técnicas, inclusive como moeda de troca para a entrada, aliás, ilegal, da Venezuela no Mercosul, a omissão brasileira no contencioso Argentina-Uruguai, em decorrência da construção de indústria de celulose na fronteira do lado uruguaio, o constrangimento de o avião do ministro da Defesa ter sido vistoriado sem autorização de Brasília, pela suspeita de que estaria trazendo para o Brasil o senador boliviano exilado na embaixada em La Paz.
Marcaram, também, o período mais recente do governo petista: a negativa de Evo Morales em conceder salvo conduto para a saída do senador asilado e a demissão do ministro do Exterior brasileiro, em decorrência do incidente da vinda do político para o Brasil com o apoio do encarregado de negócios da embaixada, bem como a comunicação do motivo da demissão ao presidente boliviano; a humilhante escolha do Equador, e não do Brasil, para encontro entre Colômbia e Venezuela, com o objetivo de resolver a crise política (fechamento da fronteira e deportação de colombianos por decisão de Caracas) entre os dois países; o veto da Venezuela ao nome indicado pelo Brasil para presidir missão da Unasul para monitorar as eleições parlamentares na Venezuela.
A partir da crise de 2008, e mesmo depois de 2010, as políticas anticíclicas do governo Lula e neodesenvolvimentista de Dilma, com o estímulo exacerbado ao consumo e ao crédito forçado por parte dos bancos estatais, além da redução da taxa de juros, levaram a um impasse econômico e à crescente vulnerabilidade externa do Brasil, agravada pela baixa integração à economia mundial e pela desaceleração do crescimento da economia e do comércio exterior globais. Os fluxos financeiros e as linhas de crédito à exportação, entre 2008 e 2010, foram sendo reduzidos e as vendas externas brasileiras começaram a cair pela perda de competitividade (em 2011, o dólar chegou ao seu ponto mais baixo) e pelo protecionismo, inclusive de nossos parceiros mais próximos, com destaque para a Argentina, na verdade, a única a praticar um protecionismo desenfreado. Enquanto isso, as importações cresceram pela avalanche de produtos chineses que competiam, muitas vezes de forma ilegal, com a produção nacional. Agravou-se nesse período o processo de desindustrialização do setor.
Nesse contexto de grandes movimentos no cenário internacional e de disfuncionalidade interna, o governo do PT está sem uma visão clara de como melhor defender os interesses do Brasil no cenário internacional, tanto na área político-diplomática, quanto no comércio externo.
A partir do primeiro governo Dilma, sobretudo nos últimos quatro anos, por uma sucessão de políticas equivocadas, a economia perdeu seu vigor e a política externa perdeu seu rumo. O Brasil tornou-se crescentemente isolado na área comercial e sem iniciativa na política externa. Hoje, o protagonismo externo deu lugar a uma constrangedora retração e ao sumiço do país no cenário internacional. O Brasil está engolfado pela confluência das crises econômica, política e ética.
Perda da projeção externa
Após 13 anos de governos do PT, a política externa é um dos pontos mais vulneráveis do governo Dilma, pelos erros e equívocos que se repetem e pelos minguados resultados que apresenta. Pouco restou das bravatas repetidas por Lula de querer liderar a América do Sul, de mudar o eixo da dependência externa econômica e comercial do Brasil e de contribuir para modificar a geografia econômica, política e comercial no mundo.
Ao contrário da propaganda oficial (“nunca antes na história”), a política externa dos governos do PT (Lula e Dilma) manteve as principais prioridades dos governos anteriores (América do Sul, integração regional, Mercosul, África, Oriente Médio, China e assento permanente no Conselho de Segurança da ONU). O que mudou foram as ênfases e a maneira como essas prioridades foram executadas com forte influência partidária. Mesmo nos momentos mais ativos da política externa, no segundo mandato do governo Lula, a ação diplomática foi mais resultado do momento favorável vivido pela econômica doméstica e do deliberado protagonismo presidencial do que uma atividade coerente e segura do Itamaraty, que se viu alijado da formulação e, em muitos casos, da própria execução da política externa.
