10 maio 2018

PT-PSDB: É Possível Uma Coalizão em Torno de Valores Civilizatórios?

Introdução
Na reunião do Conselho Editorial da Interesse Nacional que pautou os artigos desta edição, o conselheiro Eugênio Bucci sugeriu uma conversa entre o jurista, ex-ministro da Justiça no governo FHC, José Gregori, e o filósofo, ex-ministro da Educação no governo Dilma Rousseff, Renato Janine Ribeiro. Eles não só tiveram experiências administrativas em governos desses dois partidos como se empenharam na defesa dos direitos humanos e já defenderam modos de tornar possível uma coalizão entre as duas legendas.
O diálogo aconteceu no dia 22 de março, em São Paulo. A pauta não poderia ser mais atual e realista, pois trata-se de responder à questão aguda: é possível, nos tempos atuais de violência, radicalização, ódio, preconceito, intolerância e extremismos na vida política e na sociedade brasileira, superar as divergências entre PT e PSDB, duas das maiores agremiações partidárias do País, que eram aliadas nas lutas pela redemocratização, mas cuja relação se deteriorou após o exercício de poder dos tucanos, nos dois governos de Fernando Henrique Cardoso, e dos petistas, nas administrações Lula e Dilma, que duraram quase 14 anos?
Renato Janine aprofunda a questão: “É possível que os valores civilizatórios voltem a prevalecer? É possível recuperá-los no seu sentido mais amplo? Ou ficou um poço de mágoa tão grande, um ódio tão grande entre PT e PSDB que mais ou menos tanto faz?”. Ele expressa sua preocupação com o racha cada vez mais acentuado: “O extremo disso seria se chegasse o momento em que Bolsonaro (deputado Jair Bolsonaro, de direita) estivesse no segundo turno e houvesse pessoas que preferissem deixar a coisa assim, não votar nele, mas também não votar contra ele. Se no segundo turno houvesse alguém de esquerda, pessoas de direita moderada não votassem no candidato do PT. Ou se o PSDB estivesse no segundo turno contra Bolsonaro e pessoas da esquerda não votassem no candidato tucano. Nesse caso, corremos um risco extraordinário, que é diferente do que ocorreu na eleição do Trump (Donald Trump, republicano, presidente dos EUA), quando houve só dois candidatos (Hillary Clinton, do partido Democrata, era a oponente). No Brasil, o risco se agrava, por causa do aumento extraordinário da voz dos extremistas”.
Se PT e PSDB não conseguem fazer uma aliança programática para o exercício do poder de um ou de outro, restaria uma aproximação em torno de valores civilizatórios ou, ao menos, uma tentativa de recuperá-los, já que os dois partidos já pensaram de forma semelhante no passado. José Gregori concorda com Janine: “O objetivo desta conversa não é só o conteúdo estimulador que ela possa ter para o leitor, mas comprovar que pessoas que não têm o mesmo percurso partidário estão habilitadas, numa época de crise, que já dura cinco anos, no Brasil, a sentarem em torno de uma mesa em busca de uma saída comum para comungar valores democráticos, humanistas e pluralistas”.
Em seus dez anos de existência, esta Revista tem contribuído, por meio de opiniões contraditórias, com artigos mostrando que o interesse nacional é uma construção política. “É uma meta, sempre fugidia, a ser constantemente perseguida pelo exercício do debate público e da deliberação democrática, que se especifica concretamente nas diversas áreas da ação política”. Assim, Interesse Nacional se firmou com pioneirismo na promoção do debate sobre se ainda é possível uma convergência ideológica e programática entre as duas legendas. No número 7 (outubro-dezembro de 2009), o professor de filosofia da USP, Renato Janine Ribeiro, escreveu o artigo “PT-PSDB: É Possível uma Grande Coalizão?”. A resposta foi dada pelo ex-ministro da Casa Civil do primeiro governo Lula, José Dirceu, que assinou o texto “PT-PSDB: Por Que as Divergências São Inconciliáveis”, na edição 8 (janeiro-março de 2010).
Recém-chegado ao Conselho Editorial, José Gregori aporta uma iniciativa cujo conteúdo poderia preencher várias páginas desta publicação. Para debater os limites de uma reaproximação entre os dois partidos, Gregori promoveu várias reuniões em sua casa, no começo de 2017, “com a participação de pessoas de tendências diferentes, partidárias e ideológicas. Acordamos que o terreno comum que poderia nos unir seriam os direitos humanos, a sua concepção moderna, que não se ficasse só na garantia dos direitos clássicos, mas que se enveredasse pelos direitos econômicos, sociais e culturais. Essa identidade se estabeleceu, mas encalhou em certas especificidades conjunturais que cada grupo ainda tinha. E que só seriam superadas na medida em que os que encarnavam essas diferenças tivessem a grandeza de não colocar os seus interesses acima dos interesses coletivos”, lembra.

FHC e Haddad na Folha de S. Paulo
O assunto é de tal importância, que entrou recentemente na pauta da Folha de S. Paulo. O jornal abriu manchetes com entrevistas de Fernando Henrique Cardoso e Fernando Haddad em que valorizam o diálogo entre os dois partidos, apesar das divergências.
Haddad, ex-prefeito de São Paulo pelo PT e cotado para encabeçar a chapa do partido nas eleições à Presidência da República, se a candidatura do ex-presidente Lula for impedida, declarou: “Na hora que os EUA estão em risco, os presidentes todos se unem. Não importa se é democrata, republicano, tem uma questão maior, a saúde da nação”. (FSP – Pág. A12 Poder – 22/3/2018)
O ex-presidente Fernando Henrique se expressou em tom conciliatório: “Se eu pudesse reviver a história eu tentaria me aproximar não só do Lula, mas de forças políticas que eu achasse progressistas em geral. Que ajudassem a governar. E acho que o PT deveria ter feito a mesma coisa. Eu gosto de Fernando Haddad, vou votar no Fernando Haddad se ele for candidato? Não vou, mas eu estou dizendo que ele é uma pessoa correta”. (FSP – Pág. A8 Poder – 7/3/2018)
Uma grande aliança do centro para a esquerda, no Brasil, não deu certo. Na verdade, a oposição entre os dois partidos se radicalizou. Esta já era a percepção de Renato Janine em seu artigo no número 7 (2009) da Interesse Nacional. “Foi muito bom, porém, mesmo para quem desejasse essa aliança, que ela não desse certo. Isso porque, caso funcionasse, ela se defrontaria com uma aliança de direita (….). Com a divisão entre os dois partidos, que foi negativa para quem neles via ou vê o melhor da política brasileira, conseguiu-se assim excluir do proscênio político a direita”.
