01 outubro 2008

Antirracismo contra leis raciais

Na virada do século xxI o Brasil acor­dou com a notícia de que o governo federal havia declarado cotas raciais como política pública: 20% das vagas no fun­cionalismo público seriam destinados a “ne­gros”. Em seguida, o governo do Estado do Rio de Janeiro reservou 40% das vagas nas suas universidades para pessoas que se definissem como “negros ou pardos”. Para poder partici­par do vestibular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, os candidatos tiveram que assinar um termo de compromisso aceitando as novas regras do concurso. A pergunta nº 24 era definitiva: “De acordo com o decre­to nº 30 766, de 4.3.2002, declaro, sob penas da lei, identificar-me como negro ou pardo:( )S-Sim/( ) N-Não”.


As instruções do edi­tal advertiam que, se o campo permanecesse em branco, a resposta considerada seria “não” .Ficava evidente, portanto, que os candidatos, para se inscrever, não podiam escapar da obri­gação de classificar-se “racialmente” em uma das duas categorias possíveis: “negro ou pardo”, com direito a cota, ou “nem negro nem pardo”, sem direito a elas. Fomos surpreendidos com a adoção das cotas raciais, uma mudança radical do estatu­to jurídico do país, feita por decreto, aprovada sem debate, “de cima para baixo”, num país que acreditávamos democrático. Imaginávamos que nossa cultura fosse forte o bastante para deter os avanços da radicalização e da bipolaridade. Pensávamos que o Brasil preferisse pontes a margens, unir por contiguidade a separar por oposição. Dávamos como exemplo o nosso pró­prio sistema de classificação racial, que recusa a bipolaridade. Supúnhamos que a nossa tradição de uma nação feita da “mistura” sobrepujaria a nefasta ideia de um país de “raças distintas”.

Até hoje, muitos, convencidos de que nossa forte cultura rejeitará uma mudança tão radical (“leis não mudam uma cultura”), descartam a hipótese de que tais leis possam “pegar”. Mas muitos outros estão levando a sério a proposta de cotas e a combatem, por entenderem que políticas desse tipo podem comprometer gra­vemente o futuro do país.

Um pouco de história

No final dos anos 1940 e início dos 1950, anos do pós-guerra,a idéia de democracia contrapunha-se ao nazismo e ao totalitarismo.O mundo se unia na rejeição à noção de “raça”.Em 1946, dois anos antes da promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, Jean-Paul Sartre escrevia o ensaio Reflexões so­bre a Questão Judaica, no qual afirmava que é o anti-semitismo que cria o judeu. Na mesma ordem de idéias, Claude Lévi-Strauss escrevia, em 1952, o seu célebre Raça e História. A Euro-pa se perguntava como fazer para se livrar do racismo e muitos acreditavam que o nosso país pudesse dar a resposta.

Democracia Racial: mito ou utopia possível?

Estava o Brasil envolto naquele clima de luta contra o totalitarismo e o racismo quando Ab­dias do Nascimento – o fundador do Teatro Experimental do Negro (ten) e grande líder do movimento anti-racista – começou a editar o jornal Quilombo (reeditado emfac-símile,em 2003,por Antonio Sergio Guimarães,com pre­fácios dele mesmo,de Elisa Laskin Nascimento e do próprio Abdias). Reler o Quilombo é como fazer uma viagem no tempo e acompanhar de perto o debate da época sobre o lugar do ne­gro na sociedade brasileira. É o suficiente para termos a medida das enormes mudanças que desde então parecem estar ocorrendo no Brasil – ou será em todo o mundo?

O Quilombo foi fundado em 1948, mesmo ano em que foi promulgada a Declaração Uni­versal dos Direitos Humanos, estrela-guia da­quela geração e dos editores do jornal.Os jovens idealizadores do Quilombo acreditavam que o Brasil tinha algo a ensinar àquela Europa dila­cerada pela intolerância e pela violência étnica,e por isso empenhavam-se em unir intelectuais,artistas e os movimentos negros na luta contra o racismo e contra a própria idéia de “raça”.

