Repensando a política antártica do Brasil 40 anos após a chegada do país ao continente
Após quatro décadas, é preciso construir um pensamento crítico sobre a história, os objetivos e a finalidade da presença brasileira no continente gelado
Após quatro décadas, é preciso construir um pensamento crítico sobre a história, os objetivos e a finalidade da presença brasileira no continente gelado
Por Ignacio J. Cardone*
No próximo 5 de Janeiro de 2023 celebra-se o 40º aniversário da chegada oficial do Brasil à Antártica[1]. Nesses 40 anos, o Brasil tem superado inúmeros obstáculos e desafios, aprofundando sua presença por meio da pesquisa antártica e da participação ativa no regime internacional criado para a sua administração. Contudo, mesmo depois de 40 anos de presença antártica, é difícil identificar no Brasil um corpus teórico de reflexão sistemática, crítica e aprofundada sobre o envolvimento do país na Antártica; algo que possa ser considerado como um pensamento antártico brasileiro. E é justamente a formação de um campo de estudos que possa subsidiar o desenvolvimento desse pensamento que continua em falta para que o Brasil consiga atingir a maturidade que reclama uma política com 40 anos de trajetória.
Isso não quer dizer que a política antártica brasileira não tenha sido objeto de reflexões no interior do Brasil, mas essas reflexões têm sido esporádicas, isoladas e geralmente vinculadas à tradição do pensamento geopolítico.
Mesmo a definição oficial de uma política para a Antártica tem sido marginal, sendo formulada de modo confidencial na década de 1970, reformulada e publicada só em 1987, antes da mudança fundamental do regime antártico com a promulgação do Protocolo ao Tratado Antártico para a Proteção do Meio Ambiente —conhecido como Protocolo de Madrid— em 1991. Atualmente, uma nova versão foi aprovada pela Comissão Interministerial para os Recursos do Mar —que gerencia o Programa Antártico Brasileiro— mas que ainda não foi sancionada e não inova significativamente sobre a versão anterior.
Essa formação incipiente de um pensamento antártico brasileiro, vinculado a personalidades tais como a geógrafa e geopolítica Therezinha de Castro, o Deputado Euripides Cardoso de Menezes, o General Carlo de Meira Mattos e o grupo de cientistas organizados no Instituto Brasileiro de Estudos Antárticos (IBEA), certamente estabeleceu as bases para a formação de um ideário nacional sobre a Antártica, mas a sua preocupação principal girava em torno de propiciar a participação ativa do país na Antártica e no regime criado a partir do Tratado Antártico[2]. Por conseguinte, a adesão do Brasil ao Tratado Antártico em 1975 e o posterior ingresso como membro pleno —chamado de Membro Consultivo— em 1983, tornou a discussão obsoleta, mesmo que tenha continuado a informar as atitudes do país perante o continente gelado.
Desde então, os avanços na trajetória brasileira na Antártida, seja no campo político ou no campo científico, não têm sido acompanhados por uma reflexão aprofundada e sistemática sobre o papel do Brasil no continente. Isso obedece, por um lado, à marginalidade que a política antártica tem adquirido na política externa do Brasil, mas, também, à forma na qual foi estruturado o Programa Antártico Brasileiro e a pesquisa científica no seu interior.
Estreitamente vinculado com uma visão geopolítica que fazia ênfase no potencial de exploração de recursos naturais[3], para o qual a participação ativa do Brasil no regime antártico resultava essencial, o Programa Antártico Brasileiro foi articulado com uma visão instrumental da ciência, colocando o peso na necessidade de cumprir com o requisito imposto pelo Tratado Antártico para a aquisição da categoria de membro pleno, isto é, o desenvolvimento de “substancial pesquisa antártica”. Assim, a pesquisa antártica foi encarada como um meio para participar das discussões sobre o continente gelado e os seus recursos naturais, mais do que a valoração de qualquer valor intrínseco da mesma. Isso levou, também, a que as áreas vinculadas com os recursos naturais fossem privilegiadas, ao menos na visão geral do programa e as suas prioridades[4].
O problema principal com essa forma de estruturação da política antártica e o programa criado para esta é que o Protocolo de Madri suspendeu a exploração de recursos naturais antárticos[5], tornando obsoleta essa preocupação e ênfase original, sem que uma outra venha a substituí-la. Foi precisamente essa visão da participação brasileira na Antártica e na estruturação do seu programa o que levou o país à situação paradoxal de propiciar uma participação sem contar com as ferramentas para tornar tal participação eficiente e consistente. Considerando, inclusive, que os mesmos pesquisadores identificaram como objetivo principal o de contribuir à permanência do Brasil como membro consultivo do Tratado Antártico[6], cabe se perguntar qual é o valor de participar quando não se tem claridade nos objetivos e meios de tal participação.
Essa situação expressa claramente o lugar subordinado que as humanidades e ciências sociais antárticas têm ocupado no Brasil. Sendo uma área em contínua expansão em muitos países com presença antártica e com cada vez maior relevância ao interior da própria comunidade científica antártica internacional[7], no Brasil o seu desenvolvimento se encontra restrito ao importante trabalho desenvolvido no Laboratório de Estudos Antárticos em Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais e ao trabalho esporádico de pesquisadores individuais. Isso se traduz, também, na carência importante de coleções especializadas, tanto documentais quanto bibliográficas, e da manutenção da memória viva da participação brasileira na Antártida.
