09 fevereiro 2018

Balanço da Política Externa dos Governos Petistas

Os 14 anos da política externa desenvolvida pelos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) merecem um estudo mais sistemático. Embora não haja  a pretensão de esgotar o assunto, parece apropriado fazer um balanço dos resultados das opções estratégicas assumidas desde 2003 e algumas acentuadas a partir de 2011.
A eleição do presidente Lula trouxe uma visão diferente de mundo: dualidade entre os países ricos e pobres; combate à opressão capitalista e imperialista; e mudança da dependência externa brasileira.
O declínio do poderio dos EUA e a crítica ao processo de globalização econômica e financeira estavam no centro da visão de mundo do lulopetismo, que requentou temas da esquerda da década de 1960 contra a opressão capitalista e o imperialismo.
A retórica oficial ressaltou o interesse do governo em mudar a geografia política, econômica e comercial global pelo fortalecimento do multilateralismo e pelo fim da hegemonia dos EUA, por meio da reforma dos organismos internacionais e, em especial, do Conselho de Segurança da ONU. Como corolário, políticas começaram a ser desenhadas para mudar o eixo da dependência comercial do Brasil pela redução da influência dos países desenvolvidos e pelo aumento da cooperação com os países em desenvolvimento.
A relações Sul-Sul passaram a ser uma das prioridades da política externa com maior aproximação e ativismo na América do Sul, na África e no Oriente Médio e a participação nos blocos integrados por países dessas regiões e outros emergentes (Brics, Ibas, Unasul, Celac).
Ampliar a integração regional e fortalecer o Mercosul e sua expansão para formar uma área de livre comércio na América do Sul, como forma de oposição aos EUA, foram outras vertentes da política externa que afetaram as reais prioridades do Brasil no seu entorno geográfico.
A ação da política externa e de comércio exterior dessas administrações partiu de premissas e percepções que se provaram equivocadas. As prioridades do Itamaraty (África, Oriente Médio, Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), América do Sul, China, Mercosul) foram, em grandes linhas, as mesmas dos governos anteriores. O que mudou foram a ênfase e a forma da implementação das políticas por influência da plataforma de um partido político.
As consequências dos erros na condução da política externa acarretaram a redução da voz do Brasil no concerto das nações e o isolamento do país nas negociações comerciais externas. A avaliação das opções estratégicas dos governos do PT na área externa mostra resultados em geral contrários aos interesses nacionais.
A partidarização da política externa ficou nítida desde o início do primeiro mandato de Lula pela perceptível influência do PT no processo decisório do Itamaraty. O primeiro sinal disso foi a nomeação de um quadro importante do PT para a função de assessor internacional da Presidência. Já em 2003, o ministro das Relações Exteriores indicava essa partidarização ao afirmar em discurso que “em todo o processo de mudança de governo, de mudança de orientação política, em muitos aspectos, temos de levar em conta duas situações: primeiro, uma natural afinidade das pessoas com a orientação política do governo, do presidente da República, do ministro de Estado e também, naturalmente, a competência profissional. Somos um corpo profissional por excelência, mas que deve estar entusiasticamente engajado com certas linhas políticas, com certas orientações”. O ministro acabou se filiando ao PT em 2009, gesto inédito entre os diplomatas que foram ministros do Exterior encarregados de executar uma política de Estado, e não apenas de um partido.
A aplicação da plataforma do PT com a partidarização da política externa e a criação na América Latina de canal paralelo ao do Itamaraty, ocupado pelo assessor internacional, como disse Lula em discurso no Itamaraty, em 2004, culminou com a política de afinidades ideológicas, generosidade e paciência estratégica nas relações econômicas e comerciais com os países sul-americanos, como Venezuela, Argentina, Bolívia, Cuba, e com países africanos.
No governo Lula, em especial no primeiro mandato, o ativismo da política externa, respaldada pelo crescimento e estabilidade da economia, buscava um espaço de influência para bem além do contexto sul-americano. A busca de protagonismo para projetar o Brasil como um agente político global, segundo o presidente Lula, tentando ajudar a resolver conflitos por meio da negociação, pressupunha uma capacidade de avaliação e de coleta de informações, que, como se viu, o serviço externo brasileiro não estava plenamente habilitado a desenvolver.
Embora a economia tenha sofrido grande abalo em função de políticas equivocadas, a partir de 2008, quando eclodiu a crise global (marolinha na visão simplista de Lula), a política externa é um dos pontos mais vulneráveis do governo Lula/Dilma, pelos erros que se repetiram e pelos minguados resultados que apresentaram. Pouco restou das bravatas repetidas por Lula de querer liderar a América do Sul, de mudar o eixo da dependência externa econômica e comercial do Brasil e de contribuir para modificar a geografia econômica, política e comercial no mundo.