“A vantagem”, destaca Janine no artigo, “foi que esses dois partidos assumiram a liderança política do País. Alternaram-se no poder, que ocuparam em quatro eleições sucessivas. Desde a normalização do País, a presidência da República esteve com um dos dois lados. A desvantagem foi que cada um deles teve de se aliar a partidos bastante criticados pela opinião pública. Numa frase atribuída a Fernando Henrique, eles têm disputado quem irá liderar o atraso”.
A íntegra da conversa entre José Gregori e Renato Janine Ribeiro, ambos conselheiros da Interesse Nacional, pode ser lida na íntegra, como segue:
 José Gregori
A ideia do Eugênio Bucci foi feliz, no sentido de marcar a demonstração prática de que não há nada mais importante no Brasil atual do que o diálogo; o diálogo é possível entre pessoas que têm percursos políticos e, às vezes, partidários diferentes, mas têm inteligência e patriotismo suficientes para procurar convergências criativas e produtivas. O objetivo desta conversa não é só o conteúdo estimulador que ela possa ter para o leitor, mas comprovar que pessoas que não têm o mesmo percurso partidário estão habilitadas, numa época de crise, que já dura cinco anos no Brasil, a sentarem em torno de uma mesa e buscarem uma saída comum para comungar valores. Pessoas que, apesar de suas diferenças políticas, nasceram, viveram e vão morrer acreditando na democracia, no pluralismo, nos valores humanistas. A identidade nesses valores permanentes é suficiente para aportar, numa hora de irracionalidades, um pouco de clareza em benefício do Brasil.
Renato Janine
Para entender a crise atual, é preciso remontar ao impeachment do Collor
Temos uma crise que, para entendê-la, é bom remontar ao impeachment do Collor. Até esse momento, houve uma grande união das pessoas que tinham combatido a ditadura e ficaram perplexas com a subida ao poder do José Sarney, que era um fiel e leal seguidor da ditadura. Ficaram indignadas, talvez, com a eleição de Collor, que também tinha trabalhado com a ditadura e fez um governo agressivo, autoritário. O impeachment de Collor lembra o momento final em que essas pessoas, que eram contra a ditadura, por valores democráticos, por valores dos direitos humanos, estiveram unidas. Muitos lamentamos que o PT e o PSDB tivessem tomado caminhos diferentes desde o governo Itamar Franco, que era para ser um governo de união nacional.
Em 20 anos, o País foi governado por dois dos melhores partidos políticos
Houve no PT e no PSDB pessoas que militaram para lançar candidaturas comuns e houve também aqueles que foram contra, e consta que Fernando Henrique e José Dirceu foram contra. Cada um insistiu em que os caminhos fossem diferentes. Isso talvez tenha sido uma lástima, talvez fosse uma necessidade do destino, mas trouxe algo, a meu ver, muito positivo: o embate político do Brasil, nestes últimos 20 anos, esteve entre dois dos melhores partidos políticos, que têm valores, ideais, dois partidos capazes de enfrentar as coisas que têm em comum, entre outros pontos, o dos direitos humanos. Ninguém da direita, da extrema direita concorreu nesse período com chances de ganhar.  Então você teria um partido social-democrata, mais ao estilo europeu, e um partido mais democrata cristão, para falar em termos europeus, meritório. Na Europa, vê-se que a alternância no poder se faz sem grandes dramas, sem traumas, e todos eles dão continuidade a certos valores fundamentais, como os direitos humanos e bem-estar social, na maior parte dos casos.
Contudo, essa briga durou tempo demais. Em 2009, eu escrevi nesta Revista um artigo sugerindo um diálogo, um plano comum entre PT e PSDB.
Impeachment de Dilma Rousseff
acirrou clima de ódio

Por volta de 2008, tive a impressão de que o racha já tinha durado muito tempo e deixado claro que cada um desses partidos teria que ter como suporte, no governo, o que havia de menos bom na nossa política, no caso, o PMDB e vários outros partidos, fazendo exceções a alguns membros deles, que são pessoas de qualidade. O pior é que o conflito foi se acirrando, se acirrando, a tal ponto que desde o que uns chamam de impeachment e outros chamam de golpe, o clima de ódio ficou extremamente forte.
Nós temos hoje, no Brasil, duas divisões – uma que opõe a esquerda ou centro-esquerda, à direita como um todo, tanto a direita constitucional democrática quanto a extrema-direita. Essa divisão foi muito forte e se manifestou para promover o impeachment. Já comentei várias vezes que, para afastar Dilma, Aécio Neves levou o PSDB a se subordinar a grupos de extrema-direita, o que além de prejudicar o País prejudicou seu partido.