No primeiro número do Quilombo, uma co­luna intitulada “Democracia racial” foi inau­gurada por Gilberto Freyre com o título “A atitude brasileira”. Nelson Rodrigues também foi um dos que participaram desse primeiro nú­mero,comuma entrevista cujamanchete falava do “discutido autor de Anjo Negro”. No segun­do número, Artur Ramos, então catedrático de antropologia da Universidade do Brasil, escre­veu sobre a “mestiçagem no Brasil”. No terceiro número, a coluna “Democracia racial” trouxe as palavras do representante da onu no Brasil por ocasião do Congresso Nacional do Negro.O número quatro estampava na capa uma be­líssima foto da atriz Ruth de Souza, “uma das figuras mais relevantes do ten”, nas palavras do jornal. No número cinco, há um artigo de Jean-Paul Sartre – “Orfeu Negro” – no qual o filósofo francês se debruça sobre as questões do racismo e da exploração de classe. O número seis trouxe uma grave notícia de discriminação racial: Abdias,Ruth de Souza,Claudiano Filho e Marina Gonçalves, todos do ten, foram im­pedidos de participar do Baile dos Artistas, no Hotel Glória,por serem negros.Tamanho foi o impacto desse evento que, no ano seguinte,a direção do Hotel Glória convidou de forma especial Abdias do Nascimento para partici­par do evento.

A discriminação racial foi assunto principal também do último número do jornal, o nú­mero dez. A capa apresentava uma linda foto da dançarina e atriz norte-americana Kathe­rine Dunham, que fora barrada em um hotel em São Paulo. Na coluna “Democracia racial”, o poeta Murilo Mendes escreveu um belíssi­mo artigo sobre Katherine Dunham. Gilberto Freyre, então deputado federal, da tribuna da Câmara, discursou contra o racismo evidencia­do no episódio.

O Quilombo representou o esforço de um grupo de ativistas e intelectuais, de todas as co­res, pela democracia e contra o racismo. Para aquela geração, a expressão “democracia racial”tinha o sentido de uma busca da união de to-dos contra o racismo. Era um sonho,quem sabe uma utopia, que os colaboradores daquela im­portante publicação estavam propondo para li­vrar o Brasil dos males da discriminação e das desigualdades.

A figura jurídica do “negro”

O último número noticiou o projeto do que vi-ria a ser a Lei Afonso Arinos, que foi, no Bra­sil, a primeira contra o racismo. Afonso Arinos sensibilizara-se com a humilhação infligida a Dunham. A lei teve dois importantes efeitos sobre as relações raciais no Brasil. De um lado, reconheceu a existência do racismo e expressou o sentimento de revolta que emergira quando do episódio envolvendo a atriz americana e, de outro, inaugurou, no entendimento de Luiz Aguiar Costa Pinto, a “entidade jurídica negro”, abrindo a possibilidade de uma forte mudança nos arranjos “raciais” do país rumo ao modelo do sul dos Estados Unidos. Diz Costa Pinto:

[…] dentro das tensões raciais existentes e em agravamento neste país, não será surpreendente se conduzir à situação que caracteriza as relações de raças nas cidades setentrionais dos Estados Unidos e que se pode resumir na fórmula separate but equal. De fato, até então, no Brasil, na legislação republi­cana, o negro vinha comparecendo como o liberto de 1888, como cidadão, em abstrato, juridicamente igual a todos os cidadãos; estava na lei por exclusão – todos são iguais perante a lei, independentemente de cor,sexo,religião etc.Agora,pela primeira vez,sal­vo engano, regulamenta-se em lei o comportamento de brancos em relação a negros, e atribui-se a estes, comonegros,o direito específico de não terem prati­camente negados alguns direitos mais gerais que a lei já atribuía a todos os cidadãos, independentemente da condição étnica. […] a declarar que são puníveis os que violarem determinados princípios já solene­mente presentes em leis anteriores e mais gerais.

Ora, uma tal atitude da lei […] pode vir a ser […] o prelúdio de uma outra legislação substitutiva desta e até inspirada no desejo de remediar sua inoperân­cia prática, visando assegurar a negros e brancos o direito de terem educação, recreação, distritos resi­denciais,obras de assistência e outro setores institu­cionalizados da vida social iguais mas separados.Para isto, tecnicamente, uma das pré-condições já existe: a entidade jurídica negro, presente no espírito e no texto da legislação ordinária.

Seguindo esse raciocínio, o ex-diretor do Disque Racismo do Estado do Rio de Janeiro,Fabiano Dias Monteiro, em sua dissertação de 1. Luiz Aguiar Costa Pinto, O Negro no Rio de Ja­neiro: Relações de Raça numa Sociedade em Mudança,São Paulo, Editora Nacional, 1953, p. 53. mestrado recém-defendida no Instituto de Fi­losofia e Ciências Sociais da ufrj, argumenta que é justamente no campo do direito e na luta contínua contra o racismo e a “farsa da demo­cracia racial” que o movimento pró-negro vai aos poucos fortalecer a noção de um Brasil divi­dido nitidamente entre negros e brancos, o que Monteiro denomina a “cisão racial” brasileira.
Mas o percurso rumo a um Brasil cindido em raças, nas palavras de Monteiro, não se li­mitou ao campo das leis.

Mistura ou bipolaridade de “raças”?

