11 julho 2019

Os Obstáculos à qualidade e à equidade de Educação no Brasil

O Brasil tem as condições necessárias para ser um país com elevado grau de educação: um idioma unificado, população concentrada em cidades distribuídas em território contínuo, um dos maiores PIBs do mundo, com elevada carga fiscal nas mãos dos governos, mais de 8 milhões de universitários, bom sistema de integração por transporte e certamente um dos melhores em telecomunicações. Apesar disto, temos um dos piores e possivelmente o mais desigual sistema de educação de base entre todos os países do mundo. Isto decorre de obstáculos – culturais, políticos, sociais, ideológicos, financeiros – que devemos superar para que, no Brasil, a educação de base esteja entre as melhores, e todos seus habitantes tenham acesso a ela, com a mesma qualidade sem depender da renda, nem do endereço da família do aluno.

I Culturais: como pensamos

 

  1. Visão de Educação como direito de cada pessoa, não como vetor do progresso econômico e promotora da justiça social

O Artigo 205 da Constituição determina que a educação é um direito, sem afirmar que ela é o vetor do progresso econômico, nem que ela deve ser ofertada com a mesma qualidade para todos, como condição para servir como cimento da justiça social. A falta de consciência deste papel da educação impede ver cada estudante como um patrimônio nacional: não vê que cada um deles que abandona a escola, cada cérebro que deixamos sem plena formação é uma perda para todo o país, não apenas para o jovem e sua família. Devido à falta desta consciência nacional, o abandono escolar de quase 1 milhão de alunos por ano, quase mil por hora escolar, 20 por minuto, não traumatiza o país. Diferentemente de petróleo, ouro, ferro e dinheiro vistos como riqueza, nossos cérebros não são vistos como fontes de riqueza nacional. Jamais imaginaríamos queimar poços de petróleo ou dinheiro, mas incineramos cérebros ao negar-lhes acesso à educação com a máxima qualidade.

  1. Complexo de inferioridade intelectual

Apesar de que uma criança brasileira nasce com o mesmo potencial cerebral das crianças de qualquer outro país, apesar de que não há fator genético que nos dê vantagem com os pés e desvantagem com o cérebro, nossa mente tem um complexo de inferioridade que não nos deixa imaginar, nem mesmo desejar sermos campeões do mundo em educação. Por alguma razão na formação da mente brasileira, temos a ideia de que outros países têm mais vocação intelectual do que nós. Esta é uma das razões pelas quais nossos eleitores e nossos políticos não priorizam educação com a mesma força e obstinação de outros povos, nem com a mesma ambição que temos para outros setores, como a indústria e o futebol. Queremos melhorar a educação, mas não temos a ambição de sermos um dos melhores do mundo; melhorar em relação a nós próprios, sem motivação nacional de nos igualarmos e estarmos entre os melhores do mundo.

  1. Vemos a educação e o conhecimento como possível passaporte para a riqueza, não como riqueza em si

É impossível ver um adulto judeu analfabeto, qualquer que seja o país em que ele viva, e todos eles têm a meta de grandes estudos, com cobrança mútua; a primeira coisa que faz um refugiado sírio ou palestino é buscar escola para os filhos; em plena guerra civil, as facções do Líbano faziam trégua no período dos exames escolares; os japoneses, coreanos e outros povos tratam a educação como questão de vida. Nós não temos esta obsessão, não somos maníacos por educação. Além de complexados intelectualmente, não damos à educação o valor que damos à riqueza material, à conta bancária, ao tamanho da casa e à velocidade do carro. Para os que pagam, a escola privada é vista como uma caderneta de poupança onde se deposita a mensalidade escolar para depois receber o salário de doutor; a educação é valorizada por servir de escada para a riqueza; não como riqueza em si. Por isto, mesmo os brasileiros que dão importância à educação de seus filhos, ficam tristes quando na adolescência eles decidem ser professores ou filósofos, profissões educadas, mas vistas sem chance de boa remuneração.

