Polarização do trabalho e populismo
Já foi o tempo em que as tecnologias tiravam os empregos apenas dos que faziam tarefas manuais e repetitivas. A partir dos anos 1990 surgiram máquinas que observam, apreendem, reconhecem voz humana, interpretam e traduzem textos falados ou escritos, resolvem problemas e corrigem seus próprios erros. Elas realizam atividades abstratas, não rotineiras e que exigem raciocínio e tomada de decisões. Em muitos casos, fazem isso com um rigor superior ao dos seres humanos como ocorre na interpretação de imagens de tumores e outras patologias.
Este ensaio se concentra no impacto diferenciado das tecnologias nas atividades que são executadas pelas pessoas que estão no meio da estrutura ocupacional ou, em linguagem liberal, que pertencem à classe média. Ao substituir essas atividades, as tecnologias têm provocado mais descidas do que subidas na estrutura de ocupações e na pirâmide social. Por exemplo: toda vez que um sistema automatizado entra em um grande almoxarifado, o seu gerente perde o emprego e é desafiado a fazer outra coisa. Inúmeras pesquisas, indicadas na bibliografia do final deste ensaio, mostram que a maioria passa a desempenhar atividades de menor prestígio e rendimento, fazendo mobilidade social descendente.
Impactos das tecnologias no trabalho
Por força da entrada maciça de novas tecnologias no ambiente de trabalho, a classe média está sendo espremida, observando-se, em contrapartida, um ligeiro crescimento das classes mais altas e uma grande expansão das mais baixas, o que agrava a desigualdade social. É a chamada polarização do trabalho provocada pelo avanço tecnológico.
Mas nem tudo é destruição. Hans Moravec, especialista em robótica e inteligência artificial, explica que, paradoxalmente, os robôs fazem com facilidade várias tarefas difíceis, mas não conseguem executar tarefas fáceis. Ele diz: “se quisermos ganhar uma partida de xadrez, convém escolher um computador moderno. Mas, para limpar as peças do tabuleiro depois do jogo, convém contratar uma faxineira”.
O impacto diferenciado das novas tecnologias na estrutura social está bem documentado. Para os países desenvolvidos, cerca de 20% dos postos de trabalho de classe média estão sendo parcial ou totalmente substituídos por tecnologias. Os dados apresentados na Tabela abaixo, e referente a 16 países da Europa, mostram que, em média, o estrato alto na estrutura de ocupações aumentou 6,19% entre 1993-2010; o estrato médio encolheu 7,77%; e o baixo expandiu 1,58%. É interessante examinar a ocorrência desse padrão para a maioria dos países pesquisados.
O encolhimento da classe média associado às novas tecnologias vem sendo observado na Europa, nos Estados Unidos e na América Latina, inclusive no Brasil. O caso brasileiro é emblemático. Ao longo do século 20, o Brasil foi uma sociedade de muita mobilidade social ascendente (Pastore, 1979; Pastore e Valle Silva, 2000). Mas, nas últimas décadas surgiram sinais de mobilidade descendente entre os membros da classe média quando analisada com base em status socioeconômico ou status ocupacional. É o que diz o IBGE: “No Brasil] as chances de um indivíduo cujo pai pertencia a um estrato ocupacional elevado permanecer nesse estrato diminuíram”.
É verdade que a redução da mobilidade ascendente é devida também a repetidos períodos de recessão. Mas, nos períodos mais recentes, os avanços na digitalização, machine learning, inteligência artificial, big data, robotização têm acelerado a dispensa ou a realocação de trabalhadores de classe média. Pesquisa realizada com dados do CAGED em 2020 indicou que as tecnologias vêm abrindo espaço para novas ocupações, mas estão eliminando vários postos de trabalho intermediários. “Entre os gerentes, por exemplo, tem havido mais demissões do que contratações”.
A mobilidade social descendente gera os conhecidos sentimentos de privação relativa. Esse é um ambiente propício para as pessoas buscarem soluções para o seu incômodo junto a políticos populistas.