Direitos humanos: esquerda e direita contra a extrema-direita
A outra divisão que temos é a divisão quanto aos direitos humanos. Nesse sentido, tanto a esquerda como uma parte substancial dos partidos mais à direita estão do mesmo lado, em face da extrema-direita. Mas, é preocupante que uma parte mais conservadora do eleitorado do PSDB, que antes calava a boca, simplesmente votava, não era eleita, não se manifestava, começou a fazer um discurso muito conservador. O que resultou na eleição de deputados do PSDB que representam corporações da PM ou militares, como temos na Assembleia Legislativa, ou também deputados federais, que militam pela escola sem partido, algo que vai totalmente contra o DNA do PSDB. O próprio prefeito de São Paulo (João Dória), que está deixando o cargo, deixa claro em suas ações que os direitos humanos não são uma grande preocupação dele. O problema é que nós, que somos a favor dos direitos democráticos, dos direitos humanos, deixamos que a grande divisão civilizatória, que seria entre a defesa dos direitos humanos e da democracia, por um lado, e o descaso ou mesmo hostilidade aos direitos humanos, de outro, que deveria ser a grande divisão nossa – política – fosse substituída por uma divisão em questões de economia, que acabou tornando o Brasil praticamente tripartite – temos hoje uma centro-esquerda centrada no PT, uma direita que preza os valores civilizatórios (basicamente o PSDB) e uma extrema-direita que faz extraordinário alarido: são pessoas que antes tinham vergonha de dizer no que acreditam, que não tinham candidatos próprios, mas votariam em candidatos de valores civilizados e que, agora, estão tendo uma presença própria sem nenhuma contenção.
A nossa pergunta: é possível que os valores civilizatórios voltem a prevalecer? É possível recuperá-los no seu sentido mais amplo? Ou ficou um poço de mágoa tão grande, um ódio tão grande entre PT e PSDB que mais ou mesmo tanto faz? O extremo disso seria se chegasse o momento em que Bolsonaro (deputado Jair Bolsonaro, de direita) estivesse no segundo turno e houvesse pessoas que preferissem deixar a coisa assim, não votar nele, mas também não votar contra ele. Seria se no segundo turno houvesse alguém de esquerda, pessoas de direita moderada não votassem no candidato do PT. Ou se o PSDB estivesse no segundo turno contra Bolsonaro e pessoas da esquerda não votassem no candidato tucano. Nesse caso, corremos um risco extraordinário, que é diferente do que ocorreu na eleição do Trump (Donald Trump, republicano, presidente dos EUA), quando houve só dois candidatos (Hillary Clinton, do partido Democrata, era a oponente). No Brasil, o risco se agrava, por causa do aumento extraordinário da voz dos extremistas.
José Gregori
O Renato Janine fez bem de fazer essa síntese histórica para relembrar que houve um momento em que a identidade entre o PSDB e o PT estava rigorosamente em aliança contra o regime militar. Na mesma cela de vários departamentos prisionais estavam pessoas que depois vieram a ser do PSDB e do PT. Isso tudo aproxima projetos, sentimentos, que só são possíveis quando há uma identidade fundamental, que é o apreço à democracia e aos valores dos direitos humanos.
 Interesse Nacional: Mas, esse discurso dos direitos humanos parece estar fora da pauta dos dois partidos. Pelo menos é o que aparece no discurso público.
 José Gregori
É exatamente esse o esforço que pessoas como nós e revistas como a Interesse Nacional devem fazer: mostrar que enquanto o Brasil se dedica apenas aos problemas econômicos nunca sai dos impasses.
Plano Real e direitos humanos
 Acho que a boa aceitação do Plano Real não foi só porque ele foi feliz na linha técnica e econômica. É que ao mesmo tempo em que nascia o Plano Real, no Brasil, nascia a política dos direitos humanos. Essa dualidade deve ser encarada como um binômio, cada vez mais os direitos humanos têm de entender de economia e os economistas têm de entender dos direitos humanos.
Está provado no mundo, e o Brasil não é exceção, que só uma ênfase em um desses dois caminhos não é suficiente para o desenvolvimento social necessário.
Retomada progressista após a crise?
Acho que se essa crise brasileira terminar convencendo a todos da necessidade de atacar esses dois campos, como acontece com outras crises, depois de um passivo enorme deixa a possibilidade de uma retomada mais progressista.
Renato Janine
Concordo. Não podemos pensar nos direitos humanos sem pensá-los de uma forma ampliada. Direitos humanos ficaram muito associados, no Brasil, à defesa dos direitos dos cidadãos pobres contra a repressão policial, o que acaba trazendo toda uma hostilidade. Há pessoas que dizem que isso é defesa dos direitos dos bandidos: usam essa expressão horrorosa dos “direitos dos manos”, ou “direitos humanos só para os humanos direitos”, que chegaram a ser ditas por pessoas que jamais esperávamos que fossem falar tais bobagens. Na verdade, se você não tiver acesso fundamental, por exemplo, a uma educação de qualidade, se não tiver igualdade de oportunidades, se não tiver emprego ou trabalho, os direitos humanos ficam muito mutilados, ficam nas nuvens. Isso significa que eles têm de estar traduzidos nas políticas econômicas. Então, se não houver dinheiro, se o Estado não tiver dinheiro, aplicar os direitos humanos fica difícil. No final do governo Dilma e sobretudo no governo Temer, a falta de dinheiro levou a danos fortes aos direitos humanos. Duas coisas acontecem aí: uma é a militância ativa da extrema-direita contra os direitos humanos, outra é a dificuldade dos governos brasileiros, nos últimos anos, para tornar efetivos os direitos humanos.
Um Brasil melhor: desde o governo Itamar Franco houve evolução da educação básica
Desde o ministro (da Educação) Murilo Hingel, no tempo de Itamar Franco que, a meu ver, é quando começa um Brasil melhor, desse período até o final do governo Dilma, vejo o Brasil seguindo uma trilha positiva. Nesses 24 anos, fizemos muita coisa pela educação básica, e ainda é insuficiente, porque o buraco é extremamente fundo. A economia tem de estar associada a isso. Se a economia for demasiadamente autônoma, se for considerada um fim em si, ela atropela muita gente. Se os direitos humanos não tiverem uma estrutura de desenvolvimento econômico, é difícil efetivá-los.
União contra a barbárie
Mas, quero colocar um aspecto positivo, dentro da tragédia horrorosa que foi o assassinato, dias atrás, da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ): o fato de que houve uma reação extremamente forte contra o crime cometido. Uma pesquisa da FGV mostrou que 88% das postagens sobre o caso foram de solidariedade à líder assassinada e só 7% foram hostis. Esse é um dado positivo, que por outro lado diverge do que dizem os leitores que comentam os jornais. Se você olhar os comentários na Folha, no Estadão, é a barbárie, a pura barbárie…
Estamos numa curta janela, no momento, de união contra a barbárie. Penso que, se conseguirmos recuperar essa união contra a barbárie e restabelecermos pontos de diálogo, pode ser um começo.
