A Eleição municipal e a sucessão presidencial de 2022
Este artigo apresenta uma tese e duas hipóteses sobre a relação entre a eleição municipal recém-ocorrida e o pleito presidencial de 2022. A tese é a de que o resultado da eleição municipal revelou que o sistema político que vigorou até 2018 não se recompôs da implosão a que foi submetido pela ascensão do fenômeno político-eleitoral do bolsonarismo. A primeira hipótese é a de que esse desfecho aumenta ainda mais o grau de indeterminação do processo eleitoral presidencial que ocorrerá daqui a dois anos. A segunda hipótese é a de que, a despeito da impressionante inépcia institucional de Bolsonaro, seja à frente do governo, seja na incapacidade de organizar partidariamente a sua base social e ideológica, o bolsonarismo tem chances de disputar a sucessão presidencial de maneira competitiva.
As eleições municipais têm impacto limitado sobre a eleição presidencial. Sua influência é maior em relação às eleições para deputados federais e estaduais e para governador. A eleição presidencial no Brasil é, de longe, a menos controlada pela lógica das máquinas políticas, sejam partidárias ou governamentais – o que não significa que elas ocorram num vácuo de poder, mas que os elementos que a estruturam são mais diversificados e menos previsíveis. A última eleição presidencial ilustra o argumento, em que pese a sua relativa excepcionalidade, com os exemplos das candidaturas do PT e do PSDB. O PT sofreu grande revés na eleição municipal de 2016 e mesmo assim conseguiu colocar o seu candidato no segundo turno da eleição presidencial dois anos depois. Já o PSDB obteve resultado favorável na eleição municipal de 2016 e fracassou completamente no pleito presidencial de 2018.
A eleição municipal castigou novamente o núcleo dominante do sistema político erigido na Nova República, organizado em torno de três partidos que ditaram a sua dinâmica política e eleitoral: PT, PSDB e MDB. O PT, que sofreu a sua maior derrota eleitoral em 2016, quando perdeu mais de 50% das prefeituras conquistadas em 2012, não se recuperou. Ao partido foi confirmada a imposição de um claro teto eleitoral em disputas majoritárias. Já o PSDB, que foi o partido com a maior votação em 2016 para o cargo de prefeito, com mais de 17,7 milhões de votos, este ano não chegou a 11 milhões, mesmo num quadro de enfraquecimento de seu principal adversário, o PT. O MDB também sofreu queda nesta eleição e, pior, assistiu ao seu rival na estratégia política de captura do poder pela arena congressual, o chamado Centrão, crescer substantivamente.
Se a eleição municipal foi negativa para os três grandes agentes partidários do antigo regime, o mesmo não se pode dizer do bolsonarismo (aqui entendido como partidariamente formado por cinco pequenas agremiações: Republicanos, PSL, PSC, Patriota e PRTB). Por um lado, a força disruptiva de 2018, expressa na violenta rejeição da política convencional associada enfaticamente a duas de suas características resultantes, mas não exclusivas (fisiologismo/corrupção e acordo entre minorias organizadas/políticas de ganho marginal) refluiu, em parte pelo comportamento de Bolsonaro, que continua sem partido e conduz um governo programaticamente errático; por outro lado, o bolsonarismo passou de 6,5 milhões de votos para quase 13 milhões neste ano, sendo o único agrupamento político com pretensão de disputar a eleição presidencial que cresceu no pleito municipal.
Fator sudeste
O quadro político nacional apresenta hoje quatro blocos aglutinadores em termos de provável apresentação de candidatura competitiva na sucessão presidencial. O primeiro deles gravita em torno do bolsonarismo. O segundo está localizado na órbita do petismo. O terceiro envolve a aliança entre PDT e PSB e o quarto contempla PSDB e DEM. O bolsonarismo parece ter conseguido se autonomizar relativamente a Bolsonaro, que preso à lógica personalista e plebiscitária a que está habituado a atuar não conseguiu se adaptar a esta eleição municipal e acabou secundarizado. O segundo bloco obteve um desempenho desfavorável, particularmente para um agente que se propõe a rivalizar com o bolsonarismo. O outro polo neste campo político, ocupado pelo nacional trabalhismo, também não experimentou melhora em sua posição, mas dado o enfraquecimento petista, pode aumentar a sua atratividade tanto no interior do campo progressista como no mercado político mais amplo. Já o quarto bloco, o liberal, obteve resultados contraditórios. O PSDB não recuperou o protagonismo perdido em 2018 e ainda assistiu ao DEM, que tem sido seu aliado satélite crescer e o chamado centrão, na esteira da participação no governo Bolsonaro, ocupar espaços que lhe pertenciam.