Artur Ramos e Luiz Aguiar Costa Pinto foram representantes do Brasil na Unesco e propu­seram tomar o Brasil como exemplo ou como laboratório de uma experiência bem-sucedida de relações raciais.Contudo,o projeto da Unes­co, ao desenvolver pesquisas baseadas na “raça”como critério de divisão da sociedade, ironica­mente acabou lançando as bases para uma visão bipolarde nossa sociedade.Foinessaépocaque alguns integrantes do referido projeto construí­ram o modelo que muitos, com cinqüenta anos de atraso, erigem hoje à condição de verdade inquestionável.

O modelo de nossa sociedade, que até en­tão se expressava tanto pela palavra de nossos pesquisadores quanto por olhares estrangeiros,era o de uma mistura – de um país “mesclado”.E foi pelas mãos dos sociólogos paulistas que a versão bipolar de negros e brancos foi-se im­pondo. Apesar de descreverem a complexidade do nosso sistema classificatório, representando­ o no mínimo como um triângulo, eles pouco a pouco foram adotando gráficos descritivos de duas colunas – os brancos e os de cor. O pró­prio Costa Pinto, que alertou para os perigos da racialização da nossa legislação, foi quem primeiro usou esses gráficos.

Em seguida,esse modo de imaginar o Brasil tornou-se praxe entre os sociólogos brasileiros,atingindo a sua forma mais sofisticada na tese de doutorado de Carlos Hasenbalg, defendi­da na Universidade de Califórnia e publicada em 1979 no Brasil com o título Discriminação e Desigualdades Raciais no Brasil. Mais tarde, ele justificaria a construção de um Brasil bi-racial:

“Designa-se como não-brancos a soma do que os censos e a Pnad categorizam como pretos e pardos, excluindo-se a categoria ‘amarelos’”.

No entanto, a visão bipolar da sociedade brasileira permaneceu restrita – e ainda per­manece – ao âmbito da sociologia e da militân­cia.Foradessescírculos,os brasileiros,naqueles anos como até hoje, preferem ver-se e descre­ver-se pela mistura, mesmo que, de quando em vez, tenham que se classificar de acordo com a taxonomiadoIbge empessoasnegras,brancas,amarelas, pardas ou indígenas.

Esses dois modelos se equilibraram nas in­terpretações do Brasil até bem pouco tempo.No entanto, a versão bipolar parece ter toma­do corpo nos últimos tempos e quer impor-se à outra pela adoção de políticas públicas que distribuem direitos diferenciais.

O caminho da racialização

A ênfase no paradigma bipolar,de fato,foi-se consolidando aos poucos, criando espaço para propostas de políticas públicas com base “na raça”. Estas tomam como pressuposto que há sempre candidatos aptos e não-aptos a serem beneficiadospor elas,respectivamente,“negros”e “brancos”. As palavras de Costa Pinto, ao se referir à racialização como pressuposto e con­seqüência da Lei Afonso Arinos lá em 1953,soam premonitórias.

O governo FHC

A “figura jurídica do negro” e a taxonomia “ra­cial” bipolar estão presentes na Constituição de 1988, que definiu o racismo como crime inafiançável e não apenas uma contravenção,como havia feito a Lei Afonso Arinos.A Cons­tituição de 1988 também introduziu a figura do “remanescente de quilombos”, que teria direito à propriedade das suas terras. Mas foi no go­verno de Fernando Henrique Cardoso que o Estado entrou com mais afinco nesse campo.Em 1995, o presidente recém-eleito criou um Grupo de Trabalho Interministerial com o ob­jetivo de sugerir ações e políticas de valorização da população negra e, um ano depois, promul­gou o Programa Nacional de Direitos Huma­nos (pndH).Ficava clara a intenção do governo de criar uma política voltada para a “população negra”. O documento do pndH incluiu um ca­pítulo específico dedicado à “população negra”. Aí são enumeradas ações, desde a inclusão do quesito “cor” em todos os documentos oficiais,até o apoio às “ações da iniciativa privada que realizemdiscriminação positiva”(pndH,1996).Mas havia outras mais radicais, como “ações afirmativas para o acesso dos negros aos cursos profissionalizantes, à universidade e às áreas de tecnologia de ponta” e a intenção de “formular políticas compensatórias que promovam so­cial e economicamente a comunidade negra”(pndH, 1996). Finalmente, o pndH propunha também que o país substituísse a sua secular taxonomia oficial de “pretos, pardos e brancos”por uma taxonomia bipolar.A esse respeito,de­fendia: “determinar ao Ibge a adoção do critério de considerar os mulatos, os pardos e os pretos como integrantes do contingente da população negra” (a ênfase é minha).