Prevaleceram afinidades ideológicas

Tornando-se ideológica e partidária, a política externa do PT quebrou o consenso interno porque faltou equilíbrio entre a defesa de princípios permanentes e do interesse nacional. Na região, assumiu uma agenda que não era a nossa e, por isso, a ação do Itamaraty tornou-se passiva e reativa, deixando o Brasil a reboque dos acontecimentos: prevaleceram as afinidades ideológicas e a paciência estratégica, que prejudicaram o processo de integração regional e paralisaram o Mercosul. No concerto das nações, nos últimos quatro anos, o Brasil se retraiu e baixou sua voz, reduzindo sua contribuição nas grandes discussões do cenário internacional.
Demos as costas para importantes nações democráticas e abraçamos regimes de inclinação totalitária, em flagrante contraste com as melhores tradições da nossa diplomacia. A partidarização da política externa teve consequências severas na política de comércio exterior: acentuou o isolamento do Brasil e do Mercosul nas negociações comerciais; produziu atritos, em lugar de cooperação produtiva; e empobreceu nossa pauta de comércio, em vez de dinamizar trocas e oportunidades. Foi mantida uma estratégia de negociações comerciais bilaterais, regionais e globais, que isolou o Brasil, não permitindo sua inserção nas cadeias produtivas globais, que representam hoje 56% do comércio global e 72% dos serviços.
Deixaram de ser cumpridos os princípios constitucionais de não ingerência e defesa da soberania, seguidamente desrespeitados nos governos do PT no altar da ideologia. A credibilidade, a independência, o equilíbrio e os valores (democracia e direitos humanos) que apoiamos internamente não foram respeitados na política externa.
A presidente Dilma Rousseff manteve intacta a política externa dos oito anos do presidente Lula. Essa política continuava a não responder ao interesse nacional em um momento de grandes transformações políticas e econômicas em que vivíamos com desafios não atendidos e oportunidades não aproveitadas pelo Brasil.
As principais linhas de atuação do Brasil no governo Dilma seguiam sendo as mesmas do governo Lula:

  • dimensão sul-americana (integração regional, América do Sul, relação estratégica com a Argentina, Mercosul e novas instituições (Unasul, Celac, Conselho de Defesa);
  • negociações comerciais: multilaterais (Rodada Doha), regionais (Mercosul) e bilaterais;
  • fortalecimento das alianças com o Sul (África do Sul, Índia, China e Rússia (Brics), países africanos e do Oriente Médio;
  • multilateralismo (fortalecimento da ONU e busca de assento permanente no Conselho de Segurança, atitude crítica ao funcionamento das instituições financeiras internacionais (Banco Mundial e FMI) e fortalecimento da Organização Mundial de Comércio (OMC).