  1. Descrença no potencial intelectual dos pobres

Entre as muitas marcas deixadas por 350 anos de escravidão está a aceitação de que certas posições sociais são privilégio de alguns; uma dessas é a educação de qualidade. A velha afirmação de estarmos superando que negros sabiam seus lugares na sociedade. Felizmente, mas a escola de qualidade, em tempo integral, bilíngue, com atividades como natação e balé, ainda é considerada como lugar onde os “pobres sabem não ser deles”. Ainda vemos educação como privilégio de alguns, ainda aceitamos educação de qualidade como “coisa de rico” e de alguns raros pobres. A ideia de que “os filhos dos pobres devem estudar em escolas com a mesma qualidade das escolas dos ricos” ainda é vista como uma demagogia ou utopia. Por isto, nenhum partido adotou esta ideia como seu tema, muitos dos seus dirigentes e filiados não acreditam ou não querem.

  1. Sensação de avanço na qualidade, quando comparamos o Brasil de hoje com o Brasil de ontem

A educação de nossa população melhorou entre os anos 1980 e 2019. Esta realidade ilude porque apesar de melhorar, estamos ampliando três brechas: entre a educação dos pobres e dos ricos; entre nosso nível de conhecimento e as novas exigências de educação para o mercado e a qualidade de vida; a brecha da educação no Brasil e a educação em outros países. Melhoramos nos comparando conosco, ficando para trás em relação ao mundo, às necessidades e à equidade. Este sentimento de acomodamento diante de ligeiras melhoras obstaculiza o salto que precisamos dar na qualidade e na equidade, porque não basta dizer que estamos melhorando em relação a nosso passado, sem olhar onde estaremos no futuro.

  1. A ilusão com algumas ilhas de relativa excelência

Cada vez que tomamos conhecimento da triste realidade de nossa educação, sempre surgem opiniões para lembrar que já fomos piores e de que dispomos de algumas unidades com qualidade. Contentamo-nos com “ilhas de excelência”, sem percebermos que a definição de excelência decorre da comparação com a realidade do resto do país, não com a qualidade no resto do mundo educado. É como se na próxima Copa comemorássemos perder de 5×1 para a Alemanha, não mais de 7×1.

  1. Nosso desprezo à educação

Orgulhamo-nos de ser o “país de chuteiras”, não do lápis, canetas, computadores, batas de cientistas ou becas de formandos. Quando queremos dizer que uma pessoa não está no seu juízo, chamamos de filósofo, poeta, escritor; quando chamamos de doutor queremos dizer que pertence a uma classe mais elevada, não que é sinônimo de culto, educado e inteligente.  Os pais reclamam quando um jovem escolhe profissões intelectualizadas sem bons salários no mercado porque desejam uma profissão de melhores salários, não de maior formação; aos jovens com dificuldade para passar no vestibular de medicina, engenharia, recomenda-se fazer pedagogia. Os salários de professores é o menor entre os que têm o mesmo nível de educação. Este desprezo à educação é um dos mais fortes obstáculos.

  1. A escola desincentivadora

Os navios negreiros tinham marujos encarregados de impedir escravos de saltarem para a morte no mar, fugindo das más condições dos barcos, da melancolia provocada pelo distanciamento de suas terras e pelo medo da escravidão que lhes esperava do final da viagem. Nossas escolas agem como navios negreiros pela falta de qualidade para atrair os alunos, com conforto, prazer de aprender, esperança de um bom futuro. Por suas condições físicas, seus equipamentos, a desmotivação geral e sem ver o papel dos estudos que recebem para lhes garantir um futuro melhor, nossos alunos abandonam a escola, saltando para um afogamento social por asfixia de conhecimento. Mas, diferentemente dos navios negreiros, não há esforço para evitar a fuga de nossos alunos, porque os escravos eram vistos como mercadoria valorosa e que seriam motores da riqueza com seus braços, nossos alunos não são vistos com valor, seus cérebros não são vistos como os motores da riqueza graças ao conhecimento que adquirem. Por isto, não fazemos o necessário esforço para evitar que se suicidem intelectualmente: não fazemos a escola atraente, não temos os equipamentos que falem a linguagem deles, nem psicólogos que os acompanhem. Fechamos os olhos para cerca de 1 milhão de estudantes que anualmente abandonam as escolas, como os escravos tentavam abandonar os navios negreiros.

  1. A discreta dor escondida na deseducação

A incapacidade das lideranças nacionais para mostrar as consequências e dores da falta de educação é uma das causas de nossa falência educacional. Não saber ler impede a pessoa de viver plenamente, mas não a impede de respirar, nem dói fisicamente; a falta de educação provoca fome, desemprego, pobreza, doenças e mais problemas, mas não provoca um sentimento direto de dor. As “dores” da deseducação decorrem do convencimento que mostre a relação da falta de educação com os problemas que cada pessoa enfrenta.