Com a notável excepção do importantíssimo trabalho realizado pela Marinha como administrador principal do programa na manutenção de um acervo sobre a memória histórica do Brasil na Antártica, são escassas e descentralizadas as coleções sobre o tema[8]. Ainda mais, uma trajetória de 40 anos, significa que muito da memória viva sobre os primeiros anos de envolvimento está sendo perdido ano a ano, sem que um projeto de resgate de memória oral, e patrimônio documental, fotográfico e audiovisual permita preservar esse patrimônio para as futuras gerações e, inclusive, para fortalecer a posição brasileira em quaisquer discussões sobre a Antártica.
Ainda mais importante, sem a preservação e reflexão sobre essa história de envolvimento, o Brasil se encontra sem as ferramentas para refletir a respeito da sua identidade antártica, os seus objetivos no continente, e o seu papel na determinação do futuro de uma região de vital importância para o planeta.
Por isso, considero que a maior prioridade para a política antártica do Brasil nos dias de hoje, além de manter a sua presença com as atuais garantias de segurança e responsabilidade ambiental, é a de promover a área de humanidades e ciências sociais antárticas. Particularmente, faz-se necessário no Brasil fomentar um conhecimento aprofundado sobre a história política do continente e das condições institucionais do regime antártico, para evitar as habituais falácias e falhas de apreciação sobre o alcance e significado do mesmo, conhecer os desafios que o regime enfrenta na atualidade e no futuro, e desenhar políticas eficientes para fazer frente aos mesmos em consideração dos próprios interesses da nação.
Também é de fundamental importância promover um maior conhecimento e refletir a respeito da própria história de envolvimento brasileiro na Antártica[9], do imaginário e identidade nacional a respeito do continente, e dos valores culturais, estéticos e sociais que vinculam a região à sociedade brasileira. Para isso, é essencial preservar e manter a memória antártica viva, por meio de projetos de memória oral e de organização de acervos especializados vinculados com a presença brasileira na Antártica.
Tudo isso para facilitar a construção de um pensamento que seja auto reflexivo, crítico sobre sua própria história, revisionista sobre os objetivos e finalidade da participação brasileira, que supere o instrumentalismo da ciência e que prepare de modo eficiente aos negociadores na sua atuação no marco de negociações do regime.
* Ignacio J. Cardone é Professor Assistente em Relações Internacionais no Departamento de Ciências Sociais da Pontificia Universidad Católica del Perú. Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo e o King’s College London. Autor do livro “The Antarctic Politics of Brazil: where the Tropic meets the Pole” (Palgrave Macmillan, 2022 – https://bit.ly/2ZDSTG5).
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional.
Notas:
[1] A crônica da primeira Operação Antártica Brasileira (OPERANTAR) coloca em 5 de janeiro de 1983 o cruzamento dos 60º de latitude sul, considerado simbolicamente como o ponto que delimita a região Antártica. Nesse mesmo dia, a expedição brasileira chegou à Baía do Almirantado (Laserre) da Ilha Rei Jorge (25 de Mayo/Vaterloo), sendo recebidos pelos Poloneses, já ali instalados. No ano seguinte, na vizinhança desse local, a OPERANTAR II instalaria os primeiros módulos do que formaria a Estação Antártica Comandante Ferraz.
[2] Certamente este não era um grupo homogêneo e posições enfrentadas quanto ao caráter da participação brasileira e as recomendações de vias de ação foram características entre os seus membros. Mas de modo geral todos procuravam uma atitude ativa do Brasil para o continente. Para uma história detalhada, ver: Cardone (2022).
[3] Existiam também posições que colocavam preocupações sobre outras questões estratégicas, como a influência do clima antártico sobre o Brasil, com o potencial de “ataques climáticos”, e como posição estratégica perante conflitos de grande escala pelo passagem interoceánico, mas estes parecem ter tido um papel mais marginal e/ou discursivo.
[4] Isso não quer dizer que tenha tido qualquer tipo de direcionamento por parte do gerenciamento do programa no que refere-se à pesquisa Antártica. Mas a definição de áreas prioritárias, certamente teve influência nos convites realizados pela Marinha em um primeiro momento, e na seleção dos projetos, realizados pelas instâncias de representação científica, em um segundo momento. Incluso, se podem notar diferenças significativas nos valores máximos asignados a cada área de investigação nos últimos chamados dos editais de pesquisa para o Programa Antártico Brasileiro.
[5] O Protocolo estabelece a proibição de atividades extrativas com finalidade outra que não seja pesquisa. O Protocolo estabelece uma vigência mínima de cinqüenta anos desde a sua ratificação, em 1998, sendo possível solicitar a sua revisão só a partir de tal data. Normalmente, isso tem sido interpretado, erroneamente, como que a partir de 2048 estaria habilitada a exploração de recursos naturais. O que se habilita em 2048 apenas é a possibilidade de rediscutir as suas pautas, o que requer um pedido específico por parte das suas partes e que não necessariamente acontecerá.
[6] Ver, por exemplo: Simões et al. (2013). Ciência Antártica Para o Brasil, plano de ação 2013-2022.
[7] Uma clara expressão disso constitui o exponencial crescimento do grupo de humanidades e ciências sociais dentro da estrutura do Comitê Científico para as Ciências Antárticas (SCAR por suas siglas em inglês), comitê internacional que cuida de coordenar e estabelecer as prioridades para a pesquisa na região.
[8] A grande maioria do acervo documental e bibliográfico se encontra disperso em diferentes repositórios e bibliotecas, sem um catálogo ou coleção geral que permita conhecer ou aceder a este de modo mais simplificado. A distribuição federal do programa, com Universidades e instituições distribuídas ao longo do país, faz com que um relevamento deste resulte excessivamente oneroso, quando não inviável para os pesquisadores individuais.
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Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)
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