Tornando-se ideológica e partidária, a política externa do PT quebrou o consenso interno, porque faltou equilíbrio entre a defesa de princípios permanentes e do interesse nacional. O PT não obedece ao interesse nacional, mas partilha de uma visão bolivariana do mundo, como tem ficado evidente nos pronunciamentos do governo brasileiro sobre o atual momento político na Venezuela, antes e depois das eleições. Na região, o governo assumiu uma agenda que não é a nossa e, por isso, a ação do Itamaraty tornou-se passiva e reativa, deixando o Brasil a reboque dos acontecimentos: prevaleceram as afinidades ideológicas e a paciência estratégica que prejudicaram o processo de integração regional e deformaram o Mercosul, pelo abandono completo dos objetivos do Tratado de Assunção e do Protocolo de Ouro Preto, além da adoção de uma agenda equivocada, que nunca figurou nos seus pressupostos originais. No concerto das nações, nos últimos quatro anos, o Brasil se retraiu e baixou sua voz, reduzindo sua contribuição nas grandes discussões do cenário internacional, como resultado não apenas da pouca ou nenhuma empatia da presidente Dilma por certos temas da agenda internacional, como por ela ter diminuído o Itamaraty enquanto corpo funcional.
Demos as costas para importantes nações democráticas e abraçamos regimes de clara inclinação totalitária, em flagrante contraste com as melhores tradições da nossa diplomacia. A partidarização da política externa, junto com o protecionismo contrário às normas da OMC têm consequências severas na política de comércio exterior: acentua o isolamento do Brasil e do Mercosul nas negociações comerciais; produz atritos, em lugar de cooperação produtiva; empobrece nossa pauta de comércio, em vez de dinamizar trocas e oportunidades.
A ação da política externa e de comércio exterior das administrações do PT partiu de premissas e percepções que se provaram equivocadas.
O declínio do poderio dos EUA (surgiria o mundo pós-americano) e a crítica ao processo de globalização econômica e financeira estavam no centro da visão de mundo do lulopetismo, que requentou temas da esquerda da década de 1960 contra a opressão capitalista e o imperialismo. A retórica oficial ressaltou o interesse do governo em mudar a geografia política, econômica e comercial global pelo fortalecimento do multilateralismo e pelo fim da hegemonia dos EUA, por meio da reforma dos organismos internacionais e, em especial, do Conselho de Segurança da ONU. Ampliar a integração regional e fortalecer o Mercosul e sua expansão para formar uma área de livre comércio na América do Sul, como forma de oposição aos EUA, foram outras vertentes da política externa que afetaram as reais prioridades do Brasil no seu entorno geográfico.
A aplicação da plataforma do PT, com a partidarização da política externa e a criação, na América Latina, de canal paralelo ao do Itamaraty, que não se reflete nos documentos do processo decisório e que em várias iniciativas não deixam rastro de como foram conduzidas, especialmente com os regimes aliados, culminou com a política de afinidades ideológicas, generosidade e paciência estratégica nas relações econômicas e comerciais com os países sul-americanos, como Venezuela, Argentina, Bolívia, Cuba, e com países africanos. A prioridade absoluta nas negociações comerciais multilaterais da OMC e a crítica à abertura comercial com a rejeição dos acordos de livre comércio colocaram o Brasil na contramão das tendências atuais de maior integração econômica global.
A nova visão de mundo do PT fez com que o governo brasileiro passasse a aplicar políticas e ações externas, cujos resultados produziram um verdadeiro déficit diplomático para o Brasil.
Para mudar o eixo da dependência comercial do Brasil, buscou-se reduzir a influência dos países desenvolvidos e aumentar a cooperação com os países em desenvolvimento. As relações Sul-Sul passaram a ser uma das prioridades da política externa com maior aproximação e ativismo na América do Sul, na África e no Oriente Médio e a participação nos blocos integrados por países dessas regiões e outros emergentes. Foram criadas reuniões presidenciais entre a América do Sul e a África e os países árabes. Multiplicaram-se as visitas presidenciais e ministeriais, garantiram-se créditos – nem sempre transparentes – para países contratarem serviços de empresas brasileiras e abriram-se mais de 40 embaixadas nessas regiões e na América Central e Caribe.
O antiamericanismo e o congelamento das relações com os EUA refletiram-se na criação de novas instituições latino-americanas e sul-americanas (Celac, Unasul) para esvaziar a Organização dos Estados Americanos, que, sediada em Washington, é vista como um braço da política externa dos EUA. As relações bilaterais, caracterizadas como normais e positivas na retórica oficial, foram influenciadas por preconceitos partidários antiamericanos e foram mantidas em banho-maria durante todo o período. Congeladas depois da divulgação do monitoramento das comunicações do governo brasileiro pela NSA, em 2013, muitas oportunidades foram perdidas e interesses concretos foram afetados, como, por exemplo, na área comercial, na cooperação no programa espacial e em termos de investimentos no Brasil.