Principais prioridades não apresentaram resultados

No discurso oficial, houve uma grande distância entre a retórica e a realidade. As principais prioridades da política externa não apresentaram resultados, a negociação multilateral fracassou e o Brasil não buscou alternativas como aconteceu com todos os outros principais países (EUA, China, União Europeia, Japão, Índia), não houve a reforma do CSNU e a política na região permaneceu sem rumo. Assim, os resultados da política externa não corresponderam à importância que o Brasil tinha na região e no mundo.
Deve-se reconhecer que houve avanços e êxitos, que ocorreram quando o Itamaraty pôde atuar como principal formulador da política externa. A iniciativa de institucionalizar o Bric (Brasil, Rússia, Índia e China), em 2006, o Ibas (Índia, Brasil e África do Sul), a institucionalização das reuniões de chefes de Estado da África e do Oriente Médio com os presidentes da região, o convite para participação da reunião de Annapolis para discutir a crise entre Israel e Palestina, a criação da Unasul e da Celac e o acordo com a OCDE, em 2014, foram importantes decisões nos governos petistas. A intervenção do Brasil na crise entre os EUA e o Irã, relacionada com a suspeita de que o regime teocrático de Teerã estaria desenvolvendo um programa nuclear para fins militares, e não apenas para uso civil, foi positiva na medida em que propunha a negociação diplomática para superar as dificuldades e desconfianças existentes. A forma como a operação foi executada, entretanto, serviu para provar que tínhamos ainda um longo caminho de aprendizado a percorrer antes de poder empunhar, de forma madura e com credibilidade, a bandeira de salvadores da paz mundial.
Poderíamos ter ensaiado nossos bons ofícios nos conflitos entre nossos vizinhos, tentando ajudar, por exemplo, a Argentina e o Uruguai a resolver suas diferenças no caso da instalação da fábrica de celulose na fronteira e as disputas entre a Colômbia e Venezuela, que quase levaram os dois países a um conflito armado. Em ambas as questões, o Brasil optou por se omitir, preferindo iniciar sua ação pacificadora no conflito entre palestinos e israelenses no Oriente Médio e na disputa entre EUA e Irã.
Essas decisões colocaram em causa o julgamento dos formuladores da política externa lulista quanto à identificação do que deveria ser, de fato, nosso interesse, e à capacidade de avaliação objetiva das informações coligidas pela eficiente rede do Itamaraty. Sem entrar no mérito da discussão da crise em si mesma, ficou evidente a série de erros de avaliação por parte do governo brasileiro quando tomou a decisão de negociar o acordo com o Irã, que Teerã ameaçava romper, caso as sanções tivessem sido aprovadas. A avaliação do governo Lula foi equivocada quanto ao peso dos interesses estratégicos e comerciais da China e da Rússia no Irã e nos EUA, na disposição dos dois países de apoiar os esforços do Brasil. As percepções quanto ao estímulo indireto de Obama a Lula para negociar com o Irã e a determinação dos EUA de levar adiante o projeto de resolução com sanções no Conselho de Segurança da ONU também foram erradas. Nossa diplomacia ignorou as pressões internas e externas sobre o governo Obama que forçaram o abandono das negociações com o Irã e a previsível reação de Washington contra a intromissão de novos atores em assuntos que, de forma monopolística, consideram de sua exclusiva responsabilidade. O presidente Lula perguntou corretamente onde isso estava escrito, mas as duras palavras de Hillary Clinton, poucas horas depois do acordo de Teerã, indicaram onde estava o poder real. Por outro lado, não houve uma adequada avaliação dos prejuízos que o apoio ao Irã poderia trazer para o Brasil.

Questões estratégicas e de defesa: avaliação equivocada

Ao se inserir numa questão tão sensível e que envolvia a própria segurança nacional dos Estados Unidos, atrás de ganhos de prestígio, o Brasil pareceu ter minimizado o risco de que as relações com os EUA pudessem ficar afetadas pela iniciativa brasileira, prevalecendo a percepção do PT de que os EUA estavam em decadência e que outros centros de poder estavam emergindo e transformando o mundo em multipolar. Embora isso seja verdade para as decisões na área econômica e política, onde não há mais possibilidade de imposições dos países desenvolvidos sobre os países emergentes, a avaliação foi equivocada ao se julgar que o mesmo valeria também para as questões estratégicas e de defesa, nas quais os EUA continuavam como a única superpotência, sem declínio ou perda de poder.
Mais grave foi o reconhecimento feito pelo presidente Lula de que sabia que esse passo significaria uma aposta grande e que não tinha nada a ganhar. Segundo se noticiou, um alto funcionário teria também declarado que os entendimentos com o Irã poderiam comprometer as intenções do Brasil em conquistar um lugar permanente no Conselho de segurança da ONU e que poderiam ser explorados pela oposição como uma aventura ou um fracasso. Mas, mesmo assim, valeria a pena.
Os retrocessos na ação diplomática ocorreram nas áreas em que as políticas tradicionais foram influenciadas por tendências ideológicas e partidárias, como ocorreu com Mercosul, integração regional, relações comerciais com a África e com o Oriente Médio, estratégia de negociações comerciais, sumiço do Brasil no cenário internacional e a perda de credibilidade do Itamaraty, tanto interna quanto externamente.
Talvez o incidente diplomático mais grave no período de Dilma Rousseff tenha sido a questão da espionagem da National Security Agency (NSA) no governo e em empresas brasileiras. A decisão final do governo brasileiro de adiar a visita de Estado a Washington evitou o radicalismo proposto pelo PT que, além do cancelamento da visita, queria a retirada do embaixador em Washington e a expulsão de elementos da NSA e da CIA lotados na Embaixada dos EUA em Brasília. A decisão de adiamento foi menos uma bravata confrontacionista e mais uma reação natural a práticas ilegais de interceptação de comunicações e dados de cidadãos, empresas e membros do governo. O pedido de desculpas feito pela presidente Dilma ao presidente Obama não foi atendido. O adiamento da visita a Washington fez com que acordos não tenham avançado, prejudicando nossos interesses.
O processo decisório na política externa, a exemplo de outros países, termina na presidência da República. O presidente constitucionalmente é o responsável pela condução de todas as políticas, inclusive a externa, assessorado por seu ministro do Exterior.
Nunca antes na história deste país a presidência influiu tanto nas questões e nos cursos de ação para a tomada de decisão, que ao Itamaraty cabe analisar e recomendar.  Não é segredo o desapreço com que o Itamaraty foi tratado por parte da presidente Dilma Rousseff nos últimos anos e a pouca importância que foi dada às posições tradicionais recomendadas pela Chancelaria nos problemas que afetavam diretamente o interesse nacional.

