13 maio 2022

Uma história de mistério – Capítulo inédito do livro ‘O Brasil na Guerra das Malvinas’

Leia trecho de capítulo do livro O Brasil e a Guerra das Malvinas: Entre Dois Fogos (Alameda), de João Roberto Martins Filho. Obra vai ser lançada em junho de 2022 e parte da análise de documentos britânicos e do Brasil para reconstruir momentos importantes da diplomacia brasileira durante o conflito entre o Reino Unido e a Argentina. Trecho narra discussão a respeito do pouso de um bombardeiro britânico no Brasil e a apreensão de um míssil no país após o fim do conflito, em junho de 1982.

Leia trecho de capítulo do livro O Brasil na Guerra das Malvinas: Entre Dois Fogos (Alameda), de João Roberto Martins Filho. Obra vai ser lançada em junho de 2022 e parte da análise de documentos britânicos e do Brasil para reconstruir momentos importantes da diplomacia brasileira durante o conflito entre o Reino Unido e a Argentina. Trecho narra discussão a respeito do pouso de um bombardeiro britânico no Brasil e a apreensão de um míssil no país após o fim do conflito, em junho de 1982.

Militares argentinos durante a Guerra das Malvinas

Por João Roberto Martins Filho*

Quase 30 anos depois do final do conflito, um jornalista brasileiro especializado em armamentos afirmou sobre o Vulcan: “o míssil que trazia foi removido e minuciosamente examinado por especialistas do CTA. Ninguém confirma, mas a versão corrente é que a arma nunca foi devolvida e teria servido de base para o desenvolvimento da versão nacional do mesmo tipo de equipamento”. [1] É hora de examinar a documentação diplomática britânica para conferir o que há de real nessa história.

Naquele 25 de junho de 1982, o leitor de jornais poderia com certa atenção descobrir nas páginas internas de um dos mais importantes matutinos do país a pequena notícia que parecia dar um fim à novela do míssil. Em apenas três curtos parágrafos, o último dedicado a outro assunto,[2] a nota informava: “O Ministério da Aeronáutica já colocou à disposição da Força Aérea inglesa o míssil Sidewinder, que um bombardeiro Vulcan trazia preso sob as asas, quando entrou no espaço aéreo brasileiro sem autorização”. E completava: “atendendo à praxe internacional, o Brasil liberou o avião sem o armamento, que ficou sob a guarda da FAB”, condicionada sua liberação ao término da guerra.[3]

Mas a boa nova (pelo menos para os britânicos) foi prematura. Ainda havia pedras no meio do caminho, que contribuiriam para adiar em vários dias a resolução do problema.[4] O atraso aumentou a impaciência dos britânicos e fez surgir a desconfiança de que os amistosos irmãos em armas da FAB estavam fazendo alguma coisa com seu Westinghouse AGM-45 Shrike, além de contemplá-lo extasiados. A história está contida numa pasta guardada dos National Archives, com o título “Vulcan diversion to Brazil”, em cujo interior há nove documentos datados dos últimos dez dias de junho de 1982. Um deles é o relato acima do adido Jerry Brown sobre a afabilidade dos brasileiros, outros quatro foram assinados pelo próprio chanceler britânico, Francis Pym e o mesmo número pelo embaixador Harding. Vamos a eles.

O primeiro telegrama é de 21 de junho e foi enviado pelo FCO para a embaixada em Brasilia, com cópia para a representação em Washington. Nele, o foreign secretary dizia: “concordamos com os brasileiros de que eles devem ter a custódia do míssil ‘até o fim do conflito’. Não sabemos comos os brasileiros interpretam essa frase mas foi certamente nossa intenção que o míssil deva ser devolvido para nós assim que os combates terminarem”. Agora que até a Argentina aceitava que se tinha chegado a um cessar-fogo de facto, lembrava Pym ao embaixador Harding, “agradeceríamos se você pudesse negociar a liberação dessa arma”. Caso os brasileiros insistissem em retê-la até que houvesse um cessar-fogo formal, o embaixador devia dizer que isso não era relevante, para a guarda do míssil ou não. “Os combates estão agora terminados e portanto não há possibilidade de usar o míssil contra as forças argentinas”, insistia o chanceler, reconhecendo a dificuldade de atingir um cessar-fogo de jure, como seria desejável. Isso poderia levar a um prolongamento da retenção do míssil pelos brasileiros, o que certamente seria um embaraço para eles, acrescentou.