O Itamaraty foi mobilizado para uma campanha global para respaldar a pretensão brasileira de obter um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, quando na maior parte dos últimos 15 anos a questão não estava efetivamente na agenda das principais potências.
Embora no início do governo do PT, em 2003 e 2004, a retórica oficial incorporasse a intenção brasileira de assumir a liderança regional, a ausência de uma visão estratégica e a reação dos países da região pela pouca clareza do exato significado dessa política (liderança não se proclama, se exerce, escrevi, na época), confundida com pretensões hegemônicas de Brasília, fizeram a ideia desaparecer.
As percepções equivocadas em relação ao entorno geográfico fortemente influenciadas pela agenda do PT aproximaram o Brasil dos países que passaram a formar a Aliança Bolivariana (Alba) e mantiveram a Argentina como parceira estratégica sem contrapartida razoável em defesa dos interesses nacionais. A desintegração regional se acentuou pela ausência de liderança brasileira e pela militância de Hugo Chávez sob a vista complacente das afinidades ideológicas do governo brasileiro. Pela dificuldade de fazer avançar o Mercosul, deu-se ênfase às relações bilaterais com os países sul-americanos. Sem visão estratégica, abandonaram-se as prioridades de projetos de infraestrutura na América do Sul. A baixa prioridade dada às importantes nações democráticas e a aproximação e o apoio a regimes de clara inspiração antidemocrática são reflexo da confusão entre valores e interesses na definição de políticas nos temas globais (democracia e direitos humanos).
Como resultados dessas linhas de ação política, a política exterior perdeu dinamismo e ficou clara a ausência de uma visão do interesse do governo do PT em relação aos países desenvolvidos. O que esse Brasil quer em relação a seus principais parceiros, como a China, os EUA, a Europa e os Brics? A estratégia de negociação comercial multilateral (OMC), regional (Mercosul) e bilateral (acordos na região e fora dela) levou o Brasil ao isolamento dos fluxos dinâmicos do comércio internacional e afastou o Brasil das cadeias produtivas de valor agregado. A liderança do país na condução do processo de integração regional e do Mercosul desapareceu, e o Brasil adotou uma postura defensiva e menos atuante nos organismos multilaterais políticos (ONU), financeiros (FMI e BM) e comercial (OMC). O Itamaraty perdeu o papel central na formulação e na execução da política externa com prestígio e credibilidade declinantes no exterior, como exemplificado nos recentes episódios do veto do governo venezuelano à indicação do Brasil para presidir missão da Unasul para monitorar a eleição parlamentar de dezembro.
No início do segundo mandato, o governo Dilma até ensaiou alguma evolução na política externa, com viagens presidenciais aos EUA e aos países escandinavos e ministerial à África, ao Irã e ao Líbano. Na negociação comercial externa, ocorreram tentativas de aprofundar os acordos comerciais com o México, a Colômbia e o Peru, sem resultados concretos importantes. Porém, em tempos de ajuste da economia, o governo se vê diante de uma escassez de meios que limitam a ação externa. Os resultados das conversações presidenciais com os EUA e a Alemanha foram limitados e de boas intenções do que de ações concretas. Prossegue, entretanto, a influência partidária, como evidenciado pela não retomada do acordo de salvaguardas tecnológicas com Washington (apenas um exemplo dos equívocos cometidos, o que não esgota o manancial de oportunidades perdidas).
Isolamento dos fluxos dinâmicos do comércio internacional
A política de comércio exterior, nos últimos 13 anos, refletiu uma visão equivocada e desatualizada do que está ocorrendo no mundo. Enquanto os países ampliam seus vínculos comerciais por meio de mega-acordos, como o projetado EUA-UE e EUA e Japão com países asiáticos (TPP), ou regionais, como o Nafta, ou a nova Aliança do Pacífico, e bilaterais (Chile-União Europeia e outros), o Brasil imobilizou-se ao limitar-se às negociações multilaterais da Rodada de Doha da OMC e ao politizar o Mercosul. A política Sul-Sul, que produziu resultados modestos na tentativa de ampliar e diversificar os mercados para os produtos brasileiros, foi tratada como prioridade absoluta, em detrimento do relacionamento com os mercados de países desenvolvidos (União Europeia, EUA e Japão).