As mudanças ficaram mais evidentes na III Conferência Mundial das Nações Unidas de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada na África do Sul, em 2001. A delegação bra­sileira parecia disposta a consolidar uma tra­jetória rumo a uma divisão legal da sociedade em brancos e negros, propondo que o governo brasileiro adotasse ações afirmativas em favor da “população afro-descendente”, inclusive o reconhecimento oficial da legitimidade de reparações à escravidão e cotas para negros nas universidades públicas.

Foi durante a preparação da Conferência que o Instituto de Pesquisas Aplicadas (Ipea),assessorando o Governo federal, apresentou números afirmando que as desigualdades no Brasil deviam ser explicadas pelo racismo. Em tabelas coloridas, os números foram apresenta­dos de forma bipolar e por meio de uma taxo­nomia em que brancos apareciam de um lado e negros de outro. Nesses gráficos, a catego­ria “negro” agregava os indicadores de pretos e pardos nos levantamentos estatísticos que, há cem anos pelo menos, levam em consideração a autodeclaração dos respondentes na famosa tríade – branco, preto e pardo. Os gráficos e ta­belas da taxonomia bipolar apresentados pelo Ipea, como disse José Murilo de Carvalho, re­presentaram um genocídio racial estatístico dos pardos. Mais ainda, a categoria “negro”, nesse caso uma categoria censitária, construída pe­los analistas, foi tomada como uma categoria identitária. Os gráficos foram feitos com dados dos anos 1990, e os analistas inferiram que as desigualdades dos números de negros e brancos só poderiam ser explicadas pelo racismo. Mui­tas pessoas apontaram os erros dessa inferência,como Ali Kamel e Simon Schwartzman, entre outros,mas,como sóiacontecer,oerro repetido muitas vezes acabou aceito como verdade.

Enquanto o governo brasileiro ratificava as propostas da delegação brasileira à Conferên­cia de Durban, o ministro da Reforma Agrária anunciava que 20% das vagas no seu ministério seriam destinadas a negros. A idéia logo se es­palhou pela Esplanada dos Ministérios e, em dezembro,o presidente da República estendeu o princípio ao funcionalismo público em geral.
No mesmo mês, a Assembléia dos Depu­tados do estado do Rio de Janeiro aprovou por aclamação, e, portanto, sem debate, a Lei n. 3 708, de 9 de novembro, proposta por um pouco conhecido deputado estadual,José Amo­rim, do Partido Popular, que “institui cota de até 40% para as populações negra e parda no acesso à Universidade do Estado do Rio de Ja­neiro e à Universidade Estadual do Norte Flu­minense”. A lei foi sendo modificada ao longo do tempo e, hoje, a uerj e outras universidades do estado reservam 20% de vagas para negros e egressos de escolas públicas cujas famílias têm renda inferior a 700,00 reais.

Depois disso,e ao longo desses últimos anos,o rastilho de pólvora pegou fogo e muitas uni­versidades públicas introduziram diferentes for-mas de inclusão em seus vestibulares, a maioria esmagadora delas com reserva de vagas para es­tudantes negros. O ativismo negro,que antes de 2001 estava muito dividido sobre o assunto,logo adotou as cotas raciais como a sua principal ban­deira de luta, como algo que pudesse cimentar um movimento notório pelas divisões internas.Os gráficos produzidos pelo Ipea e outros dados apontando para as desigualdades entre “negros”e “brancos” foram-se tornando peça-chave nas justificativas para as cotas raciais e outras ações afirmativas. E, como num passe de mágica, as cotas e outras ações afirmativas racializadas fo­ram apresentadas como a única política pública capaz de enfrentar essas desigualdades. Criou­se a ilusão de queos“negros”seriampoucosnas universidades por causa da cor da sua pele e não pela sua relativa pobreza e educação anterior de qualidade duvidosa. Quem criticasse as cotas raciais era logo suspeito de ser racista!

O governo Lula

A engenharia social em que o Estado obriga os cidadãos a se definirem racialmente foi defini­tivamente introduzida na sociedade brasileira a partir de 2003, no governo Luiz Inácio Lula da Silva.O governo federal fez modificações no Sistema de Financiamento ao Estudante (fIes) e estabeleceu o Programa Universidade para Todos (prounI). Esses dois programas pro­videnciam financiamento, bolsas e vagas espe­cíficos para negros e outras minorias. E, ainda em 2003, o novo governo criou a Secretaria Especial para a Promoção da Igualdade Racial (Seppir). A secretaria traz no seu próprio nome aquilo que deveria pretender extirpar, a “raça”,e revela o paradoxo em que está mergulhada nossa sociedade.