  1. Fobia ao estudo

 Mesmo em países com tradição intelectual, há pessoas que não gostam de estudar. Mas, o descuido histórico com educação – prédios ruins, equipamentos antiquados, professores desmotivados, aulas suspensas – amplia a fobia ao estudo no Brasil e leva ao abandono da escola. Até quando se tenta melhorar a qualidade, fazendo a escola exigente, e o desinteresse dos alunos pode aumentar. Sem apoio que entenda e ajude a superar este sentimento, isto funciona como uma dificuldade para a busca de mudar o nosso quadro de deseducação.

  1. Falta de percepção de vantagens decorrentes do aprendizado

 À fobia ao estudo e à hostilidade da escola soma-se o sentimento de que a educação não trará vantagem para o aluno: não lhe garante emprego, nem renda alta, não traz reconhecimento, nem facilita seu caminho à felicidade. A fobia no presente e a miopia no futuro se unem como um obstáculo quase intransponível.

  1. Prisão ao imediatismo

O apego do Brasil a resultados imediatos dificulta a execução de estratégias de longo prazo que a educação exige. Nossa mente não tem paciência histórica para esperar o demorado resultado dos investimentos educacionais de máxima qualidade. Um estádio traz resultado já no primeiro jogo, uma estrada desde quando passe por ela o primeiro carro, até mesmo a universidade oferece resultado no dia em que o aluno é aprovado no vestibular; a escola de base só mostra seu resultado quando seus alunos crescem, décadas depois. Por isso, dificilmente um candidato se elege no Brasil oferecendo melhor educação de base, sobretudo se, sem demagogia, diz de onde vai tirar dinheiro, interrompendo outras prioridades para financiar educação; se disser que devemos congelar salários de outras categorias para fazer o salário do professor subir relativamente em relação a estas outras, e exigir avaliações periódicas dos professores bem remunerados; acabar com a promoção automática explícita na educação de base e disfarçada no ensino superior. Os lemas “50 anos em 5”, que seduziu o Brasil nos anos de 1950, e o “milagre brasileiro”, no regime militar, não se aplicam a um projeto de longo prazo para a educação. Por isto, os políticos entendem que os eleitores não querem esperar e relegam a educação de base.

  1. Acreditamos em Pero Vaz de Caminha

Os 350 anos de escravidão provocam até hoje um obstáculo à busca da igualdade, a carta de Caminha provoca até hoje a sensação de que o Brasil não tem necessidade de esforço educacional maior, porque a riqueza de nossa natureza é capaz de prover as necessidades de cada brasileiro. A abundância que vem da natureza e a oferta de trabalho vindo da mão de obra barata, da senzala ou da favela, viciaram a elite dirigente brasileira na sensação de que não há aqui a mesma necessidade de educação que têm os povos que vivem em ambientes hostis e onde o espírito republicano impede a desigualdade de renda que “escraviza” as massas sem educação.

  1. A percepção de que não é necessário estudar muito quando a maioria estuda pouco

 Em uma sociedade onde a maioria não estuda, a minoria não precisa estudar muito. Um brasileiro que fale outro idioma além do português é considerado poliglota, não apenas bilíngue. Isto vale para todas as outras áreas do conhecimento, inclusive matemática, ciência e filosofia. Por isto, temos bons cientistas e filósofos quando nos comparamos entre nós, mas nenhum Nobel em ciência está previsto para as próximas décadas para um brasileiro vivendo em território brasileiro.

II Sociais: como somos

 Necessidade do trabalho infantil para gerar renda às famílias pobres
A persistência da pobreza e da desigualdade é um obstáculo ao salto educacional, porque famílias pobres têm necessidade de tirar seus filhos da escola para o trabalho, para tentar a sobrevivência imediata de suas famílias. Por isto, era tão importante o programa Bolsa Escola quando tinha uma concepção educacional, antes de se transformar e adotar a concepção assistencial, ao substituir a palavra “escola” pela palavra “família”, ter sua gestão transferida do MEC para o ministério que cuida da assistência social e ao misturar beneficiários, independentemente de serem mães de crianças em idade escolar, idosos ou deficientes. Reduziu-se a chance de quebrar o obstáculo da pobreza à frequência e à assistência escolar. De certa forma, a Bolsa Escola “usava” a necessidade da família por renda para induzir a frequência das crianças pobres à escola.