A linha de atuação concentrada nas negociações da Rodada de Doha ignorou o que ocorria com quase todos os países e gerou o isolamento do Brasil das negociações comerciais no âmbito da OMC. Enquanto foram assinados mais de 400 acordos comerciais, o Brasil, no âmbito do Mercosul, assinou apenas quatro (Israel, Egito, Autoridade Palestina e África meridional (Sacu).
O Mercosul deixou de ser um instrumento de abertura de mercado e de inserção competitiva na economia mundial e se transformou em um fórum de discussão política e social. Tendo representado mais de 16% do volume de comércio do Brasil, nos anos 1990, o grupo representa hoje menos de 10% do total, perdendo importância relativa, ainda que importante setorialmente, para alguns ramos industriais, como o automotivo. A China, contudo, está erodindo de forma crescente quase todos os nichos nos quais o Brasil ainda exibe certa presença manufatureira. Pela política restritiva, sobretudo da Argentina, e por considerações ideológicas à negociação de acordos de livre comércio, a agenda comercial externa do bloco ficou limitada e o Mercosul, marginalizado.
A assinatura da Parceria Transpacífica (TPP, em inglês), formando um grupo de 12 países, que inclui os EUA, o Japão, a Austrália e três países latino-americanos, México, Peru e Chile, representando 40% da produção mundial, acentuou dramaticamente o isolamento do Brasil, depois de diversos outros arranjos nos quais estamos igualmente à margem. Além de que o intercâmbio com a África e o Oriente Médio – prioridades da política Sul-Sul – pouco cresceu em termos percentuais no total do comércio exterior brasileiro.
Nos últimos quatro anos, as exportações, cada vez mais concentradas em um pequeno número de grandes empresas e produtos, perderam o dinamismo e caíram de 2012 a 2015; o superávit comercial de cerca de US$ 40 bilhões, em 2011, reduziu-se para US$ 2,5 bilhões, em 2013, desapareceu em 2014, quando, pela primeira vez desde 1998, registrou-se um déficit de US$ 4 bilhões. As previsões para 2015 retomam o superávit, projetado em US$15 bilhões, devido à brutal redução das importações, tanto em função do câmbio quanto da forte recessão interna. Cresceu o déficit com os EUA e com a União Europeia e o percentual das exportações para a África e Oriente Médio ficou estagnado, houve perda de mercado para os produtos manufaturados e concentração das exportações em produtos primários, especialmente para a China, país em que apenas cinco ou seis commodities compõem 9/10 da pauta exportadora.
Os resultados das sucessivas “políticas industriais e comerciais” dos governos do PT foram medíocres, em relação aos seus próprios objetivos: aumentar a taxa de investimento da indústria e da economia como um todo, promover a inovação e a produção nacional para alavancar a competitividade da indústria nos mercados interno e externo.
As políticas adotadas nos últimos anos não contribuíram para melhorar o desempenho da indústria, nem as contas externas, mas provocaram aumento de preços domésticos, deterioração das contas públicas, perda de competitividade e desindustrialização.
A perda da competitividade foi acelerada pelo longo período em que o câmbio ficou apreciado e em que o custo Brasil, representado pela alta carga tributária, pelo custo da mão de obra e da energia e pela deficiente infraestrutura, se acentuou. O empobrecimento da pauta comercial brasileira e a perda de espaço no comércio internacional estão também associados à manutenção de uma economia fechada. E, por causa de nossa reduzida inserção nas cadeias produtivas globais e à aplicação de políticas restritivas no comércio exterior, a indústria acabou isolada das vinculações externas, tendo limitado acesso à inovação e à tecnologia.