Também nesse mesmo ano, o Conselho Nacional de Educação, órgão de regulação da educação nacional, exarou as Diretrizes Nacio­nais Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. A Lei nº 10 639, de 2003, foi reformulada em 2008, resultando na Lei nº 11 645/2008,que obriga o estudo dahistória dospovosindígenas,além da história da África. Salvo engano, as Diretrizes não foram modificadas.

As Diretrizes Curriculares, nascidas para ensinar aos estudantes a história da África e da cultura brasileira, acabam por encorajar uma educação ou reeducação que quer transformar os cidadãos em pessoas orgulhosas de seu “per­tencimento étnico-racial ” (ênfase minha). A lei diz claramente que é preciso valorizar a “di­versidade” a fim de superar as “desigualdades étnico-raciais”. Para finalizar, faz uma espécie de profecia ameaçadora:

Se não é fácil ser descendente de seres humanos escravizados e forçados à condição de objetos utilitá­rios ou a semoventes, também é difícil descobrir-se descendente dos escravizadores, temer, embora ve­ladamente, revanche dos que, por cinco séculos, têm sido desprezados e massacrados. Para reeducar as relações étnico-raciais no Brasil, é necessário fazer emergir as dores e medos que têm sido gerados. É preciso entender que o sucesso de uns tem o preço da marginalização e da desigualdade impostas a outros. E então decidir que sociedade queremos construir daqui para frente.(p.11) (ênfase minha)

Não é difícil perceber que essas Diretrizes Curriculares apresentam um Brasil radicalmen­te distinto dos textos e livros escolares que as antecederam e que falavam da “fabula das três raças”, do caldo de culturas e das glórias de um Brasil misturado.

Por que ensinar aos estudantes a “revanche”e a “oposição entre brancos e negros”? Por que abandonar a “democracia” pela ética da sepa­ração e da desigualdade? Só há uma respos­ta possível. Direitos diferenciais exigem uma identificação racial bipolar, mas a nossa socie­dade ainda não se pensa dividida em brancos e negros. O recurso óbvio é começar do começo e fazer com que os mestres ensinem às crianças que elas não são iguais, que são diferentes, cada qual com uma identidade própria.

A sociedade brasileira,compadecida do dra­ma dos pobres e do racismo, assistiu a essas mudanças,atébempouco tempo,com bastante desconforto.Centenas de pessoas mobilizaram­se escrevendo cartas aos jornais, ao passo que outras pessoas, que se sentiram pessoalmente prejudicadas, entraram na justiça para tentar garantir as suas vagas.

Enquanto o governo brasileiro seguia firme na trajetória de introduzir a “raça”nas políticas públicas, tramitavam no Congresso Nacional dois projetos de lei que ainda estão para serem votados. O pl 73/1999, apoiado pelo governo federal e pelo Ministério da Educação, e o pro­jeto de um chamado Estatuto da Igualdade Ra­cial (pl 3 198/2000), formulado pelo senador Paulo Paim, propõem que o Brasil abandone de vez a sua longa tradição de legislação a-ra­cial para adotar uma legislação com base na “raça”. Ambos os projetos estabelecem cotas para negros.

Em 2006, um grupo de intelectuais, artistas e lideranças do movimento negro decidiu escre­ver uma Carta Pública ao Congresso Nacional e nela reafirmar os princípios universalistas que devem reger a vida em sociedade. Assim fazen­do, o debate ampliou-se. Os proponentes das cotas reagiram com um manifesto e levaram-no aos presidentes do Senado e da Câmara.

Dois anos depois da entrega da Carta Públi­ca, mais uma comissão de intelectuais, artistas, estudantes e lideranças de movimentos sociais entregou ao Supremo Tribunal Federal (stf ) nova carta – Cento e treze cidadãos anti-racistas contra as leis raciais – alertando sobre os perigos da racialização do país. A reação não tardou a aparecer, na forma de outro manifesto a favor das cotas.

O STF discutirá duas Ações Diretas de In­constitucionalidade (Adins) impetradas pela Confederação Nacional de Estabelecimentos de Ensino (Cofenen) contra cotas raciais nas uni­versidades do estado do Rio de Janeiro e contra o Programa Universidade para Todos (prou­nI). Essas Adins obrigam o stf a julgar se as leis baseadas em “raça” são constitucionais.