  1. Diferença entre os salários dos professores com os salários de outras categorias

Há um consenso nacional de que os salários dos professores são baixos e que esta é uma das causas de nossa pobreza educacional, mas em geral se esquece que a diferença salarial agrava a situação.  Nenhum servidor ou líder sindical se considera obstáculo ao salto educacional brasileiro, mas foi isso que alguns deles fizeram, inconscientemente, ao conquistarem aumentos para seus filiados acima dos aumentos dados aos professores. Esta não era a realidade salarial do serviço público até antes do regime militar decidir privilegiar a burocracia estatal, nem depois da redemocratização em que as corporações com poder, especialmente no serviço público federal, passaram a ampliar seus salários em taxas superiores às dos professores da educação de base.
Sem saber nem querer, estes movimentos sindicais têm agido para que a desigualdade entre os salários de professores municipais e de outras categorias iniba os jovens mais brilhantes, ambiciosos e ousados a buscar as carreiras ligadas ao magistério; esta diferença tende a reduzir não apenas a escolha profissional, como também a motivação durante o exercício da profissão. Ao comparar os seus salários com os de outras categorias dentro do próprio setor público, nossos professores se sentem desmotivados, alguns desistem e outros passam suas carreiras desprestigiados, ou tentando outro emprego, ou sendo obrigados a complementar os salários com jornadas extenuantes que sacrificam o resultado de seus trabalhos para a educação.
 

  1. Movimentos corporativos que lutam pelos professores, mas protegendo-os de avaliações e exigências

Nossa educação estaria ainda pior se não fosse a luta dos sindicatos de professores em defesa de melhores salários. Mas, às vezes, os sindicatos se comportam como adversários da educação ao protegerem professores que estão fora da sala de aula, que não se dedicam às atividades de ensino, além do prejuízo da promoção de longas greves.

  1. Insensibilidade dos que podem pagar boa escola privada para seus filhos

O grande obstáculo à Abolição foi a falta de indignação social contra a escravidão. O mesmo acontece hoje com a educação: não nos indignamos com a estupidez e a indecência de não oferecermos educação de qualidade para todos. Falta-nos despertar a indignação moral que se transforme em ação política. Quando um dia estudarem a insensibilidade da elite rica brasileira, certamente que o comportamento mais perverso depois da escravidão, é o uso de empregadas domésticas para preparar os filhos dos patrões para irem às boas escolas, ginástica, inglês, balé, reforço, sabendo que os filhos delas estão sem escola de qualidade, ou mesmo sem escola de verdade. O que se passa no microespaço social dentro das casas acontece com a sociedade insensível à ampliação cotidiana da desigualdade no berço da inteligência, que é a escola. Esta insensibilidade é um dos mais graves obstáculos à construção da educação de qualidade no país, porque impede a indignação moral com a tragédia da desigualdade no acesso à educação com qualidade.

  1. Preferência pela universidade

Da mesma maneira que a educação de base é vista como um direito individual, e não como um vetor do progresso, a universidade é tratada como escada social, não como alavanca para o progresso. É isto que explica o fato de o Ministério da Educação se comportar como um ministério do ensino superior, e as universidades serem federais e a educação de base ser municipal; faz com que o movimento negro lute por cotas para a universidade, mas não lute para erradicar o analfabetismo, que afeta sobretudo aos negros; isto também levou centenas de milhares de universitários às ruas contra o contingenciamento de verbas para as universidades, com raras faixas em referência aos problemas da educação de base. Desprezando além do financeiro, a universidade sofre o forte contingenciamento estrutural devido ao baixo preparo dos alunos que chegam da educação de base.