José Gregori
Eu concordo inteiramente e me associo à ideia do Janine de que os direitos humanos, à medida que se expandiram e penetraram na área econômica, social e cultural, necessitam de recursos. Mas, a outra parte fundamental aos direitos humanos não implica nenhum tipo de despesa. Quando o Estado assegura o direito à liberdade de expressão, o que ele precisa fazer apenas é cruzar os braços. Da mesma maneira, a vida sem a radicalização que o Brasil ganhou nos últimos tempos, sem preconceito, depende de um ato gratuito que cada um tem que fazer consigo mesmo. Essa parte do Brasil que se entregou à radicalização, que se expressa, sobretudo, pelas redes sociais, devia compreender que isso não vai levar a qualquer tipo de melhora individual ou coletiva. Nenhum país que se divide em preconceitos vai longe.
Interesse Nacional, eu, o Janine e o editor responsável Rubens Barbosa deveríamos ver que pacto fundamental poderíamos fazer, no sentido de defender os valores que nós tivemos antes que esses partidos se fundassem e que vão continuar quando esses partidos virarem folhas amarelecidas nos arquivos empoeirados.
Redução da pobreza
Interesse Nacional: quais os aspectos mais práticos poderiam ser acrescentados a essa agenda do pacto?
Rubens Barbosa
Quando se fala em direitos humanos se poderia incluir também a redução da pobreza e, dentro de uma visão de médio e longo prazo, independentemente de quem ganhe a eleição, haveria área de convergência. Há um consenso de todos de que é preciso persistir na redução da desigualdade que o PT aprofundou no governo do Lula e o FH começou, com bolsa escola, etc.
Essa agenda social não poderia ser “despolitizada” no sentido da partidarização e ter também uma base maior que não seja só em direitos humanos, que tenha o apoio amplo para facilitar as medidas sociais com que todo mundo está de acordo, mas, que por questões partidárias, acabam não sendo apoiadas nem por um lado nem por outro.
José Gregori
Acho que a Revista, pelo prestígio e pela qualidade dos seus colaboradores e dirigentes, poderia apoiar três pontos: todo candidato democrático deveria assinar um documento se comprometendo com a preservação da democracia, com o Estado Democrático de Direito e com a prevalência do diálogo sobre a disputa estéril.
ONU e a expansão do desenvolvimento sustentável
E do ponto de vista mínimo, comprometer-se com um programa que siga as linhas do que a ONU divulgou há dois anos para substituir as metas do milênio que são 17 objetivos de uma expansão do desenvolvimento sustentável. Isso seria fundamental para uma tradução prática do que estamos fazendo por meio desse diálogo que, a meu ver, é seminal e pioneiro. E só é possível porque existe um trabalho anterior desta Revista, que procurou esse objetivo.
Interesse Nacional: Renato Janine, um dos conselheiros mais antigos da Revista, poderia recapitular edições passadas que mostraram uma visão pioneira pela aproximação entre os dois partidos, com textos de expoentes do PT, como José Dirceu e Marco Aurélio Garcia?
Renato Janine
A Revista e os valores universalizados
Esse é um ponto que, infelizmente, mostra uma involução do Brasil, porque a Revista surgiu da iniciativa do embaixador Rubens Barbosa de fazer dialogar, em torno de uma meta comum, que era o interesse nacional, pessoas que defendiam meios diferentes. Esses valores são universalizados e uns vão dizer: precisa-se de mais empreendedorismo, de menos controle do Estado. Outros, só o Estado democrático pode promover políticas sociais de igualdade. Mas, apesar dos meios diferentes, tendo um consenso de que devem produzir os mesmos fins, e de que os meios serão corrigidos quando estiverem gerando efeitos indesejados, o que pode acontecer, muitas vezes, com o excesso de liberdade de empresa ou o excesso de controle estatal. Eventualmente, pode-se produzir o contrário do que se almeja. O problema é que, com o passar dos anos, a Revista foi tendo muito mais presente a visão do PSDB, à medida que os ânimos foram se acirrando no País, e seria muito importante recuperar o diálogo na própria Revista.
Tomo a Revista como sintoma. Seria muito importante recuperar valores básicos, como os que o Gregori apontou, como a questão do pacto. Isso está ligado às eleições deste ano, que é um horizonte muito obscuro, mas a gente não errará se disser que há três forças disputando as eleições no segundo turno. Há uma força correndo por fora, mas muito forte, da extrema-direita, há uma força de centro-direita e direita e uma força de centro-esquerda. Como são só duas vagas no segundo turno, não sabemos aonde isso vai dar. E é claro que numa luta desse tipo, para conquistar os votos extremistas, eventualmente a direita pode fazer concessões à pauta deles. O que será muito ruim. Não sei se um pacto como o que Gregori e Rubens propuseram é viável num período eleitoral, explicitamente. Para o PT, o impeachment de Dilma foi um golpe. Pior ainda, o governo Temer surgiu para executar exatamente a política que foi derrotada nas urnas em 2014 – e executá-la com o apoio do PSDB. Para a esquerda, isso suscita dúvidas quanto ao compromisso tucano tanto com a democracia quanto com os direitos humanos. Não se pode ignorar essa desconfiança da esquerda em relação à direita não extremista.