Argumentos de lado a lado

Os proponentes das cotas raciais e do Esta­tuto da Igualdade Racial sustentam que o princípio da igualdade de todos perante a lei exige tratar desigualmente os desiguais. Citam a “Oração aos Moços”, na qual Rui Barbosa,inspirado em Aristóteles,diz: “A regra da igual­dade não consiste senão em aquinhoar desi­gualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, propor­cionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade”.Tratar desigual­mente os desiguais é um método aplicado, com justiça, em campos como o sistema tributário,por meio da tributação progressiva, e nas polí­ticas sociais de transferência de renda. Invocá­lo para sustentar leis raciais é perigoso porque pobres devem deixar a pobreza, mas, depois de estabelecidas “raças” distintas com direitos de­siguais, como fazer para extirpá-las da vida so­cial? É por isso que muitos países que aplicaram leis raciais,inicialmente temporárias,acabaram perpetuando-as e, em muitos casos, incluindo­as nas suas Constituições com graves prejuízos para a eqüidade e a justiça, gerando muito mais dor do que alívio.

Cotas: proposta inconstitucional

As novas propostas de políticas públicas e de mudança de nosso estatuto jurídico desrespei­tam a Constituição Federal, que no seu Artigo 19 estabelece: “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios criar dis­tinções entre brasileiros ou preferências entre si”. O Artigo 208 dispõe que: “O dever do Es­tado com a educação será efetivado mediante a garantia de acesso aos níveis mais elevados do ensino,da pesquisa e da criação artística,segun­do a capacidade de cada um”. Alinhada com os princípios e garantias da Constituição Federal,a Constituição Estadual do Rio de Janeiro, no seu Artigo 9, § 1º, determina que: “Ninguém será discriminado, prejudicado ou privilegiado, emrazão de nascimento,idade,etnia,‘raça’,cor, sexo, estado civil, trabalho rural ou urbano, re­ligião, convicções políticas ou filosóficas, defi­ciência física ou mental, por ter cumprido pena nem por qualquer particularidade ou condição”(ênfase minha).A nossa Constituição emana de uma tradição brasileira, que há 120 anos, desde aaboliçãodaescravidão,apóia-se emumacon­cepção a-racial das leis.

Raças não existem

A idéia que embasa essas leis, a idéia de “raça”,deveria ser extirpada da vida social.“Raças hu­manas” não existem. A genética comprovou que as diferenças das chamadas “raças” huma­nas são características físicas superficiais, que dependem de parcela ínfima dos 25 mil genes estimados do genoma humano. A cor da pele,uma adaptação evolutiva aos níveis de radia­ção ultravioleta vigentes em diferentes áreas do mundo,é expressa em menos de dez genes! Nas palavras do geneticista Sérgio Pena, no ensaio “Receita para uma Humanidade Desraciali­zada”, Ciência Hoje Online, setembro de 2006: “O fato assim cientificamente comprovado da inexistência das ‘raças’ deve ser absorvido pela sociedade e incorporado às suas convicções e atitudes morais. Uma postura coerente e dese­jável seria a construção de uma sociedade desra­cializada, na qual a singularidade do indivíduo seja valorizada e celebrada.Temos de assimilar a noção de que a única divisão biologicamente coerente da espécie humana é em bilhões de indivíduos,e não em um punhado de ‘raças’”.

Renúncia à utopia possível

Não foi a existência de “raças”que gerou o racis­mo, mas o racismo é que fabricou a crença em “raças”.A crença em“raças”é credo do racismo. A fabricação de “raças oficiais” e a distribuição seletiva de privilégios segundo rótulos de “raça”nada fazem para eliminar e podem até aumentar o veneno do racismo, que tem como conseqü­ência orancor e o ódio.No Brasil,representam,além disso, uma revisão radical de nossa identi­dade nacional e a renúncia à utopia possível da universalização da verdadeira cidadania.

É preciso pensar sobre as conseqüências e os perigos dessa opção pela entronização da “raça” nas políticas públicas através de leis. Os exemplos trágicos da divisão da população com

o fim de distribuir direitos segundo a “raça” ou a“etnia”,palavrasqueservem paraessencializar as diferenças, estão ainda muito presentes na memória e na história recente do mundo para que sejam ignorados. A distribuição de privilé­gios segundo critérios“étnico-raciais”inculcou a“raça”nas consciências e na vida política,pro­duzindo tensões e conflitos que ainda perdu-ram. Na África do Sul, o sistema do apartheidseparou os brancos dos demais e foi adiante, na sua lógica, fragmentando todos os “não-bran­cos” em grupos étnicos cuidadosamente deli­mitados. Em Ruanda, no Quênia e em tantos outros lugares, os africanos foram submetidos a classificações étnicas, que geraram lutas fra­tricidas de horror inimaginável.

O racismo contamina as sociedades quan­do a lei afirma às pessoas que elas pertencem a determinado grupo racial – e que seus direitos são afetados por esse critério de pertinência de “raça”. Nos Estados Unidos, modelo por exce­lência das políticas raciais, a abolição da escra­vidão foi seguida pela produção de leis raciais baseadas na regra da “gota de sangue única”.