  1. Reserva de mercado

 Se os filhos dos ricos e pobres estudassem nas mesmas escolas, a maioria das vagas nas universidades iria para os pobres porque eles formam a maioria da população, como aconteceu com a possibilidade de os negros jogarem futebol. O Brasil ganhará gênios, como ganhou grandes jogadores negros que antes ficavam atrás dos alambrados, proibidos de entrar em campo por causa da cor da pele. Embora não seja uma decisão consciente, muitos da parcela rica da população certamente não se interessam em ver seus impostos financiando educação de base com qualidade para todos, sabendo que a consequência direta será seus filhos terem de concorrer com os milhões de pobres hoje deixados para trás.
Por isto, provavelmente sem fazer opção consciente, as classes médias e altas preferem o sacrifício de gastar parte substancial de suas rendas para pagar escola privada de seus filhos, no lugar de lutarem para que a escola pública seja de qualidade para todos e seus filhos estudem nela gratuitamente. Isto explica o fascínio nacional pelo slogan “universidade para todos”, sem qualquer movimento no sentido de “ensino médio com qualidade para todos”, “filho de pobre na mesma escola que filho de rico”. Também explica porque o Enem era desconhecido quando servia para avaliar o ensino médio e se transformou em obsessão nacional ao servir como exame para entrar na universidade. 

  1. As vantagens dos serviços baratos graças à mão de obra sem educação

A elite brasileira ainda é viciada em serviços baratos, não mais por escravos, mas por trabalhadores de baixos salários ou informais: vendedores na praia, empregadas domésticas, lavadores de carro, jardineiros e pedreiros. A elevação da produtividade e da consciência social elevaria os salários e eliminaria muitas das formas de trabalho que servem às classes médias e altas, até mesmo às classes pobres em alguns domingos. Não se pode dizer que os brasileiros ricos e as classes médias obstaculizam conscientemente a “doce revolução” na educação de base com o propósito de manter estes serviços baratos que já não existem em países educados, mas esta realidade pode pesar inconscientemente nas decisões políticas de eleitores e eleitos, como pesava na manutenção da escravidão.

  1. Violência, urbana e escolar

Como um fenômeno recente, a violência urbana, as drogas e a criminalidade são obstáculos ao salto de qualidade da educação de base. Além de dificultarem o bom funcionamento das escolas, apesar dos riscos, o tráfico tem atraído jovens para atividades que oferecem mais dinheiro do que anos de esforço em estudo nas escolas sem qualidade que frequentam. Além da violência urbana, que dificulta a frequência, a escola é um ambiente hostil pela indisciplina, o bullying, as gangues, a raiva, o desrespeito. Esta violência interna dificulta a assistência e a aprendizagem. Juntos elas obstaculizam o avanço da educação; e por terem tamanhos e características diferentes, conforme seja na escola pública ou privada, agrava a desigualdade.

III. Políticos: os que mandam 

  1. Subsídios públicos à educação privada de dirigentes do setor público

Na Inglaterra, os políticos sentem-se envergonhados se colocam seus filhos em escolas privadas e são levados a matriculá-los em escolas públicas, pelo menos durante seus mandatos, sobretudo se ocupam ministérios. No Brasil, os políticos se acostumaram a fazer o contrário: proteger-se da má qualidade do setor público e ainda usar recursos públicos para pagar escola dos seus filhos, graças a subsídios diretos ou dedução no imposto de renda que recebem. A educação certamente daria um passo se os dirigentes nacionais, políticos e juízes, ministros, governadores e prefeitos fossem constrangidos a colocar seus filhos em escolas públicas. Até que em breve, não haja desigualdade na qualidade das escolas.

  1. Os políticos demagogos e populistas temem o poder crítico que a educação oferece aos eleitores

 Mesmo que digam e até pensem o contrário, os políticos demagogos e populistas são obstáculos à educação, porque sabem que ela destruirá seus currais eleitorais e dificultará a aceitação fácil do eleitor para as promessas ilusórias apresentadas em suas campanhas eleitorais. Podem não se sentir inimigos da educação, mas na sua racionalidade preferem prioridades que além de atender a demandas imediatistas eleitoreiras não facilitam o esclarecimento do eleitor para entender as fragilidades lógicas e as irrealidades do discurso populista e demagógico que apresentam em suas propostas.

  1. Preferência por outras prioridades

Os governos gastaram R$ 70 bilhões para fazer a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016, com raras vozes propondo que estes recursos financeiros fossem investidos em educação; há 60 anos fazemos um esforço para quebrar a desigualdade regional investindo em indústria, estradas, hidrelétricas, no lugar de investir em educação. A situação do Norte e do Nordeste seria provavelmente melhor se uma parte destes investimentos fossem utilizados em uma estratégia de educação.