Segundo turno: PT-PSDB, melhores partidos do País
Para o PT, a diferença entre um voto na direita e na extrema-direita pode parecer pequena. Para o PSDB, há a possibilidade de garimpar votos nos extremistas de direita, o que pode levar, e já aconteceu em vários países, a caminhar para uma política mais rígida, a exemplo do que o próprio senador José Serra fez na campanha de 2010, quando usou a expressão “direitos humanos para os humanos direitos”, uma expressão infeliz, e quando utilizou a questão do aborto. Temos um risco grande disso tudo. O cientista político Alberto Carlos Almeida, que já colaborou com a Revista, está convencido de que o segundo turno será PT-PSDB ou, pelo menos, entre gente que tenha apoio forte desses dois partidos. Ele diz que são os partidos organizados, estruturados. Bolsonaro não vai ter palanque suficiente. Essa é uma visão um pouco mais otimista. Queria insistir que, apesar da desmoralização pela qual esses dois partidos passaram, são os melhores partidos que o Brasil tem na sua escala, os melhores! E estão entre os três ou quatro partidos melhores que esse País já teve em sua história.
Rede, um partido aparentemente fracassado. O Novo assume uma agenda quase de extrema-direita
Quando ouço duas pessoas que não conheço pessoalmente, e bem diferentes na posição política, hoje, o cineasta José Padilha e o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, dizerem que é preciso criar novos partidos, fico preocupado. Criar um partido não é um ato voluntarista, é algo que exige muito trabalho, haja vista o que se vê na criação da Rede, um partido aparentemente fracassado, demasiado personalista, demasiado carente de rumo. Ou o Partido Novo, que surge e logo assume uma agenda quase de extrema-direita, uma agenda que não é positiva. Um ponto que deveria estar muito claro é que estamos condenados a ter esses dois partidos, e se os outros que temos se tornarem protagonistas, haverá provavelmente uma piora. Temos de melhorar esses dois partidos (PT-PSDB), fazer que consigam assumir a responsabilidade que têm em vez de ficarem à deriva.
José Gregori
Muitas questões brasileiras que estão dividindo as discussões são fatos ocorridos. A gente deveria deixar que a pesquisa histórica se encarregasse disso e nós nos ativéssemos a medidas que pudessem melhorar a nossa conjuntura. Nesse sentido, acho perfeitamente possível superar essas dúvidas mencionadas pelo Janine e nos encaminharmos a alguma coisa fundamental que possa mostrar à extrema-direita que, tirando ela, o que sobra do Brasil é a favor da democracia, do Estado Democrático de Direito e da luta pelos direitos humanos no seu sentido moderno, que não só não tolera nenhum tipo de violência, como a que vitimou Marielle, mas como outras, que podem surgir ainda.
Acho que a desradicalização é muito importante que seja feita por pessoas como nós, que somos capazes de distinguir as coisas, separá-las e saber que uma coisa não anula a outra.
Se o Brasil fosse hoje um país nazista, vocês iriam para a mesma cela
Para os meus jovens alunos, quando eles têm filiação partidária do PSDB e do PT, e estão brigando no pátio da universidade, eu interfiro e digo: parem já essa briga, pensem que, se o Brasil, por desgraça, se tornasse neste momento um país nazista, vocês dois iriam para a mesma cela. É isso que temos de saber, que a nossa divergência favoreceu extraordinariamente a direita. Ela se sente feliz, como vai se sentir infeliz com esse diálogo atual. Ela adoraria, por exemplo, que no tempo da minha militância nos direitos humanos eu tivesse brigado com o Hélio Bicudo. Entretanto, nomeamos o Hélio Bicudo (que pertencia aos quadros do PT) como representante do Brasil na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Essa procura da convergência básica daquilo que nos uniu nos primórdios da redemocratização é que temos de restabelecer, porque dela depende a vitória das forças progressistas em 2018.
Divergência não pode levar ao destempero, à falta de diálogo
Acho que este nosso diálogo não tem sentido crítico, mas não deixa de ter uma ambição de paradigma em relação ao próprio Supremo (STF). O Supremo tem obrigação constitucional de não ser uma unanimidade; só nos países de ditadura o Supremo é unânime nas suas decisões. Mas, a divergência não pode levar ao destempero e à falta de diálogo entre seus integrantes.
Renato Janine
Haraquiri dos poderes constitucionais
Parlamentarismo seria uma aventura, sem grandes mudanças nos costumes políticos
Isso traz uma questão que não está exatamente no foco do que estamos tratando, mas que afeta toda a nossa vida social e política. O que está acontecendo é o haraquiri (ritual japonês de suicídio) dos poderes constitucionais. Eles foram se autodestruindo. O Poder Executivo, no segundo mandato da presidente Dilma, infelizmente estava se mostrando incapaz de tourear o Brasil. Minha experiência, tanto como observador como enquanto ministro, durante uns poucos, mas decisivos meses, foi triste. Percebi que se você não tiver um Poder Executivo eficaz, o Congresso pinta e borda – e pinta e borda o pior que existe. É o Poder Executivo que consegue dar uma certa racionalidade ao Congresso, o que, ao meu ver, tornaria o parlamentarismo no Brasil uma aventura, caso seja implantado sem grandes mudanças nos costumes políticos, e torna também essa dependência do Poder Executivo muito vinculada à capacidade de articulação política, ao verbo, como tiveram Fernando Henrique e Lula,  mas Dilma não teve –, e à verba, que eles também tiveram – e ela parou de ter.
Gestão da presidente (do STF) Cármen Lúcia é totalmente sem rumo
A esse autoesvaziamento do Poder Executivo sucedeu um esvaziamento, um enfraquecimento do Congresso, a perda de respeito tributado ao poder que seria democrático por excelência, que é o Legislativo, que representa a diversidade, diferentemente do Poder Executivo. Nesse esvaziamento dos dois poderes constitucionais eleitos, o Judiciário se agigantou, mas também se precipitou no abismo. A gestão da presidente Cármen Lúcia é totalmente sem rumo e culmina no espetáculo patético de ontem (21 de março), em que não se pode elogiar qualquer dos dois protagonistas nem a própria presidente, que só lembrou de pedir que parassem a briga quando os dois ministros já tinham falado longamente, primeiro Gilmar, depois Barroso1.
Queima dos poderes constitucionais nos coloca no chão
Essa situação toda de queima dos poderes constitucionais e que começa a afetar o Ministério Público Federal, que teve durante um tempo o papel de mocinho, toda essa queima dos poderes que nos representam, dos poderes democráticos, dos poderes constitucionais, toda essa queima é um ponto que nos coloca praticamente no chão. Parece que temos de partir praticamente do zero.