Se achasse preciso, Harding poderia comparar essa “modesta demanda” com a ajuda “consideravelmente maior” dada à Argentina na forma da ponte aerea de equipamento militar via Recife.[5] Esse último ponto, registrava o ministro britânico, continuava a causar grande preocupação em Londres. Não havia nenhuma indicação, muito pelo contrário, de que ela tivesse deixado de funcionar depois do fim do conflito.

A resposta de Brasilia demorou quatro dias, com cópia para o MOD (Air Force) e a embaixada em Washington. Nela, Harding explicava que as gestões relativas à questão, que ele pretendia fazer por meio do secretário pessoal do chanceler brasileiro, Orlando Carbonar, naquele momento em Assunção, foram sustadas pelo “vazamento insuspeitado e surpreendente” nos jornais da manhã, relativo à disposição brasileira de devolver o míssil, como vimos. Tudo indicava, dizia Harding, que o ministro da Aeronáutica não tinha acertado os pontos com o Itamaraty, que foi pego de surpresa. O próximo movimento pertencia ao chanceler. O vazamento tornara difícil para a diplomacia brasileira “dar uma de difícil” (play awkward) no tema da liberação do armamento, mesmo se estivesse disposta a fazê-lo. Mas, “de forma contrária, pode infelizmente oferecer aos argentinos uma oportunidade para jogar areia nos nossos planos (put a spoke in our wheels)”, concluía o diplomata.[6]

O bombardeiro britânico Vulcan

Antes de continuar, cumpre esclarecer um ponto. Em algum momento depois do fim das hostilidades, os brasileiros identificaram corretamente o míssil. Tratava-se, como notamos, de um Shrike e não de um Sidewinder. Isso está registrado em dois documentos, ambos sem data. O último deles, uma avaliação do conflito dirigida à Secretaria-Geral do Conselho de Segurança Nacional, que incluía a análise do desempenho das forças terrestres, aéreas e navais dos dois contendores, além do inventário do equipamento empregado e de um balanço do impacto dessas informações sobre o futuro das forças armadas brasileiras, trazia detalhes completos: o Shrike AGM-45A era classificado como ar-solo, utilizava combustível sólido e operava como “radio radiation roaming” e “passive radar homing” (em inglês no texto). [7] O primeiro e mais antigo trazia o título “Guerra das Malvinas – Avaliação – Campo Militar” e dizia: “os sítios de radares localizados nas ilhas Malvinas foram alvos de ataques dos Vulcan que utilizaram os mísseis SHRIKE anti-radar para esse intento. Desconhece-se, no entanto, os resultados obtidos nos ataques”.[8] Esta última observação permite supor que o relatório foi redigido logo depois do término das “hostilidades”.

De volta à série de telegramas que examinamos, passaram-se mais cinco dias antes que viesse de Londres uma nova cobrança do FCO à embaixada, também com cópia para o MOD (Air Force) e Washington, desta vez um com uma única pergunta: “Ainda sem novidades do governo brasileiro?”.[9] Foi o que bastou para Brasília responder no mesmo dia, em telegrama de quase 50 linhas, no qual Harding explicou que estivera em contato por duas vezes com o secretário do ministro, o embaixador Carbonar. Guerreiro o avisou que não via problema em concordar com a liberação do míssil, mas que, antes de dar o sinal verde, gostaria de primeiro consultar seu colega da Força Aérea, no momento fora de Brasília. O embaixador britânico disse a Londres suspeitar que seria necessário o endosso do próprio Presidente.

Segundo Harding, Carbonar lhe contara que para o chanceler dificilmente haveria matéria de maior urgência que assegurar a imediata devolução do armamento. No entanto, a situação com respeito ao fim das hostilidades ainda estava de certo modo incerta. E era difícil para uma terceira parte decidir se o conflito no Atlântico Sul tinha efetivamente terminado, quando os próprios contendores pareciam discordar sobre a questão. Quanto ao tema da urgência, Harding teria solicitado a Carbonar fazer chegar  ao ministro que as autoridades brasileiras deveriam saber que o governo dos EUA estaria “não menos interessado” na devolução imediata do míssil. Ambos os governos estavam ansiosos quanto à segurança do artefato e embora soubessem que estávamos cuidando bem dele (e aqui o texto continha uma irônica exclamação), havia um desejo compreensível de que fosse devolvido, quanto antes melhor. [10]