  1. A visão sectária

Um obstáculo à educação vem da visão sectária na “direita”, achando que educação de qualidade só depois de o Brasil ser um país de renda alta, e na “esquerda”, defendendo que educação de qualidade igual para todos só será possível depois de uma revolução socialista, esquecendo que os países capitalistas da Europa, a Coreia do Sul e o Japão têm suas crianças em escolas com a mesma qualidade, independentemente de serem ricas ou pobres.

  1. A corrupção

 Além de a corrupção roubar dinheiro do público, impedindo investimentos úteis, ela submete educação à racionalidade do lucro de empreiteiras e das eleições dos políticos, mais interessados na construção da obra, vista como mais importante do que os próprios professores. Para servir às empreiteiras e fazer inaugurações, os governos preferem as obras de creches em vez do cuidado das crianças. Daí a construção de elefantes brancos que não atendem ao propósito educacional. Para complicar, milhares de obras de educação estão paralisadas por falta de planejamento e por erro na escolha de construtoras.

  1. O círculo vicioso entre educação de base e o ensino superior

 A universidade existe para fornecer o conhecimento necessário para entendermos a realidade e construirmos o futuro, mas parte dela tem se transformado em ilhas voltadas para seus professores e alunos. A falta de envolvimento da universidade na formação de uma boa educação de base é um obstáculo para o Brasil dar o salto educacional e termina sendo também a causa do fracasso da própria universidade pelo contingenciamento estrutural que sofre devido à falta de alunos com máxima qualidade. Ao asfixiar-se, a universidade asfixia a educação de base que precisa do conhecimento de qualidade do ensino superior na formação de professores, pedagogos, engenheiros e todas as profissões. No lugar de um círculo virtuoso surge um círculo vicioso entre universidade e educação de base.

  1. O tabu da gratuidade absoluta

 A gratuidade da educação de base certamente facilita o aumento no número de matrícula de crianças, mas ao tirar o empoderamento dos pais, termina sendo um obstáculo ao salto educacional, por reduzir a participação dos pais no acompanhamento da educação dos filhos na escola, por pior que seja a escola, os pais se sentem devedores e não credores do governo, da direção e dos professores da escola. A gratuidade absoluta faz os pais se sentirem sem direito a reclamar, protestar ou cobrar, como fazem os pais de classe média e alta que pagam escolas privadas. A cobrança de um valor mínimo para pais que tenham alguma renda fixa com emprego garantido não ampliaria os recursos financeiros para os gastos com educação, mas daria sentimento de poder e direito aos pais diante dos governos, das direções e dos professores. Apesar disto, é quase impossível quebrar o tabu da gratuidade absoluta, o que transforma este princípio em um obstáculo difícil de ser superado.

  1. A mercantilização da mídia

Apesar de a mídia ser um elemento cada vez mais fundamental na educação, a mídia sem compromisso educacional ou cultural impede seu uso para promover educação com qualidade. Uma avaliação de nossas rádios e televisão na ótica pedagógica passa a sensação de que eles não estão envolvidos no esforço educacional e ainda provocam impactos negativos na educação de nossas crianças.

  1. Ignorância histórica – culpa dos outros

Um dos obstáculos ao Brasil melhorar sua educação é a ignorância ou o cinismo dos políticos ao não reconhecerem a responsabilidade de cada um na produção da tragédia que a educação brasileira atravessa como resultado de uma longa história. Cada vez que um novo governo assume, a oposição joga sobre ele a culpa da tragédia que na verdade tem a idade dos 130 anos de nossa república. No final, a culpa não é assumida por ninguém, e a tragédia continua.

  1. Democracia corporativizada

Não faz sentido uma educação de qualidade sem compromisso com a democracia e que não forme cidadãos democratas. Mas, é preciso evitar que a democracia sirva como obstáculo ao avanço da qualidade e equidade no acesso à educação. Isto tem ocorrido no Brasil quando grupos corporativos de partidos, sindicatos, associações usam a força que a democracia lhes oferece para defender seus interesses de grupos, mesmo sacrificando o interesse maior da educação. O que tem se observado é que os grupos com maior poder de pressão conseguem desviar recursos de outros setores para a educação; mesmo dentro do setor educacional há conquistas empresariais e trabalhistas, inclusive de professores que não trazem benefícios diretos à educação.