Essa regra propiciou a divisão da sociedade em guetos legais, sociais, culturais e espaciais. De acordocom ela,as pessoassão,irrevogavelmen­te, “brancas” ou “negras”. Foi de lá que veio a inspiração das leis de cotas raciais no Brasil.Mas podemos argumentar que, enquanto as ações afirmativas nos Estados Unidos tiveram
o efeito de cristalizar a crença nas “raças”branca e negra, aqui no Brasil podem ter a conseqüên­cia de fabricar essas crenças, constituindo uma profecia que se cumpre por si só.

A pobreza tem várias cores

Finalmente, dizer que a desigualdade no Brasil é produto do racismo é uma forma de desviar­nos das verdadeiras causas das iniqüidades no nosso país. A pobreza no Brasil tem todas as cores. De acordo com dados da Pesquisa Na­cional por Amostra de Domicílios (pnad) de 2006, entre 43 milhões de pessoas de 18 a 30 anos de idade,12,9 milhões tinham renda fami­liar per capita de meio salário mínimo ou menos. Nesse grupo mais pobre, 30% classificavam-se a si mesmos como “brancos”, 9% como “pre­tos”e 60% como“pardos”.Desses12,9 milhões,apenas 21% dos “brancos” e 16% dos “pretos” e “pardos” haviam completado o ensino médio,mas muito poucos, de qualquer cor, prossegui­ram para o ensino superior. Basicamente, são diferenças derenda,enão de cor,que limitam o acesso ao ensino superior. Portanto, os concur­sos vestibulares, pelos quais se dá o ingresso ao ensino superior público “segundo a capacidade de cada um”, não são promotores de desigual­dades, mas se realizam no terreno semeado por desigualdades sociais prévias.

Cotas não promovem igualdade

As cotas raciais para negros, aplicadas em mui­tas universidades, entre as quais a Universidade de Brasília (UnB), proporcionam a um candi­dato definido como “negro” a oportunidade de ingresso com menor nota que a de um candidato definido como “branco”, mesmo se o le­galmente definido como negro, para efeito de inscrição,provier de família de alta renda e o le­galmente “branco”,de família de baixa renda.O sistema acaba assim concedendo privilégio aos candidatos de classe média classificados como “negros”, e não promove igualdade de acesso.

As cotas raciais como subcotas de egressos de escolas públicas, como aplicadas, entre ou­tras, pelas universidades do estado do Rio de Janeiro, separam alunos que se sentam lado a lado, recebem o mesmo tipo de ensino e são provenientes de famílias com faixas de renda semelhantes em dois grupos “raciais” polares,gerando uma desigualdade “natural” em um ambiente caracterizado pela igualdade social.O resultado dessa política tem sido oferecer privilégios para candidatos definidos legalmen­te como“negros”que cursaram escolas públicas de melhor qualidade, em detrimento de seus colegas definidos como “brancos”e de todos os alunos de escolas públicas de pior qualidade.

Os proponentes de cotas raciais acusam os que são críticos de não quererem abrir mão do seu privilégio de “brancos”. O que não querem reconhecer, talvez, é que o privilegio de classe dos mais ou menos brancos de “elite” em nada é afetado pela políticade cotas raciais.Esteste­rão sempre os fundos necessários para garantir as boas notas de seus filhos no vestibular das universidades públicas ou financiar a sua edu­cação superior em universidades particulares de qualidade no Brasil ou no exterior. Quem te­ria o seu “privilégio” ameaçado seriam os mais claros daquela classe remediada que ficarão em desvantagem em relação aos mais escuros dessa mesma classe na competição acirrada para va­gas nas universidades públicas. Devemos ali­mentar esse tipo de concorrência racial?

A questão é que, sob a capa de uma solu­ção mágica para as desigualdades, esconde-se a grave desigualdade social no acesso à edu­cação no Brasil. A Pnad de 2006 informa que 9,41 milhões de estudantes cursavam o ensino médio,mas apenas 5,87 milhões freqüentavam o ensino superior, dos quais só uma minoria de 1,44 milhão estava matriculada em instituição superior pública. As leis de cotas raciais não alteram em nada esse quadro e não proporcio­nam inclusão social.

Difunde-se com essa política a promessa sedutora de redução das desigualdades, mas há necessidade de programa bem estruturado para promover a melhoria da qualidade da educa­ção pública. Esse programa exige políticas ade­quadas e vultosos investimentos tanto humanos quanto financeiros. É preciso elevar o padrão geral do ensino e romper o abismo entre as es-colas de qualidade, quase sempre situadas em bairros de classe média, e as escolas de baixo desempenho localizadas nas periferias urbanas,nas favelas e no meio rural. O direcionamento prioritário de novos recursos para esses espaços de pobreza beneficiaria jovens de baixa renda de todos ostons depele–e,certamente,grande parcela dos que se declaram “pardo” e “preto”.