Nos dias atuais, esse sentimento tem sido potencializado pelas redes sociais que também dão voz aos que se sentem perdedores. Os estudos da Freedom House mostram que, nos últimos 30 anos, o sentimento de perda na situação de trabalho tem minado a saúde de muitas democracias (Repucci e Slipowitz, 2021). A globalização e a modernização tecnológica prometeram um mundo mais igualitário, mas, com o tempo, geraram muitas contradições e crescente desigualdade. Os consumidores ganharam em variedade de bens e serviços a preços cadentes. Mas os trabalhadores, que também são consumidores, perderam a segurança de renda dos empregos convencionais. Por trás da fragilização das democracias estão tecnologias que deslocam os trabalhadores de classe média, empurrando-os para baixo da pirâmide social.
Desencanto e opção pelo populismo
A opção pelo populismo não está ligada à desigualdade em si. Ela ocorre quando a desigualdade é sentida como injusta. E isso ocorre muito. Os políticos populistas percebem e manipulam o sentimento de injustiça que domina os eleitores junto aos quais buscam votos.
Vários estudos mostram que o simples medo de perder o emprego leva grande parte dos trabalhadores a buscar o apoio de políticos populistas de esquerda ou de direita. O populismo de esquerda usa narrativa transformadora que promete a inclusão futura dos marginalizados do presente. O de direita usa narrativa saudosista que promete restabelecer valores do passado. Entretanto, a “garantia” de dias melhores está presente nas duas narrativas.
Como se vê, o populismo costuma aflorar como um desdobramento de problemas do mercado de trabalho. Nas campanhas eleitorais, os políticos tendem a associar a destruição de empregos aos desmandos dos governantes e erros de suas políticas públicas. Mas, o que está por trás mesmo, é a mobilidade descendente provocada pelas novas tecnologias.
Nesses condições, o voto da classe média passa a ser um revide das pessoas que perderam posição e renda. Inúmeros políticos populistas surgiram no bojo desse contexto, como é o caso de Alexis Tsipras (Grécia), Viktor Orbán (Hungria), Recep Erdogan (Turquia), Vladmir Putin (Rússia), Rodrigo Dutere (Filipinas), Evo Morales (Bolívia), Pedro Castillo (Perú), Hugo Chaves e Nicolás Maduro (Venezuela), Andrés M. L. Obrador (México), Cristina Kirchner e Carlos Fernandez (Argentina), Lula e Jair Bolsonaro (Brasil) e Gabriel Boric (Chile).
Nos Estados Unidos, a crise de 2008-09 provocou grave ruptura na estrutura social. Repentinamente, muitas famílias de classe média perderam casas, poupanças e empregos. Aos olhos dos perdedores, os grupos da elite, em especial, gerentes e diretores de bancos, enriqueceram injustamente e sem nenhuma contribuição pessoal. Donald Trump, com discurso populista, se colocou a favor dos perdedores e contra as elites e o establishment, oferecendo soluções simplificadas para problemas complexos. George R. Goethals verificou que a ascensão de Trump foi reflexo de um quadro de profunda privação relativa dos eleitores das classes média que sentiam estar obtendo menos do que mereciam. Nas suas mensagens, Trump prometeu a reconstrução de um sistema capaz de elevar a situação econômica e a autoestima das pessoas.
Muitos trabalhos têm enfatizado a fragilização da democracia no mundo. Em quase todos os países há crescimento de grande frustração da classe média, que se manifesta por meio de votos e movimentos de protestos como é o caso dos “coletes amarelos” na França, as demonstrações de rua no Chile, e as tentativas de solapamento do sistema de votação em regiões dos EUA.
Por trás desse desencanto está a mobilidade social descendente decorrente de deslocamentos na estrutura ocupacional devido à introdução de novas tecnologias e incapacidade de acompanhamento por parte dos cidadãos.
Conclusão: qualificar e requalificar em grande escala
Há 30 anos, a revolução digital era vista como grande promessa de crescimento econômico com inclusão social, em que as novas oportunidades de trabalho dariam às pessoas um acesso crescente a boa qualidade de vida. Visualizava-se uma estrutura social mais porosa de modo a permitir amplos avanços na mobilidade social ascendente dentro de uma sociedade mais justa, menos desigual e gerida por uma democracia mais racional e menos emocional.