  1. A democratização contra o talento e a dedicação

 Nas últimas décadas, o processo de democratização foi apropriado pelos grupos corporativos com efeitos nocivos à qualidade da educação. A eleição direta de reitores, que teria o papel de promover a qualidade ao tirar a tutela do Estado, terminou aumentando o isolamento da universidade que passou a ser dominada por interesses de suas comunidades. Na educação de base, a escolha direta dos diretores que trazia a grande promessa de livrar a escola das pressões políticas sobre os prefeitos, terminou promovendo diretores nem sempre preparados para o cargo de gestor e forçando o eleito a atender aos interesses de seus eleitores que não coincidiram com as necessidades da escola.

  1. A municipalização

Em um país com a desigualdade de recursos, fiscais e humanos, entre os municípios, fica impossível buscar qualidade nacional e equitativa deixando a responsabilidade da educação de suas crianças sobre a vontade dos prefeitos e receitas fiscais das prefeituras.
Nenhuma prefeitura tem condições de financiar educação com a máxima qualidade para suas crianças; e se alguma, graças aos royalties especiais, for capaz disto, seus resultados não se espalharão ao resto do país. A qualidade plena e equitativa, que elimine o papel do CEP e do CPF dos pais na qualidade de aprendizado de uma criança, vai exigir que o Brasil inteiro adote a educação de suas crianças. Há décadas, o Brasil se orgulha da campanha “O Petróleo é nosso”, mas não leva adiante uma campanha “Nossas crianças são brasileiras”, não importa onde, nem de quem nasceram.

  1. Ideológicos: amarram as ideias 

  1. Os líderes obscurantistas não desejam aprimorar a educação

Por desejarem manipular o eleitor, os líderes políticos demagogos ou populistas obstaculizam a educação, da mesma forma que líderes religiosos são inimigos da educação por receio de que a escola laica e cientificista possa bombardear as crenças religiosas dos alunos.

  1. Os ideólogos que desejam impor suas visões de mundo

 lém de políticos e religiosos, existem filósofos e ideólogos que temem a educação de qualidade para todos, por medo de que a educação forme senso crítico nos alunos e lhes ofereça visões de mundo diferentes, retirando a força e o prestígio que têm.

  1. Mercantilização da Educação

A ineficiência é um obstáculo à qualidade na escola pública, sobretudo pela generalização da ideia de que um bom gestor é aquele que gasta muito com educação, mesmo que tenha poucos resultados positivos. Mas, a mercantilização agirá para racionalizar a eficiência do menor custo, e não da obtenção da maior qualidade. A mercantilização não se sintoniza com a visão da educação como vetor do progresso, de interesse de todos. Consolida a visão que ela é um direito a ser pago pelos interessados com recursos próprios da família ou por bolsas governamentais e filantrópicas.

  1. O neoliberalismo social

No lugar de promover mudanças substanciais na educação de base para que todos pudessem desenvolver seus talentos e disputar com igualdade de oportunidade quais entrariam no ensino superior pelo talento, os governos preferiram criar mecanismos que corrigissem a desigualdade, usando medidas de proteção para os que foram prejudicados ao longo da formação básica. Esta é uma concepção neoliberal social, porque opta pelo benefício ao indivíduo no lugar das reformas sociais. E beneficia apenas indivíduos que terminaram o ensino médio, abandonando os que ficaram para trás, no analfabetismo e na evasão escolar. Esta opção engana a sociedade e os pobres, fazendo-os acreditar que poderão ser beneficiados, perdendo a perspectiva de fazer as reformas que derrubem os obstáculos, no lugar de fazer pequenos atalhos.

  1. A pedagogia da condescendência

O abandono da educação, a pobreza da família e o atraso de crianças pobres levou a uma pedagogia da condescendência que se manifesta pela promoção automática. No lugar de educar melhor as crianças com reforços, prefere-se fechar os olhos ao mau desempenho a que elas foram condenadas. Mantém-se o desprezo à educação, iludindo as crianças, seus pais e a nação, que não vê o tamanho do desastre. Já que elas não recebem o que precisam para aprender, faz-se a condescendência de dispensar aprendizado.
Além da gravidade da ilusão nacional, quando este autoengano aumenta o número de universitários sem preparo, leva-se à promoção automática também no ensino superior.