Militares argentinos durante a Guerra das Malvinas

O secretário prometeu fornecer uma resposta final tão logo possível, mas alertou que isso poderia levar “alguns dias”. Neste ponto, Harding alertou o FCO de que não via sentido em aumentar a pressão por uma decisão rápida, o que poderia levar os brasileiros a “fincar pé” (dig em their toes). A FAB fora muito prestimosa sobre o desvio de emergência para o Rio de um avião C130 na noite anterior (29-6) e tinha deixado bastante claro que, se fosse por ela, o míssil já teria sido devolvido. O embaixador salientou que, por sua experiência pessoal, no caso do Itamaraty, se você os provocasse, eles se fechariam em copas (if you stick a pin in them, they withdraw into their shell). Harding afirmou que não sabia como interpretar “esse atraso insensato”, embora achasse que a explicação capenga (lame) de Carbonar não estivesse muito longe da verdade. Embora o secretário insistisse em dizer que a decisão era do governo, Harding avaliava que quem estava no comando da questão era o Itamaraty, possivelmente apoiado pelo próprio presidente Figueiredo. E concluía: por mais insatisfatória e mesmo pueril que ela pudesse parecer, não via razão para fazer barulho sobre a decisão brasileira. Não tinha dúvidas de que a FAB estava tão incomodada com isso como qualquer pessoa e talvez fosse melhor deixar para aos brasileiros a resolução de suas próprias rusgas internas. A última frase do longo telegrama dizia: “Enquanto isso, eu recomendaria que o MOD faça planos firmes para buscar o míssil num dia da escolha deles, na terça-feira, 6 de julho, ou depois disso”. Pela primeira vez, o fim da novela tinha uma data.[11]

Cinco horas depois, no mesmo dia 30, Harding informou a Londres ter recebido chamada telefônica do secretário de Saraiva Guerreiro para comunicar que o Shrike seria liberado em uma semana (contando do dia anterior), vale dizer no dia mencionado acima. O diplomata brasileiro sugeriu que o adido Brown tomasse as providências necessárias para a remoção do míssil diretamente com a FAB. Segundo o embaixador, Carbonar, “um burocrata ultra cauteloso” mas “altamente confiável” fora incapaz de dar uma explicação satisfatória sobre o atraso de uma semana, além do argumento de que a questão da total cessação das hostilidades ainda era imprecisa. Ambos concordaram que isso não se resolveria em uma semana. O brasileiro admitiu que seu governo estava sendo cauteloso (playing safe) na matéria. Harding então lhe perguntou se os argentinos seriam informados. Carbonar respondeu que sim. O embaixador indagou se os argentinos teriam algum poder de veto na decisão (do que ele próprio duvidava, como explicou a Londres). O secretário privado do chanceler não soube ou não quis informar. O embaixador pediu então ao diplomata brasileiro que informasse o ministro que as duas respostas – o porquê do atraso e o aviso aos argentinos – certamente despertariam desconfiança (would undoubtedly raise eyebrows) em Londres, o que não ajudaria o Brasil ou a Grã-Bretanha. Carbonar teria prometido levar a mensagem ao chanceler Guerreiro. Harding não acreditava que uma resposta às duas questões pudesse vir de um ou de outro e assim informou seus superiores.[12]

 No dia seguinte, o FCO respondeu aos dois últimos telegramas de Brasília, com cópia ao Ministério da Defesa e a Washington: Pym não via vantagem em pressionar ainda mais os brasileiros. O MOD estava tomando as providências para que um avião pegasse o míssil. Detalhes do vôo seriam transmitidos assim que possível.[13] Mas um dia depois, veio de Londres uma informação de última hora: “você deve estar ciente das notícias de que podem estar mexendo no míssil (that this missile may be tampering with). A informação de Roberto Godoy citada acima adquire assim ares de verdade: o Brasil (provavelmente, por meio de técnicos do CTA) “buliu” com o Shrike. Alguém estava passando informações ao serviço secreto britânico, que desta vez as repassou ao FCO, de modo que chegaram à embaixada em Brasília. Diante disso, continuava a lacônica mensagem, “gostaríamos que você providenciasse que seu adido aeronáutico faça uma inspeção urgente nele, conforme os termos do entendimento alcançado com os brasileiros”. Uma outra providência foi acrescentada: “você talvez queira consultar seu colega americano antes de qualquer ação”. Mas isso não deveria trazer novo adiamento. Se dependesse de Londres, mais uma vez, Harding e Motley atuariam em dupla.[14]