José Gregori
 Ninguém tem hegemonia para se arvorar em salvador da Pátria
Eu concordo. Realmente, a crise brasileira terá tido esta vantagem, ela expôs os males brasileiros de uma maneira tão crua, que não deixou qualquer setor como exceção que possa ser apresentada como tendo saído bem na fotografia. Todos nós não saímos bem na foto. Então, o que o Renato está falando é fundamental. É uma reconstrução daquele ponto em que ninguém tem uma autoridade hegemônica para se arvorar em salvador da Pátria. E como é um esforço conjunto de todos e de todas, ninguém faz essa abrangência melhor do que os direitos humanos. Por isso, eu recomendei como base desse pacto a declaração da ONU, porque ela foi capaz de colocar em volta de uma mesa todos os países por mais diferentes que sejam em matéria ideológica e política.
Interesse Nacional: O senhor contou que tentou reunir na sua casa pessoas de várias tendências políticas…
 José Gregori
Luta deve ser ecumênica, com os interesses coletivos acima dos pessoais
Esse procedimento foi numa hora de dificuldade, no começo do ano passado, num momento que batia uma desesperança total, e conseguimos colocar na minha casa pessoas de tendências diferentes, partidárias e ideológicas, e acordamos que o terreno comum que poderia nos unir seriam os direitos humanos e a sua concepção moderna; que não se ficasse só na garantia dos direitos clássicos, mas que se enveredasse pelos direitos econômicos, sociais e culturais. Essa identidade se estabeleceu, mas encalhou em certas especificidades conjunturais que cada grupo ainda tinha. E que só seriam superadas na medida em que os que encarnavam essas diferenças tivessem a grandeza de não colocar os seus interesses acima dos interesses coletivos. De lá para cá, cada uma dessas personalidades e entidades tem percebido a necessidade de uma luta ecumênica que não tem o direito de colocar os interesses pessoais acima dos interesses coletivos. Por isso, vim para esse diálogo com mais otimismo do que na última reunião na minha casa. Sei que é um processo e como todo processo tem altos e baixos, momentos de esperança e de desânimo.
STF e Ministério Público não substituem a política
No momento, apesar do mau exemplo havido ontem (21 de março) no Supremo, muito bem condenado pelo Renato, existe a vantagem de se mostrar ao Brasil que o Supremo não substitui a política, assim como já se tinha precedente de que o Ministério Público não substitui a política.
Essa equalização das virtudes e dos defeitos torna o momento ecumênico e, como tal, um momento em que todos devem colaborar igualmente.
Interesse Nacional: vamos colocar essa visão que vocês deram de necessidade de se fortalecer o PT e o PSDB, e não da criação de novos partidos no contexto da existência de movimentos apartidários na sociedade voltados, entre outras funções, a preparar candidatos em busca de renovação na política.
José Gregori
É pertinente ligar isso ao que eu estava falando. Dessas reuniões na minha casa, que foram pioneiras, vimos que, ou por telepatia ou porque souberam que elas estavam acontecendo, muita gente se reuniu em outros lugares para ver como superar as dificuldades, como poderiam agregar vontades para se apresentar nas eleições de 2018 de uma maneira diferente da expectativa geral. E isso é mais útil para o Brasil – queria dizer que mais uma vez concordo com o Renato – do que tentar formar partido novo. Acho que fortalecer e dar musculatura de ideias, de convergências e de boas alianças aos partidos atuais é muito mais inteligente e produtivo do que tentar novo partido.
Interesse Nacional: então esses movimentos são positivos para canalizar forças e visão de renovação para os partidos mais sedimentados que existem, o PSDB e o PT?
José Gregori
Setores progressistas devem se empenhar mais
Acho que sim. Pelo menos um dos objetivos nas reuniões na minha casa era conclamar os jovens com propensão política a que se candidatem nestas eleições com boa plataforma. Acho que a leitura desta nossa entrevista já será uma forma de colaborar com ideias para a plataforma de cada um.
Acho que só será surdo e mudo à nossa conversa aquele que tiver, infelizmente, corporificado uma tendência de um lado e de outro, mas sobretudo da direita. Porque realmente a direita tem um candidato forte, muito bem cotado nas pesquisas, e isso deve fazer com que os setores progressistas, que acreditam nos direitos humanos, tenham ainda mais dedicação e juízo do que tinham até então.
Renato Janine
João Dória não tem compromisso com os direitos humanos
Sou um pouco mais pessimista do que o Gregori porque fico muito preocupado com o candidato do PSDB ao governo do estado (João Dória), que tem fortes chances de ganhar. Ele não tem compromisso com os direitos humanos. Ele se associou a grupos como o MBL, que tem um discurso muito contrário aos direitos humanos. Preocupa-me profundamente que um dos dois grandes partidos brasileiros tenha perdido, nessa situação específica, um elemento fundamental de seu DNA. Por isso, não sou tão otimista quanto o Gregori nesse assunto. Voltando um pouco à questão dos partidos, os EUA têm primárias nas quais os aspirantes se ofendem de maneira muito agressiva, como foi na indicação do Trump, e oito anos antes, na indicação do Obama pelos democratas. No caso do partido Democrata, apesar de todas as críticas de Clinton a Obama e de todas as críticas de Obama a Clinton, puderam os dois trabalhar juntos e não passou pela cabeça de nenhum criar um novo partido.
Aqui no Brasil, por muitíssimo menos, por uma disputa de acesso ao fundo partidário, você cria um novo partido. Consta até que alguns pequenos partidos teimam em lançar candidato a presidente, porque a fatia do fundo partidário pode garantir uma boa vida a alguns poucos líderes. Temos uma proliferação grande de partidos. E aí vai bater naquilo que eu disse sobre os comentários de Boaventura e Padilha, que é essa crença brasileira muito forte de que o passado não pesa, de que o futuro pode ser obra de voluntarismo: “então vamos criar um novo partido!”… Isso não é uma coisa trivial, mas uma coisa complicada.