Internamente, o principal desafio enfrentado pelo setor externo é o desequilíbrio da economia, em virtude do crescente déficit fiscal, resultado da política econômica neodesenvolvimentista seguida nos últimos anos. O ajuste das contas públicas tem de ser percebido não como um esforço conjuntural, mas como um trabalho permanente para limitar e eliminar o desencontro entre os gastos do governo e a redução do ingresso de recursos, o que tornou inadiável o drástico processo de saneamento em curso. Para ajudar a deteriorar a produtividade e a competitividade do setor produtivo, o grau de ingerência do Estado extrapolou em muito seu papel regulador e disciplinador. Reformas estruturais que modifiquem o regime tributário, da previdência social, o custo trabalhista e do setor de energia terão de ser retomadas. A reindustrialização da economia deve ser enfrentada para restabelecer o dinamismo do setor e o nível de emprego. O processo de inserção competitiva da economia brasileira no contexto global exige ampla revisão das regras e dos procedimentos restritivos do comércio exterior em queda e primarizado. Câmbio competitivo e taxa de juros que não inibam o investimento completam o quadro. A simplificação e desburocratização das medidas que regulam o comércio exterior, bem como uma ampla reforma no processo decisório do setor, com o fortalecimento da Camex, poderão ter impacto positivo no crescimento do setor externo.
A partidarização da política externa teve e tem consequências severas na política de comércio exterior: ficam claros a perda de importância do processo de integração regional e o isolamento do Brasil em relação às cadeias produtivas globais.
O grande desafio da nova política de comércio exterior será o de promover a crescente integração do Brasil no comércio internacional. Por meio de uma estratégia de integração competitiva das empresas brasileiras às cadeias mundiais de valor, deverá ser buscada a redução do hiato tecnológico de nossa indústria e traçada uma estratégia de modernização compatível com a dinâmica do sistema econômico internacional.
Em vista disso, impõe-se uma nova estratégia de negociações comerciais bilaterais, regionais e globais, na qual a prioridade será a abertura de novos mercados e a integração do Brasil às cadeias produtivas globais, que representam hoje 56% do comércio global e 72% dos serviços. Em paralelo, urge iniciar uma discussão de como implementar essa nova visão de maneira gradual pari passu com políticas voltadas para a recuperação da competitividade da produção industrial e dos produtos de exportação.
Nova agenda para a área externa
Foram extremamente limitados os resultados na área externa das políticas executadas, a partir de opções estratégicas equivocadas desde 2003, para atender à plataforma do Partido dos Trabalhadores, com danos ao interesse nacional.
Uma nova agenda terá de ser definida para a política externa voltar a seu leito natural. No contexto desse novo cenário doméstico, regional e global, os desafios que o próximo governo deverá enfrentar demandam uma clara percepção dos riscos que pairam sobre o futuro do país e exigirá a firme decisão de enfrentá-los, apesar do custo político que poderão apresentar.
De maneira pragmática, reconhecendo as limitações impostas pelas dificuldades internas decorrentes da atual grave crise econômica, a ação diplomática deveria buscar o que foi perdido nos últimos 13 anos: a voz para restaurar a projeção externa do país (chamado de “anão diplomático”) e o dinamismo do comércio exterior e da negociação comercial externa para reinserir o Brasil nas correntes dinâmicas do comércio internacional.
Na área comercial, a estratégia de negociação multilateral (OMC), regional (Mercosul) e bilateral deveria ser modificada, de forma significativa, para a abertura de novos mercados e a integração das empresas brasileiras nas correntes de comércio global. Sem influência ideológica, o isolamento do Brasil das negociações comerciais deveria ser substituído por busca de parceiros comerciais extrazona.
A política em relação ao Mercosul deveria ser revista, de acordo com o estrito interesse brasileiro. A própria existência do bloco – se persistirem as atuais condicionantes e a influência política nas decisões – deveria ser examinada. As regras hoje existentes deveriam ser reexaminadas e, quando for o caso, flexibilizadas para permitir o avanço nas negociações comerciais. Os objetivos econômico-comerciais do grupo deveriam voltar a prevalecer com a eliminação das restrições comerciais, como quer o novo governo eleito na Argentina. O isolamento do grupo nas negociações comerciais deveria ser reduzido com acordos com a União Europeia, com o México, com a Coreia e com outros países desenvolvidos.
Em vista das grandes transformações por que passa o mundo, a atitude do Brasil em relação à integração regional deveria ser reexaminada. Deixando de ficar a reboque dos acontecimentos, o Brasil deveria liderar movimento para dar um novo enfoque a esse processo: a integração energética, agrícola e física e a maior inserção das empresas brasileiras nas cadeias produtivas da região seriam algumas das novas prioridades.