Esvaziamento do Itamaraty

O Itamaraty deixou de ser o primeiro formulador e coordenador em matéria de projeção internacional do país, em virtude de interferências indevidas em seu trabalho analítico e em seus processos decisórios. No início do segundo mandato, o governo Dilma até ensaiou alguma evolução na política externa e na negociação comercial externa. Porém, em tempos de ajuste da economia, o governo se viu diante de uma escassez de meios que limitavam a ação externa. Os resultados das conversações mais profundas com os EUA e com a Alemanha foram limitados. Houve mais boas intenções do que ações concretas. Prosseguia, no entanto, a influência partidária, como evidenciado pela não retomada do acordo de salvaguardas tecnológicas com Washington.
O esvaziamento da Instituição e a fragmentação externamente induzida nas suas posturas e no seu modo de operar, acelerados no governo Dilma, decepcionam a sociedade brasileira. Foram retiradas da Chancelaria áreas de sua competência e foram crescentes as dificuldades para a alocação de recursos compatíveis com as novas demandas externas e proporcionais à presença ampliada do Brasil no mundo com a decisão apressada de criar 16 novas embaixadas.
Cabe mencionar alguns episódios de domínio público – muitos outros não são conhecidos – em que ficou evidenciada a decisão dos presidentes Lula e Dilma de afastar a Chancelaria e de levar o Brasil a omitir-se por razões de preconceito ideológico ou considerações partidárias de afinidades ideológicas, em muitos casos, com a opinião contrária do Itamaraty.

  • Nacionalização manu military de refinarias da Petrobras por Evo Morales em 2006, sem a adequada defesa do interesse nacional pelo governo Lula.
  • Decisão de construir a refinaria Abreu e Lima em Pernambuco por pressão de Hugo Chávez, com grande prejuízo e corrupção contra os interesses brasileiros.
  • Decisão de não enviar o Ministro do Exterior à reunião sobre a Síria em Genebra, em 2014. O Brasil foi incluído em encontro restrito a um grupo limitado de países a pedido da Rússia, que, com os EUA tentava discutir uma solução negociada para o conflito.
  • Ausência do Brasil na Conferência anual de Segurança realizada em Munique, em 2014, fórum conhecido pela oportunidade que oferece para conversas informais sobre as crises internacionais e as negociações em curso entre diplomatas e ministros da Defesa de todo o mundo. Entre os participantes estavam o mediador da ONU na Síria, os ministros do Exterior da Rússia e do Japão e os secretários de Estado e de Defesa dos EUA.
  • Omissão do governo brasileiro no tocante ao asilo de senador boliviano. Depois de concedido o asilo pela Embaixada em La Paz nada foi feito para que o salvo conduto fosse concedido por Evo Morales, conforme previsto nos Tratados regionais. A forma pouco ortodoxa como ocorreu a saída do senador da Bolívia, apesar de ter resolvido o problema para os dois países, desencadeou uma crise com o Itamaraty que resultou na demissão do então ministro, a punição do diplomata que resolveu a crise e a subserviente comunicação ao presidente da Bolívia das razões da demissão.
  • Silêncio do governo na crise da Venezuela, escondido de trás da posição do Mercosul e da Unasul favoráveis ao governo de Maduro, apesar do agravamento da situação política interna, com clara violação da cláusula democrática e dos direitos humanos.
  • Ausência do Brasil na negociação e na participação do Acordo de Serviços da OMC, apesar de hoje, na composição do PIB brasileiro, o setor de serviços representar 56%.
  • Ausência do Brasil nas discussões sobre o impacto das negociações de acordos regionais e bilaterais de última geração negociados fora da OMC. A presidência da República manifestou-se publicamente minimizando o acordo EUA-UE, afirmando que esse tipo de acordo não interessava ao Brasil por levar a uma especialização entre os países.
  • Ausência de uma posição firme do Brasil no tocante à convocação de reunião da presidência do Conselho do Mercosul. Pela primeira vez em 20 anos, o Conselho não se reuniu no segundo semestre de 2014, deixando de discutir, entre outros temas, as negociações comerciais entre o Mercosul e a União Europeia.
  • Ausência de liderança do Brasil no processo de integração sul-americana e de revitalização do Mercosul.
  • Os episódios envolvendo encontros para discutir as restrições comerciais na Argentina e a situação política na Venezuela em que a presidência da República assumiu a condução do processo, deixando a Chancelaria à margem.
  • Cancelamento do Acordo de Salvaguarda Tecnológica com os EUA e a assinatura de acordo especial com a Ucrânia, que acarretaram o atraso no programa espacial brasileiro por 17 anos, com grande prejuízo financeiro e tecnológico para o Brasil.