Os proponentes das cotas enxergam o Bra­sil a partir da ótica da bipolaridade e falam do “fosso” que separa os brancos dos negros por meio de números que descrevem um país como uma fotografia em branco e preto. E mais, afir­mam que o racismo dos brancos produz esse “fosso”. Nada mais sedutor do que encontrar culpados, mas o argumento é enganador por­que apresenta uma proposta de custo zero para a redução das desigualdades.

A sociedade brasileira não está livre do ra­cismo.Acor pesa,deformaperversaeilegal,no cotidiano das pessoas de pele mais escura, em especial entre jovens pobres das periferias. A discriminação se manifesta de múltiplas formas,como, por exemplo, nas incursões policiais em bairros periféricos ou nos padrões de aplicação de mandados de busca coletivos ilegais em áreas de favelas. Existe preconceito racial e racismo no Brasil, mas o Brasil não é um país racista.

Depois da Abolição, no lugar da regra de “uma só gota de sangue”, os brasileiros cons­truíram uma identidade amparada na idéia anti-racista de mestiçagem. Tão preocupados foram com as instâncias de racismo que pro­duziramumaleique o criminalizou.Oprecon­ceito racial é reprimido e quando aparece vem envergonhado. O “preconceito de ausência de preconceito”, no dizer de Florestan Fernandes,é explicado segundo o mestre paulista “[…] por essa fidelidade do Brasil ao seu ideal de demo­cracia racial”, e é atestado de que há algo de muito positivo na identidade nacional brasilei­ra, não uma prova de nosso fracasso histórico.

Anti-racismo contra leis raciais

Em meados do século xx, o Brasil parecia estar em consonância com o mundo ali­nhando-se àqueles que buscavam lutar contra o racismo no empreendimento realizado por um grupo de intelectuais atuantes no jornal Qui­lombo. Desde então muitos países, incluindo a Índia, os Estados Unidos, o Sri Lanka, a Ma­lásia, têm adotado políticas de ação afirmativa em favor das minorias “raciais”ou “étnicas”e,no caso da Índia, de castas. Mas, em anos recen­tes, tem crescido nos Estados Unidos um mo­vimento que se opõe à regra de “uma só gota”em favor do reconhecimento da descendência racial múltipla (parece que acreditam ainda nas raças!). Em julho de 2007, a Suprema Corte Americana, em decisão histórica,deliberou que a discriminação positiva com base na “raça”em certas escolas americanas era inconstitucional. A Suprema Corte decidiu que a cor da pele não deveria ser usada como base para a aceitação de matrícula de uma criança em uma escola ou outra. A opinião majoritária na Suprema Corte foi a de que políticas que obrigam os indivíduos a se identificar racialmente têm o efeito de perpetuar o critério de “raça” na vida pública americana.

Hoje parecemos em desacordo com as mais recentes lutas anti-racistas.Barack Obama empolga as novas gerações falando para a comunidade das nações, e não para “a comunidade” repetindo a emoção de Martin Luther King.Em um encontro com o cônsul brasileiro em Washington, Obama perguntou ao diploma­ta, com a sua alegria toda particular: “Eu não pareço um brasileiro?”. Ele não poderia imagi­nar que o Brasil estava propondo o Estatuto da Igualdade Racial e com ele pondo por terra o ideal presente no jornal Quilombo e nossa iden­tidade nacional baseada na mescla.

É justamente nesse momento de dúvida sobre a propriedade de leis racializadas que o Brasilcomeçaa adotá-las.NosEstados Unidos da América, nação dilacerada pelo ódio racial e pela segregação, as políticas com base na “raça”estão sendo abolidas porque têm o efeito de perpetuar a “raça” na vida pública, segundo a maioria da Suprema Corte. Mas aqui no Brasil,alheio ao debate internacional, há quem queira ainda transformar o país em uma nação dividi­da, por força de lei, em brancos e negros.

Em nome do princípio de realidade da ex­clusão social, que atinge o grande contingente de pobres do Brasil, os proponentes das cotas pisam na realidade de princípios que deveriam nortear a democracia no país, entre eles, o mais importante,o princípio da igualdade.O anti-ra­cismo deve combater essa proposta.O princípio de igualdade presente na Declaração Universal de Direitos Humanos e na Constituição brasi­leira é bússola a indicar o rumo certo para supe­rar os graves problemas sociais do Brasil.

é professora titular de antropologia no departamento de Antropologia Cultural do ifcs/ufrj.

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