É preocupante que o PT tenha o Lula como único nome forte
Estamos de acordo que os dois grandes partidos deveriam se reformular e se fortalecer, o que passa muito pela renovação de quadros de liderança. É preocupante que quase 40 anos depois de sua fundação, o PT tenha o Lula como o único grande nome fortíssimo e que o PSDB não tenha nenhum nome forte para a presidência da República. Alckmin está concorrendo simplesmente como resto, não como uma opção forte. Isso é preocupante. No caso do PT, todos os grandes nomes estão na mesma faixa etária, em torno dos 70 anos, tirando o Haddad, 15 anos mais novo. No PSDB, o nome mais jovem que surgiu, o Aécio, cometeu um haraquiri tão terrível politicamente, caso clássico da soberba, da desmedida que os gregos chamam de hybris e que faz surgir a Nêmesis (segundo a mitologia grega, deusa da vingança e da justiça equitativa) para castigar, bom exemplo de tragédia antiga.
Compartilhar metas comuns, aceitar fins diferentes
Sobre a criação de novas lideranças, esses movimentos de renovação política, não conheço suficiente para poder dizer a respeito. Andei conversando com gente do movimento. Agora, me pareceram realmente interessados em algo novo e tive a impressão, pelo pouco balanço que me fizeram, que dão apoio às políticas sociais que o PT instalou, junto com uma política econômica mais liberal. É inteiramente legítimo e atenderia, ao que eu e Gregori temos insistido, à razão de ser desta Revista, que é o compartilhamento de metas comuns, mas aceitando meios diferentes. É o mesmo que, no fundo, Lula e Dilma fizeram: nenhum dos dois foi radical de esquerda. Nenhum tentou acabar com o capital privado, nenhum tentou tirar isso, e mesmo as políticas de Dilma na economia eram inspiradas pela convicção de que a empresa privada seria protagonista, com o Estado criando a infraestrutura forte de que o País precisa.
Direitos humanos, a pedra de toque de qualquer futuro positivo para o Brasil
Terminei agora de escrever um livro sobre minha experiência ministerial, que vai se chamar “A Pátria Educadora em Colapso”. Faço um parêntese para dizer que a grande referência de economia para a Dilma é o livro da Mariana Mazzucato, “O Estado empreendedor”. Muita gente não conhece isso, mas há um jogo entre as duas – a autora se inspirava no que a Dilma fazia e a Dilma se reconhecia no que a Mariana Mazzucato escrevia.
Penso que os movimentos de renovação política podem ser muito positivos, mas não sei em que medida eles têm colocado como sine qua non a questão dos direitos humanos, que é para nós o que interessa, é para nós a pedra de toque de qualquer futuro positivo para o Brasil e requer políticas econômicas que promovam a inclusão social.
José Gregori
 Estrada de Damasco virá, mas depende muito da nossa luta
Eu continuo otimista, porque acho que as coisas avançam dialeticamente e não há dúvida que essa crise apresentou uma série de deficiências, mas mostrou também que fatos, como esse da repercussão nacional de indignação com a violência que sofreu Marielle, há 30 anos era canto de página num jornal. Isso mostra que a consciência do que ela simbolizava cresceu e o que ela simbolizava – pelo menos o que foi destacado até agora – é a sua luta pelos direitos humanos. Aquilo que ainda não me satisfaz, em uma ou outra declaração de algum líder do PT, que às vezes me assusta por um certo sentido revanchista, em uma ou outra declaração do líder do PSDB, que também assusta e desagrada ao Janine, é que a nossa caminhada ainda está começando e que a estrada de Damasco (expressão bíblica que pode significar mudanças profundas de rumo) virá, mas ainda depende muito da nossa luta.
Renato Janine
 Aspecto positivo: toda a podridão
vindo à tona

O Gregori levantou uma questão muito importante que seria o aspecto positivo de toda essa podridão vindo à tona, que é o Brasil poder olhar a sua cara e que ela não é tão bonita quanto a gente gostaria, e que certas coisas não podem ser mais toleradas. Essas coisas são muitas, passam pela corrupção, passam pelo caráter extremamente injusto da nossa desigualdade social, passam pela inadequação estrondosa dos poderes constitucionais à sociedade, passam pela percepção forte de que as chamadas elites não têm a menor ideia de como pensam, sentem e vivem os mais pobres. São muitos pontos que estão surgindo, alguns devido à liberdade de imprensa, outros, devido à tomada de palavra por outras vozes, via redes sociais. Hoje, é fácil desmentir uma mentira da imprensa. Antigamente, não havia condições para isso. Hoje, quando a imprensa mente, você pode fazer um desmentido que ela própria tem que engolir. Eu vi uma experiência dessa quando a TV Globo, no meu tempo de ministro, divulgou ataques ao programa Sem Fronteiras. Uma das moças entrevistadas foi ao Facebook, minutos depois, dizer que tinham deturpado a entrevista dela. Durou uma hora a entrevista e pegaram só o momento em que ela criticava e nada do que ela elogiou. Daí o Chico Pinheiro (âncora da TV Globo) teve de fazer uma retificação. No passado, ela mandaria uma carta que seria jogada em uma gaveta e pronto.
Com tanto tempo de crises, não desenvolvemos estratégias de como lidar com elas
Nós temos hoje uma visão muito maior do país, mas essa visão é muito feia. Talvez um problema seja essa nossa dificuldade de lidar com a crise. Eu fiz um balanço dos anos de minha vida consciente, de 1960 para cá. O que tivemos de esperança e até euforia, sem fazer nenhum juízo de valor, foram a ditadura na fase Médici, o primeiro mandato de Fernando Henrique, os dois mandatos de Lula e dois anos do primeiro mandato de Dilma. A maior parte do tempo foi de crises, tempos de pessimismo, de não enxergar caminho. E com tanto tempo de crises não desenvolvemos estratégias psíquicas, políticas, humanas, de como lidar com elas. Quando se abate uma crise sobre nós ficamos totalmente desarticulados, arvorados, não sabemos o que fazer e pensamos que o fim do mundo se aproxima.