Além disso tudo, poderiam ser lembrados no governo Lula alguns episódios que contrariaram as tradições diplomáticas do Itamaraty, como a devolução a Cuba de pugilistas desse país que pediram asilo ao Brasil, ao final dos Jogos Pan-Americanos, e a aceitação passiva de vistoria feita pelo governo boliviano em avião em que viajava o ministro do Exterior para verificar se ele estava transportando o senador boliviano asilado na embaixada do Brasil. Cabe também mencionar o alijamento do Itamaraty na decisão da interferência ostensiva por motivações ideológicas no episódio da suspensão do Paraguai do Mercosul quando o Congresso paraguaio, aplicando a Constituição, afastou o presidente Lugo, e a forma como foi decidido o ingresso da Venezuela no grupo regional.
Esses exemplos, como não poderia deixar de acontecer, tornaram inevitável a perda de credibilidade da Chancelaria e tiveram repercussão sobre a percepção em relação à atuação do país no exterior. Certamente afetaram também a pretensão de um assento no CSNU.
O Brasil se recolheu e baixou sua voz, quando poderia ter trazido uma contribuição importante em cada um dos temas tratados defendendo o respeito à democracia e aos direitos humanos.
Em vez de uma política ativa e altiva, o que de fato ocorreu foi um deficit diplomático nos governos lulopetistas. Isso criou no Itamaraty crescentes problemas operacionais de gestão pela falta de recursos e resultou na redução do perfil brasileiro nos temas globais discutidos nos organismos internacionais especializados. Quanto ao processo de integração regional, em especial o Mercosul, o Brasil abriu mão da liderança para repensar tal  processo  e o próprio bloco. A ação do Itamaraty – a reboque de uma agenda que não era prioritária para o Brasil – deixou de defender efetivamente os interesses econômicos e comerciais brasileiros, seguindo as políticas de afinidades ideológicas e paciências estratégicas. O Mercosul esteve paralisado e sem nenhuma estratégia.