Levando em conta que, mantidos os cronogramas de desgravação, isto é, de redução das tarifas dos acordos de comércio negociados entre todos os países sul-americanos no âmbito da Associação Latino-Americana de Integração (Aladi), em 2019, as barreiras deverão ser eliminadas (com reduzida lista de exceção), passando a haver uma área de livre comércio na região. O Brasil deveria tomar a iniciativa de começar a discutir a manutenção desse cronograma de abertura e de examinar as regras que vigorariam nesse novo quadro de integração comercial regional. Internamente, governo e setor privado deveriam examinar as implicações econômicas que a área de livre comércio acarretaria, inclusive em termos de investimentos.
Na política externa, as relações com os países vizinhos deveriam ser intensificadas, deixando de lado agendas que não são as nossas, mas aceitas por afinidades ideológicas ou paciência estratégica. A eleição do primeiro governo não peronista em muitos anos na Argentina deveria abrir uma nova etapa no relacionamento entre os dois países e aconselhar a ampliação da cooperação em todas as áreas, em especial a comercial. Essa mudança deve ser feita de forma “desideologizada”, como mencionou o novo presidente. O resultado das eleições parlamentares de dezembro abre uma nova fase na vida política venezuelana que deveria ser apoiada pelo Brasil. A manifestação eloquente das urnas e o novo papel do parlamento não podem ser questionados pelo governo de Caracas, pois colocaria sob forte ameaça o frágil regime democrático do país. O Brasil continuaria a apoiar os esforços da Argentina e da Venezuela para o restabelecimento da estabilidade da economia, mas defenderia os interesses das empresas nacionais afetadas por medidas restritivas, que, espera-se, deverão desaparecer – ou serem sensivelmente reduzidas – na Argentina. O governo brasileiro insistiria no fim do embargo econômico a Cuba e participaria, com transparência, do processo de abertura e desenvolvimento do país. O relacionamento com os demais países em desenvolvimento na África e no Oriente Médio deveria ser ampliado e diversificado, sobretudo no campo comercial, para a abertura de mercados.
Respostas aos desafios
As relações com os países desenvolvidos, de onde poderá vir a cooperação para a inovação e o acesso à tecnologia, deveriam voltar a ter prioridade para revigorar a indústria tão abalada pelas políticas econômicas equivocadas adotadas pelos governos do PT. Deveria, assim, ser procedida uma reavaliação das prioridades estratégicas, em particular no tocante à China e aos EUA.
Nos organismos multilaterais, o Brasil deveria ampliar sua ação diplomática em todas as áreas. A revisão dessa política deveria refletir os valores e os interesses que defendemos internamente. Deveriam merecer especial atenção as questões da sustentabilidade relacionada com as negociações de mudança de clima e os problemas de democracia e de direitos humanos na região, em especial na Venezuela. O Brasil deveria manter seu interesse na ampliação dos membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, sem o excesso de ativismo dos governos do PT, em especial no período Lula.
Deveria ser definida uma política ativa de ampliação da cooperação entre os países membros dos Brics e da atuação conjunta em temas econômicos e comerciais.
A política de cooperação técnica e a diplomacia cultural – instrumentos do “soft power brasileiro” – deveriam ser fortalecidas com recursos adequados. A assistência a brasileiros no exterior e o apoio a empresas multinacionais brasileiras deveriam ser explicitados por meio de políticas públicas transparentes.
A coordenação entre a política exterior e a da defesa nacional – hoje praticamente inexistente, apesar das novas ameaças externas (crimes transnacionais e terrorismo) ao Brasil – deveria ser ampliada em todas as suas dimensões, como, por exemplo, na proteção de nossas fronteiras, inclusive a marítima, e na expansão da indústria nacional de defesa.
O Itamaraty, juntamente com o Congresso e a sociedade civil, deveria voltar a ocupar seu papel como o principal formulador e executor da política externa. A recuperação de sua credibilidade e centralidade no processo decisório da política externa, livre de influências partidárias e ideológicas, favoreceria o restabelecimento da projeção externa do Brasil, respaldada pela recuperação e pelo crescimento da economia nacional.
A Casa de Rio Branco passa, hoje, por um período difícil com grandes problemas de gestão herdados dos últimos 13 anos. Questões de progressão funcional, da relação entre diplomatas e oficiais de chancelaria, da sensível redução orçamentária (menos de 0,2% do orçamento da União) no momento em que os custos cresceram com a abertura de postos no exterior, exigem um profundo esforço de gestão para recuperar a autoestima e o prestígio, hoje diminuído. Medidas drásticas, como a redução do número de embaixadas com base em uma avaliação de custo e benefício para a política externa deveriam ser consideradas.