O quadro que se assiste no mundo inteiro é de uma desigualdade crescente com grande mobilidade descendente e menor ascendente. No terreno político, observa-se uma crescente desilusão com o establishment e um sentimento de injustiça sobre a forma como as gratificações econômicas e sociais vêm sendo distribuídas. O resultado final é a busca incessante por líderes populistas que prometem restaurar ou criar um mundo mais justo.
Por trás de tanto descontentamento está o impacto diferenciado das tecnologias no mercado de trabalho. Hoje elas substituem atividades não manuais, cognitivas, não rotineiras, sofisticadas e não repetitivas, o que atinge em cheio inúmeras ocupações, jogando a maioria dos profissionais para os estratos mais baixos em um massivo movimento de mobilidade descendente.
Mas, é impensável e errôneo demonizar as tecnologias ou impedir a sua disseminação. As tecnologias não devem ser combatidas, pois elas conseguem produzir riqueza a baixo custo. As mudanças devem ocorrer nos sistemas de educação e formação profissional como, aliás, ocorre em vários países que apresentam uma situação de convívio de muita tecnologia, desemprego baixo e menos desigualdade – Japão, Alemanha, Áustria, Holanda e Escandinávia.
Os países que falharam na operação de programas eficazes de educação básica e formação profissional amargam um aumento da desigualdade. É nesse ambiente que propagam, por força do voto livre e democrático, os políticos populistas que sempre prometem soluções fáceis para problemas difíceis.
Como regra, as soluções populistas falham com a mesma facilidade com que são prometidas. O intrigante, porém, é verificar que elas se perpetuam para muito além do seu fracasso. Não raro, uma escolha populista é substituída por outra escolha populista, fazendo o pêndulo balançar ora para a esquerda, ora para a direita, e sempre vendendo esperança para os cidadãos que desceram na escala social em decorrência de deslocamentos provocados pela introdução de novas tecnologias no ambiente de trabalho.
Para atenuar o desencanto e a própria desigualdade, o remédio mais receitado é o da melhoria da educação para permitir que os cidadãos acompanhem a evolução das tecnologias e permaneçam nos estratos ocupacionais onde estão e até subam.
Ainda que necessária e até imprescindíveis, as escolas, sozinhas, não conseguem entregar o tipo de educação que pode salvar os trabalhadores de uma queda na estrutura social. Fala-se no acoplamento de escolas, empresas e governos para educar, qualificar e requalificar as pessoas ao longo de toda a sua vida profissional. Ainda que necessário, trata-se de um empreendimento gigantesco que exige recursos monumentais e uma metodologia de ensino pouco praticada na maioria dos países.
Os dois problemas estão interligados. Só com grandes somas de recursos é que se pode pensar em formas rápidas, massivas e continuadas de preparação para o trabalho. Mas, isso não basta. A humanidade terá de criar métodos de grande alcance para a realização desse desafio.
Por incrível que pareça, as próprias tecnologias modernas dispõem do ferramental que pode atingir grandes massas o tempo todo. Isso significa que os recursos precisam ser utilizados para desenhar e operar novas formas de passar capital humano às pessoas durante toda a vida.
No campo dos recursos, defende-se cada vez mais a tributação das próprias tecnologias como meio de gerar as somas gigantescas acima mencionadas. É um assunto complexo e controvertido. Mas, é uma estratégia de financiamento para gerar os recursos que viabilizem a educação e a formação profissional continuada.
Usar os recursos na direção necessária será o desafio para toda uma geração de profissionais da educação e das tecnologias. Oxalá o Brasil se capacite nesse campo, lembrando que a tarefa mais urgente é a de oferecer educação básica de boa qualidade em linguagem, matemática e ciências, sem menosprezar a história e a literatura. Pois, sem isso, será impossível qualificar e requalificar em grande escala e de modo contínuo.
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Foi professor da Faculdade de Economia e Administração e da Fundação Instituto de Administração, ambas da Universidade de São Paulo. É membro da Academia Paulista de Letras
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