Assim, tomando como critério o fator derivado desta eleição que mais pode influenciar o quadro sucessório presidencial, mesmo observando-se o seu alcance limitado, temos, no número da população a ser governada por estes blocos a partir de janeiro do ano que vem, um indicador a revelar um ponto de partida. Dos quatro blocos, o único que ostentou crescimento neste item foi o bolsonarismo. O bloco petista teve pequena queda, já sendo ele o de menor tamanho. O bloco trabalhista ostentou uma queda significativa, por causa do declínio do PSB. E o bloco liberal experimentou, além de uma pequena queda, uma reconfiguração interna com a redução do PSDB (de 25,12% para 16,81%) acompanhada de sua extremada concentração em São Paulo e do crescimento expressivo do DEM (de 5,63% para 12,05%). O quadro a seguir exemplifica:
Um outro aspecto importante a se destacar é o fator sudeste. Ele foi decisivo para a vitória de Bolsonaro em 2018, pois além de ser a região de maior densidade eleitoral, foi onde o sistema político da Nova República se expressou de maneira mais clara: São Paulo e Minas Gerais divididos entre PSDB e PT e Rio de Janeiro sob o domínio do MDB. Os escândalos de corrupção envolvendo os ex-governadores Aécio Neves e Sérgio Cabral devastaram as estruturas políticas destes estados (2º e 3º colégios eleitorais do país), abrindo o caminho para ascensão fulminante do bolsonarismo, cuja intensidade se desdobrou para o plano estadual elegendo os governadores de ambos os estados. Nem em Minas nem no Rio, a eleição municipal fez o antigo regime se recuperar (PSDB e PT tiveram desempenho sofrível nos dois estados e o MDB também foi mal no Rio). E lembremos que o candidato do PSDB ao governo do estado de São Paulo só venceu a eleição em 2018, por margem muito pequena, com a ajuda providencial de Bolsonaro.
A este conjunto de constatações políticas e eleitorais que não apontam para uma estabilidade do sistema político, permitindo-lhe operar numa espécie de “piloto automático” institucional, como ocorreu de certa maneira até 2018, parece-nos conveniente algumas considerações acerca da atual disposição “espiritual” do País que, ademais, tem tido claras manifestações eleitorais, inclusive neste pleito que acabou de se encerar. A sociedade brasileira vem passando por transformações acentuadas que podem ser descritas como uma revolução de consciências, no estilo apontado por Tocqueville. Se, do ponto de vista econômico, a nossa complexidade produtiva vem declinando desde os anos 80, data deste período também o início de uma reorientação de grande monta do ponto de vista moral.
Resumindo a complexidade da manifestação desses grandes movimentos a seus imperativos mais políticos, observamos esquematicamente uma dupla direção: 1) luta pelo estabelecimento entre nós de uma cultura dos direitos, importada dos países do Atlântico Norte, que sempre tomamos como referência; 2) a substituição da teodiceia do sofrimento por uma teologia da prosperidade e da secessão, que tem assumido no Brasil o caráter de um liberalismo para as massas, no qual o ideal de autoconstrução individual é a principal orientação. Em ambos, o discurso de rechaço à lógica dos conluios (representado, por exemplo, no fascínio que o tema da corrupção exerce entre elas) aparece com muita força, embora os seus agentes sociais sejam bastante distintos. Os que lutam pela entronização da cultura dos direitos no Brasil são geralmente de classe média, tem relação com o ambiente da universidade e mobilizam suas atenções contra as iniquidades (sejam elas, por exemplo, ambientais, sociais ou em relação às chamadas minorias). Essa perspectiva não domina o imaginário popular brasileiro.
Já o segundo movimento, representado social e ideologicamente pelos emergentes, especialmente os evangélicos, tem perfil formado por maioria das classes populares ou classe média baixa, que não têm a sua atenção voltada para as referências metropolitanas, como sua congênere de inspiração “cosmopolita”, e seu ideal é o da construção empreendedora. Nela o cultivo do trabalho duro e da disciplina (a noção de dever) como meios para o alcance de suas realizações contrasta com a ênfase dos discursos progressistas do outro movimento em que mudanças coletivas são pautadas pela ideia de compensação e de inclusão (a noção de direito) como terapia dos problemas passados e presentes. Numa, a acepção da agência é afirmada sob a influência do sentimento de reparação. Na outra, o cerne da agência é estruturado na reação contra as adversidades da vida percebidas como desafios morais. Mas nenhuma questão separa tanto os dois movimentos como a tradução política de algumas de suas agendas, como naquelas em que se insinuam mudanças de valores e costumes.