Mercosul: situação de quase total isolamento

Os objetivos de liberalização do comércio e de abertura de mercados foram abandonados, e o grupo subregional transformou-se em um fórum político e social. Politizado pela ação do Brasil, da Argentina e da Venezuela, o bloco permaneceu em situação de quase total isolamento. O único entendimento em curso, então, foi a retomada da negociação do grupo com a União Europeia por iniciativa argentina. Se as negociações com a Comissão Europeia não avançassem por dificuldades criadas por nossos parceiros, não restaria alternativa ao Brasil, no âmbito do Mercosul, senão fazer um acordo com a União Europeia com os outros parceiros que quisessem, a fim de resguardar nossos interesses.
O Brasil deveria ter influído para que algumas regras do bloco fossem flexibilizadas para facilitar as negociações comerciais com países que pudessem ampliar o mercado para as exportações do grupo e permitissem acesso a tecnologias e inovações para as empresas dos países membros.
A desintegração regional se acentuou pela ausência de liderança brasileira e pelo apoio à Alba (Aliança Bolivariana). Pela dificuldade de fazer avançar o Mercosul, deu-se ênfase às relações bilaterais com os países sul-americanos. O antiamericanismo e o congelamento das relações com os EUA se refletiram na criação de novas instituições sul-americanas (Celac, Unasul). Sem visão estratégica, abandonaram-se as prioridades de projetos de infraestrutura na América do Sul para abrir corredores para nossas exportações para o mercado asiático.
A baixa prioridade dada às nações democráticas desenvolvidas e a aproximação e o apoio a regimes de clara inspiração antidemocrática são reflexo da confusão entre valores e interesses na definição de políticas nos temas globais (democracia e direito humanos).
A ausência de uma visão objetiva do interesse brasileiro se manifestou não só em relação aos países desenvolvidos (União Europeia, EUA e Japão), bem assim no tocante à China e ao Brics. O mesmo ocorreu quanto aos países em desenvolvimento com o apoio financeiro a Cuba, o respaldo à crescente deterioração da situação política na Venezuela e o alheamento na crise na Ucrânia, exemplos de ações ou reações político-partidárias acima dos reais interesses estratégicos brasileiros.
No tocante ao comércio exterior, a estratégia de negociação externa continuou equivocada, gerando o isolamento do Brasil nas negociações de acordos de livre comércio. O isolamento do Brasil, que, em 14 anos, negociou apenas três acordos de livre comércio, com Israel, Egito e Autoridade Palestina, prejudicou os interesses públicos e privados nacionais, já que o mundo negociou nesse período mais de 400 acordos. O Mercosul comercial ficou paralisado e os temas sociais e políticos tiveram precedente sobre os objetivos iniciais do Tratado de Assunção. O intercâmbio com a África e o Oriente Médio pouco cresceu em termos percentuais no total do comércio exterior brasileiro em todo o período lulopetista. O empobrecimento da pauta comercial brasileira e a perda de espaço no comércio internacional estão associados à manutenção de uma economia fechada. E, por causa da reduzida inserção nas cadeias produtivas globais e à aplicação de políticas restritivas no comércio exterior, o Brasil acabou tendo limitado acesso à inovação e à tecnologia. Os acordos de comércio com os países sul-americanos, em especial com Peru, Colômbia e México, não foram aprofundados; o governo ignorou o crescente número de acordos regionais e bilaterais, e as novas regras que passaram a integrar os acordos comerciais; não se avançou em nenhuma negociação comercial com países desenvolvidos que pudessem aportar inovações tecnológicas e integrar as empresas nacionais nas cadeias produtivas globais; não foi completada a negociação com a União Europeia, que se arrastava há mais de uma década.
As ações de política externa nas negociações comerciais continuaram a privilegiar os interesses político-partidários, e não o interesse nacional. Cada vez mais isolado das novas tendências do comércio internacional e com dificuldades para criar um mercado regional para seus produtos, ao contrário do que ocorria na Ásia e na Europa, o Brasil manteve sua estratégia de negociação comercial, de preconceitos ideológicos, perdendo oportunidades de buscar a abertura de novos mercados, não só entre os países em desenvolvimento, mas também nos países desenvolvidos. O governo Dilma não procurou inserir os setores industriais e de serviços nos grandes centros difusores de tecnologia. Segundo a OMC, a participação do Brasil nas redes internacionais de produção era de apenas 40%. Deixando de participar das negociações de acordos preferenciais de comércio e das cadeias produtivas de alto valor agregado, o Brasil perdeu espaço no comércio global. A prioridade apenas para as negociações multilaterais no âmbito da OMC, do Mercosul e na América do Sul mantida no governo Dilma, não serviu aos interesses do Brasil.
Alguns resultados mostram como o interesse nacional foi deixado em segundo plano nos governos Lula e Dilma:

  • O financiamento ao porto de Mariel em Cuba pelo BNDES subiu a cerca de US$950 milhões, de acordo com informações publicadas em Havana. Segundo essas mesmas fontes, o governo brasileiro estava também negociando novos empréstimos do BNDES no valor de US$170 milhões para melhoria dos aeroportos comerciais naquele país. Os financiamentos de projetos no exterior – prática usual nos governos Lula e Dilma a governos autoritários da América Latina e da África – foram pouco transparentes, como reconheceu a Justiça Federal, e desviaram recursos do BNDES de projetos de infraestrutura no Brasil.
  • Durante visita da Presidente Dilma à União Africana de Nações, o governo brasileiro anunciou o perdão de US$900 milhões de dívidas de 12 países africanos. Somente o governo autoritário da República do Congo livrou-se de US$352 milhões. Essa decisão abria a possibilidade de novos empréstimos para apoiar grandes projetos de infraestrutura nesses países, acarretando os mesmos resultados negativos para o Brasil.
  • A decisão do governo Dilma de pagar US$434 milhões adicionais ao governo boliviano pela compra do gás natural, como parte de acordo entre Lula e Morales, de 2007. Para ajudar generosamente a Bolívia, o gás importado pelo Brasil passou a pagar um adicional por seu conteúdo, contra a opinião da Petrobras. Técnicos da Petrobras afirmaram, ainda, que a Bolívia estava pressionando a companhia a pagar a dívida do gás rico, ameaçando cortar o fornecimento da energia para a termoelétrica de Cuiabá. Longe dos interesses brasileiros, o governo cedeu às pressões e chantagem bolivianas.

Brasil descumpriu regras internacionais de asilo

O tratamento dado ao governo brasileiro pela Bolívia, no caso do asilo do senador Roger Molina, talvez seja um dos exemplos mais simbólicos da fraqueza de nossa política externa imolada no altar das afinidades ideológicas. Depois de concedido o asilo, o governo brasileiro se arrependeu, por pressão do presidente Evo Morales, e aceitou o descumprimento das regras internacionais de asilo que obrigam o país a conceder salvo conduto para a saída do asilado. Depois da fuga de Molina, o governo cedeu a pressões e demitiu o ministro do Exterior para dar satisfação a Evo Morales. Logo depois da exoneração, Morales recebeu telefonema informando a demissão do chanceler.
No âmbito multilateral, o Brasil se encolheu e deixou de ampliar sua ação diplomática em todas as áreas. O Brasil se esquivou de assumir novas responsabilidades perante a comunidade internacional nos temas globais e nas áreas de conflito onde manifestamos interesse em ter um papel mais preeminente, como na África e no Oriente Médio.
No governo Dilma, o Brasil perdeu a liderança no tocante aos temas globais, como mudança de clima, energia, democracia, direitos humanos, comércio exterior, assim como aos novos temas (terrorismo, guerra cibernética, controle da internet), em cujas discussões o Brasil sempre desempenhou um papel relevante nos diferentes organismos internacionais. Quanto aos direitos humanos e à democracia, por afinidades ideológicas, o governo Dilma não reproduziu no exterior a defesa dos valores e interesses que defendemos internamente. No tocante às questões da sustentabilidade relacionadas com as preocupações sobre as negociações de mudanças de clima, o Brasil – ao contrário das posições anteriores – adotou uma posição de baixa visibilidade, como ocorreu na reunião de Lima, em 2014, preparatória para o encontro de Paris, em que se discutiu a renovação do Protocolo de Kyoto.
Os seguidos casos de corrupção, em especial o escândalo da Petrobras, que o governo Dilma Rousseff fingiu desconhecer, afetaram a credibilidade e a imagem do Brasil no exterior. Os desmandos na maior empresa brasileira continuam sendo investigados na Europa e nos EUA com graves prejuízos econômicos e financeiros e com possiveis efeitos criminais no final do trabalho levado a efeito pelo Ministério Público no Brasil, pela Securities and Exchange Commission de Nova York e pelo Departamento de Justiça de Washington.
As opções equivocadas na política externa e no comércio exterior nos governos petistas geraram custos enormes ao país. Em virtude da partidarização e da falta de visão estratégica, faltou, conforme recomendação do Barão do Rio Branco, “tomar a dianteira e construir uma liderança serena, coerente com nossa dignidade de nação”.

Presidente e fundador do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE). É presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da FIESP, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Trigo (Abitrigo), presidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional (Cedesen) e fundador da Revista Interesse Nacional. Foi embaixador do Brasil em Londres (1994–99) e em Washington (1999–04). É autor de Dissenso de Washington (Agir), Panorama Visto de Londres (Aduaneiras), América Latina em Perspectiva (Aduaneiras) e O Brasil voltou? (Pioneira), entre outros.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Cadastre-se para receber nossa Newsletter