Vejo poucas forças à altura dos desafios. Gente indo para o exterior, pessoas se alijando da política
E como nós tivemos, desde o Plano Real, mais anos bons do que ruins, ficou um otimismo que agora se sente ceifado, sem saber o porquê, qual a causa dos nossos males e como enfrentá-los. Parece que a solução cai do céu, Plano Real com Itamar e FHC, inclusão social com Lula. O que faremos? Esse é um desafio gigantesco. O problema é que todas as chagas estarem à mostra é um desafio muito grande. Agora vejo poucas forças à altura desse desafio, pouca gente fazendo um balanço que consistiria em dizer que o problema no fundo é muito sério, mas temos meios de enfrentá-lo. Vejo gente querendo ir para o estrangeiro, gente se alijando da política ou procurando soluções supostamente fáceis que não vão resolver nada. É preciso, além de os partidos ganharem musculatura, a sociedade ganhar musculatura.
José Gregori
Aproveitar a crise para dar outro sentido à eleição de 2018
Todo nosso esforço para mim foi prazeroso. Vamos aproveitar esta crise para dar outro sentido à eleição de 2018, como prova, em primeiro lugar, de que a política é insubstituível. Em segundo lugar, como prova de que o Brasil não tem dono e, em terceiro, que cada um neste instante é tão importante quanto cada um.


  1. Na sessão de 21 de março de 2018, do Supremo Tribunal Federal, ao proferir seu voto o ministro Gilmar Mendes atacou indiretamente seu colega Luís Roberto Barroso, que prontamente tomou a palavra e o acusou de ser “uma pessoa horrível”. A presidente do STF, Cármen Lúcia, tentou interromper a sessão – mas apenas depois de trocados os desaforos entre os ministros – e mesmo assim o secretário do tribunal teve que lhe perguntar se estava, mesmo, suspensa.

Resumos Biográficos

  • José Gregori

É bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Dedicou grande parte da sua vida a uma atividade que ele chama mais de cívica do que propriamente política, no campo dos direitos humanos. “Na minha geração, quando se começou a praticar um certo ativismo, o Brasil era democrático sob a égide da Constituição de 1946. Depois, veio a deposição da ditadura Vargas e se tinha a impressão de que o Brasil finalmente se alinhava como um país democrático. Porém, veio logo a surpresa de 64. Ficamos 20 anos sob o regime autoritário”. José Gregori conta que nessa época se dedicou “a Dom Paulo Evaristo Arns e a uma resistência ao regime, em São Paulo, que teve o nome de Comissão Justiça e Paz”. De lá para cá, inclinou-se predominantemente a interesses e lutas em favor dos direitos humanos.
Em depoimento a Interesse Nacional, Gregori afirmou: “É nessa condição que eu, como homem de fé, quero me apresentar lá em cima com essas credenciais. Quero dizer: entendo um pouco dos direitos humanos. Tem muita significação para mim a luta com Mario Covas, Geraldo Alckmin, Fernando Henrique, Marta Suplicy, João Sayad e com o diretor dos presídios, João Benedito de Azevedo Marques. A luta que todos nós empreendemos para detonar a antiga penitenciária (Carandiru) onde houve o massacre de 111 prisioneiros e que hoje abriga um jardim público com uma biblioteca em vias de ser considerada a melhor do mundo”.
José Gregori foi ministro da Justiça e embaixador do Brasil em Portugal. Considera-se um tucano moderado.

  • Renato Janine Ribeiro

É professor de filosofia na USP e professor visitante na Unifesp. No primeiro ano do curso de filosofia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, Janine conta que houve um bombardeio pelo comando de caça aos comunistas. “Foi um marco terrível, poucos meses antes do golpe, que foi o AI-5. Como eu estudava na Aliança Francesa, ganhei uma bolsa pelo meu desempenho e passei três anos e meio na França, sem ser exilado político”. Em depoimento à Revista, ele relata: “Foi uma fase em que o Brasil estava péssimo, no fim de 1972. Voltei em 1976, já contratado pela USP, e essa experiência francesa foi extremamente importante para mim: ver a democracia em funcionamento, ver os jornais de extraordinária qualidade, o Le Monde, provavelmente, naquela época, o melhor jornal do mundo, e assistir a aulas no Collège de France, ter contato com a filosofia francesa no momento talvez de seu maior esplendor, com Foucault, Deleuze, Lyotard, outros autores importantes”. Sobre sua formação acadêmica, diz que sempre foi da filosofia política, o que o levou, depois de fazer um mestrado e um doutorado sobre Thomas Hobbes, a entender que filosofia política só tem sentido se ela se confrontar com as políticas atuais. “Nessas várias décadas, 40 anos, aprendi como se utilizam os clássicos e hoje, para mim, o mais importante é Maquiavel. Eles ajudam a pensar como a política está funcionando e os fatos ajudam a rever os filósofos. Isso está presente nos meus livros, sobretudo no “Sociedade contra o Social” e “A Boa Política”, que lancei no ano passado”.
Renato Janine foi diretor de Avaliação da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), onde ficou quatro anos e meio cuidando da avaliação dos doutorados e mestrados do Brasil. Depois, teve um período de seis meses no governo Dilma, como ministro da Educação, “o que me permitiu ver e aprender muita coisa. Todas as situações foram de aprendizado. Esse período no ministério foi muito difícil, porque a crise estava terrível. No tempo da reeleição, a presidente talvez não tivesse ideia do tamanho do rombo que o Brasil tinha. Pouco depois da reeleição, a popularidade dela tinha despencado, movimentos de protesto estavam extremamente fortes, foi o começo dessa devastação que assola o Brasil e que, acho, torna nossa discussão ainda mais importante, porque em meio a isso tudo os direitos humanos estão pagando um preço bastante alto”, comenta. Renato Janine diz que nunca se filiou a partido algum.

Maria Helena Tachinardi é jornalista, editora da Revista Interesse Nacional.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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