No governo não existe um pensamento estratégico, nem um efetivo planejamento que antecipe esses desafios, mas a sociedade brasileira está cada vez mais consciente de que mudanças profundas terão de ser feitas para melhorar as condições de vida e de emprego para todos.
A resposta a todos os desafios mencionados torna inevitável uma nova agenda interna e externa, cuja definição qualquer governo futuro terá de enfrentar e com elevado grau de urgência. Dadas as dificuldades presentes para enfrentar e propor soluções, a sociedade brasileira ganharia se começasse a discutir de imediato essas questões para que, quando o atual governo terminar, haja razoável consenso nas grandes mudanças que se tornam necessárias para a volta do crescimento e do emprego de maneira sustentável em uma economia equilibrada macroeconomicamente. O país vai ter de decidir sobre o papel do Estado e sobre os gastos com as políticas de saúde, de educação, de segurança pública e dos programas sociais. Como financiar tudo isso sem aumentar impostos? Qual a consequência de médio e longo prazos sobre a população mais pobre das decisões que deverão ser tomadas? Como o Congresso – hoje tão disfuncional – reagirá quando tiver de examinar esses desafios e aprovar uma boa parte da nova agenda?
A correção dos rumos da política externa e da política de comércio exterior completaria a agenda de reformas estruturais que poderá levar o Brasil de volta ao caminho do crescimento econômico sustentado. Respaldada por uma economia saudável, a voz do Brasil se fará ouvir de novo no concerto das nações e o interesse externo em ampliar a colaboração e os investimentos com inovação e tecnologia voltará a prevalecer.
Recuperar o prestígio do Itamaraty
Com visão estratégica de médio e longo prazos, a política externa deverá deixar para trás posturas defensivas e afinidades ideológicas, que estão acarretando o isolamento das negociações comerciais, a perda da credibilidade externa e da influência do Brasil na região, em um mundo em crescente mudança. Como política de Estado, deverá retornar aos padrões habituais de profissionalismo e de isenção na análise técnica dos problemas que sempre estiveram afetos prioritariamente ao Itamaraty. Deveriam ser efetivamente cumpridos os princípios constitucionais de não ingerência e defesa da soberania, seguidamente desrespeitados nos governos do PT no altar da ideologia. A credibilidade, a independência, o equilíbrio e os valores (democracia e direitos humanos) que apoiamos internamente deveriam ser restabelecidos com vistas à recuperação da liderança regional, à restauração da projeção e da influência externas e à contribuição para o desenvolvimento nacional.
O Ministério das Relações Exteriores – um dos símbolos do Estado brasileiro – foi levado a uma das crises mais graves de sua história. Respeitado pela coerência de sua atuação externa, deixou de gozar a unanimidade nacional em razão das interferências indevidas em seu trabalho diplomático e em seus processos decisórios.
A recuperação do prestígio do Itamaraty e de sua centralidade no processo de decisão e execução internas são condições necessárias para o Brasil voltar a exercer efetiva liderança e passar a influir de forma positiva no cenário regional e multilateral, deixando de lado a atitude passiva e reflexiva que hoje prevalece.
As grandes transformações globais, regionais e no Brasil colocam novos desafios para a política externa nas relações bilaterais, regionais e nos fóruns multilaterais. Para enfrentar e superar esses desafios e para voltar a projetar o Brasil no mundo, o Itamaraty deverá ter uma atuação cada vez mais dinâmica e inovadora e contar com recursos humanos e orçamentários adequados. O déficit diplomático terá de ser recuperado com visão de médio e longo prazos, deixando de lado as prioridades partidárias e colocando o interesse nacional acima de tudo.
As opções equivocadas geraram custos enormes ao país e terão de ser revistas. Em virtude da partidarização e da falta de visão estratégica, faltou, como recomendou o Barão do Rio Branco, “tomar a dianteira e construir uma liderança serena, coerente com nossa dignidade de nação”.
Presidente e fundador do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE). É presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da FIESP, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Trigo (Abitrigo), presidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional (Cedesen) e fundador da Revista Interesse Nacional. Foi embaixador do Brasil em Londres (1994–99) e em Washington (1999–04). É autor de Dissenso de Washington (Agir), Panorama Visto de Londres (Aduaneiras), América Latina em Perspectiva (Aduaneiras) e O Brasil voltou? (Pioneira), entre outros.
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