Quatro blocos
Diante desse conjunto combinado de variáveis político-eleitorais e sociológico-morais referidos até aqui, quais são os cenários que se interpõem no caminho da política nacional até as eleições presidenciais de 2022? Voltemos aos quatro blocos políticos. O bolsonarismo tem a seu favor os poderes (materiais e imateriais) que o exercício da presidência oferece – embora também possa acarretar ônus. E conta ainda com a onda que fez o país “virar à direita”. Embora sem a mesma intensidade de seu momento áureo entre 2013 e 2018, ela ainda persiste. O petismo, mesmo em declínio, ainda aparece como uma força política inercialmente relevante: conta com a identificação fiel de uma parte do eleitorado, mas dá sinais claros de isolamento que parecem um impeditivo à aspiração de voltar ao poder central. Já o nacional trabalhismo continua dependente da queda petista e da manutenção da incapacidade dos liberais de recuperarem parte dos eleitores perdidos para o bolsonarismo, o que abriria a possibilidade de receber apoio destes. Os liberais encontram-se imprensados entre o bolsonarismo e a falta de um apelo capaz de alcançar o “centro” para além da vagueza de seu compromisso com a moderação.
A natureza do governo Bolsonaro, desfalcada de qualquer tipo de sofisticação, gerou expectativas frustradas entre os que esperavam sua progressiva corrosão em termos de apoios. Os que nutriam esse desejo misturado com análise, parecem não considerar um dos traços mais notáveis e persistentes da história brasileira: o invariável nível baixo de expectativas dos brasileiros, presente em todas as classes sociais – embora com graus distintos em cada uma delas. Esse fato conta a favor de Bolsonaro. Por isso, a tentativa de comparar a circunstância eleitoral da derrota apertada de Donald Trump nos EUA com a nossa é equivocada. A crise de saúde pública foi sentida e avaliada de maneira muito distinta nos EUA e no Brasil. Além do fato de que a crise sanitária encontrou a economia norte-americana em franca recuperação, ao contrário da brasileira que já estava deteriorada, o que possibilitou a Bolsonaro agir com notável argúcia estratégica, explorando com sucesso as angústias e os medos derivados dos efeitos econômicos da pandemia. Dois anos após o início de seu governo, continua bem colocado em termos de luta pela reeleição.
O petismo experimenta hoje o seu pior momento eleitoral. Desde 1989, sua curva de expectativas eleitorais sempre foi ascendente. Agora está descendente, sem horizonte de recuperação no curto prazo. Até chegar à presidência em 2002, o PT construiu uma bem-sucedida narrativa, na qual o discurso antissistema era perfeitamente temperado com o da lamentação social e o da retórica anticorrupção. À frente do governo por 13 anos, ressignificou sua narrativa enfatizando o “pobrismo” – o ex-presidente Lula sempre alude ao fato de “ter colocado os pobres no orçamento”, sem ter conseguido, entretanto, tirá-los da pobreza, complementam os críticos. O problema é que fora do poder essa argumentação perdeu força junto às classes populares e a antiga narrativa não tem como ser recuperada depois de mais de uma década à testa do Estado nacional. O petismo ficou isolado politicamente – em suas vitórias nas eleições presidenciais sempre teve aliados importantes no establishment como o empresário José Alencar e o MDB. Dada a rigidez de sua natureza política, será consumido por esse dilema até 2022.
Sucessão com transição
O nacional trabalhismo tem como principal desafio expandir-se do Nordeste rumo ao Sudeste, hoje em parte considerável indisponível ao PT e ao PSDB. O enfraquecimento do petismo abre horizonte para que a candidatura de Ciro Gomes possa ser percebida por parte da base eleitoral petista como o mais natural destinatário de seu apoio. Por outro lado, o nacional trabalhismo pode também se tornar eleitoralmente atraente para parte dos liberais que estejam dispostos a derrotar o bolsonarismo, sem correr o risco de ressurgimento do petismo. Outro desafio eleitoral a este bloco político é a construção de um emblema que o bolsonarismo e o petismo, por exemplo, possuem para se comunicar com a maioria do eleitorado. O contraste entre a sua consistência programática e a sua dificuldade de comunicação política é acentuado.
Os liberais ostentam, mais do que qualquer outro bloco político, o paradoxo da relação entre as eleições municipais e a eleição presidencial. Mesmo tendo observado decréscimo em seu desempenho eleitoral, é o grupo com mais capital político saído da eleição deste ano e o que menos tem perspectiva de uma candidatura competitiva em 2022. Sem uma perda significativa de força por parte do bolsonarismo ao longo desses próximos ano e meio, será difícil para os liberais evitarem o desfecho da última eleição presidencial. É sintoma dessa circunstância a ventilação de nomes como o do apresentador de TV Luciano Huck e do ex-ministro Sérgio Moro como possíveis candidatos do bloco.
A próxima sucessão presidencial ocorrerá dentro de um quadro de transição do regime implodido em 2018 para outro que ainda não se manifestou nem definiu. A permanência, no centro do cenário, de um agente com características desestabilizantes, o bolsonarismo, só aumenta o grau de incerteza. O quadro segue se modificando e, com ele, o próprio bolsonarismo. É improvável a reprodução do contexto que marcou a última disputa presidencial. O pleito de 2022 será conduzido sob a predominância das forças da indeterminação e da contingência. A história permanece aberta.
É doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF). Foi assessor especial da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República no período 2007-2009.
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