  1. A ilusão da matrícula

Há 30 anos, o Brasil tinha entre 20% e 30% de crianças não matriculadas. Hoje nos vangloriamos de ter 93% delas matriculadas. Além do desprezo à gravidade de 7% não matriculadas nas primeiras séries, este fator é uma das ilusões preferidas, sem considerar que a educação se mede por matrícula, frequência, assistência, permanência e aprendizado.

  1. Analfabetismo de adulto

Duas pessoas educadas ficam mais educadas quando convivem entre elas, interagindo seus conhecimentos; uma pessoa educada regride intelectualmente se convive apenas com pessoas sem educação equivalente ou superior. É por isto que alunos pobres evoluem menos quando seus pais são analfabetos, fazendo do analfabetismo de adultos um obstáculo à educação de base das crianças. O analfabeto pleno obstaculiza a educação de seus filhos e o analfabetismo funcional reduz o potencial da educação de todos os brasileiros.

  1. Preferência pela teoria pedagógica

 Paulo Freire foi um homem de práxis entre teoria e prática; foi um grande filósofo, mas também coordenador de programas para a alfabetização de adultos e secretário de educação. Lamentavelmente, nossos pedagogos se dedicam mais a conhecer os geniais escritos teóricos de Paulo Freire do que seguir os passos práticos que ele demonstrou em sua vida. Em consequência, as universidades dedicam mais tempo a suas reflexões do que às ações práticas que ele desempenhou no mundo da educação.

  1. Financeiro: o uso do dinheiro 
  1. Os recursos financeiros necessários

A crise econômica, inclusive com a recessão que está nos condenando a uma década perdida, e o abismal déficit fiscal, com elevação de gastos e redução de receitas, certamente são obstáculos momentâneos a uma revolução na educação. A tragédia da educação brasileira não é resultado dos seus atuais dirigentes, mas dos cortes de verba atuais e próximos; é o produto de todos os governos desde 1889, e não só por recursos financeiros aplicados. O que nós já gastamos permitiria resultados melhores do que temos, sobretudo diante da falta de ambição para fazer o Brasil educado em padrões mundiais e com escola igual para todos.
O salto educacional para colocar o Brasil entre os melhores do mundo e assegurar educação de qualidade para todos vai exigir mais recursos financeiros ao longo dos próximos anos, mas ampliar os gastos no atual sistema terá pouco impacto. O salto educacional requer recursos para montar um novo sistema que em duas ou três décadas substitua o atual frágil sistema municipal por um robusto sistema nacional, com descentralização gerencial e liberdade pedagógica. Este novo sistema exigirá um custo aluno/ano de aproximadamente R$15.000, o que além de financiar a construção e equipamento de uma nova rede de escolas com a máxima qualidade, permitiria oferecer aos professores de uma nova carreira nacional o salário mensal de R$15.000. Com este salário seria possível atrair os quadros mais brilhantes do país para o magistério; além de dar a justificativa para exigir dedicação plena, com avaliações periódicas dos professores.
Considerando um período de 30 anos para a implantação deste novo sistema em todo o território nacional, supondo um crescimento do PIB de apenas 2% ao ano e ao mesmo número atual de 50 milhões de alunos – duas posições conservadoras, porque historicamente a economia cresce mais rapidamente e demograficamente teremos redução no número de alunos –, o custo para o Brasil dar o salto educacional estaria em 6,6% do PIB, o que mostra que a falta de recursos financeiros não será um obstáculo para o salto, se ele for implantado com responsabilidade.

  1. A tentação inflacionária

É possível que a ânsia por resultados leve alguns a defenderem a alternativa de financiamento por meio de inflação. Esta seria uma forma suicida, porque a inflação já demonstrou ser um obstáculo, uma vez que o aumento ilusório de salários com a falsa moeda da inflação condena a escola a sucessivas paralisações para recuperar o corroído poder aquisitivo de seus servidores, professores ou administrativos.

Cristovam Buarque, educador e político brasileiro, foi governador do DF (1995-1998), senador pelo DF (2002), reeleito em 2010 com mandato até 2018. Desde 2020 é membro do grupo científico Justiça penal italiana, europeia e internacional do Iberojur

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