A última comunicação da série encerrou a questão: Harding informou Pym que, como este devia saber, tinham sido tomadas providências para remover o míssil do Brasil na terça-feira, 6 de julho. A informação seguinte destoava do tom da conversa anterior: como Pym talvez soubesse o Brasil fechara para balanço (has switched off completely) naquele final de semana devido à “febre da Copa do Mundo”. Talvez estivesse aí a prosaica razão para o atraso de uma semana na entrega do precioso Shrike. O embaixador certamente achou desnecessário mencionar o nome do país adversário do Brasil: a Argentina.

E chegamos enfim à questão mais candente: “se a FAB decidiu assumir o risco de desmontar o míssil, eles certamente já terminaram a tarefa antes da declaração não autorizada do Ministro da Aeronáutica à imprensa em 24 de junho, no sentido de que poderíamos remover o míssil quando o desejássemos”.[15] Vale dizer, num lance digno de figurar no filme A pele, baseado no romance homônimo de Curzio Malaparte, sobre as artimanhas napolitanas no tempo da ocupação americana da II Guerra, tudo indica que a FAB deu um passa-moleque na RAF, agindo na surdina e com presteza, embora sobre isso não se possa ter certeza. De qualquer modo, a pasta FCO 7-4423 se encerra aí, com a usual folha onde se lê: “last document”. É muito difícil supor que o Shrike não foi recolhido no dia aprazado. Se isso tivesse ocorrido, a temperatura teria subido e haveria registro documental. Assim, em 6 de julho de 1982, a última peça do drama das Malvinas/Falklands deixou incógnita o Brasil. Não se sabe se o míssil foi posteriormente devolvido pelos britânicos aos norte-americanos.[16]


João Roberto Martins Filho é professor de ciências sociais da Universidade Federal de São Carlos. Bacharel em Ciências Sociais pela Unicamp (1976), onde também concluiu o Mestrado em Ciência Política (1986) e o Doutorado em Ciências Sociais (1993). É autor de vários livros como Segredos de Estado: O Governo Britânico e a Tortura no Brasil (1969-1976) (Ed. Prismas), O Palácio e a Caserna, 1964-1969 e Os Militares e a Crise Brasileira (ambos pela Alameda).


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional


Notas:

[1] Roberto Godoy, “Bastidores: … e assim, naquela manhã de junho, o F-5 interceptou o Vulcan”, O Estado de S. Paulo, 7 de junho de 2010.

[2] A desativação da bomba que se incrustara no superpetroleiro Hercules quando este passou a 864 quilômetros das Malvinas/Falklands.

[3] “Brasil devolve o míssil do Vulcan”, O Estado de S.Paulo, 25 de junho de 1982.

[4] Uma delas foram os jogos da Copa do Mundo de Futebol, onde o franco favorito Brasil ganhou da Argentina a 2 de julho por 3x 1 e perdeu para a Itália pelo mesmo score,a 5 de julho, sendo desclassificado. Como sempre acontece, o Brasil parou para ver os jogos e a questão dos mísseis ficou para depois.

[5] Telegram number 202 of 21 June, FCO to Brasilia, FCO 7-4423, “Vulcan diversion to Brazil”, 1, NAK.

[6] Telegram number 297 of 25 June 82 Brasilia to FCO, FCO 7-4423, 2, NAK.

[7] “Malvinas – Força Naval”, “Mísseis”, Anexo C, p.705-736, Conflito no Atlântico Sul Falklands/Malvinas, BR DFANBSB N8.0.PSN, EST.44 – dossiê i das malvinas – dossiê, Fundo: Conselho de Segurança Nacional. SIAN. Acesso em 17 de abril de 2020.

[8] Ver idem, p. 595-620, p.615.

[9] Telegram 210 of 30 June, FCO to Brasilia, FCO 7-4423, 3, NAK.

[10] Sobre a questão do fim das hostilidades, o embaixador disse que uma decisão rápida sobre o retorno do míssil poderia atuar de forma benéfica para a própria consolidação do final do conflito.

[11] Telegram number 210 of 30 June, Brasilia a FCO, FCO 7-4423, 4, NAK.

[12] Telegram number 304 of 30 June, Brasilia a FCO, FCO 7-4423, 5, NAK.

[13] Telegram number 211 of 1 July, FCO a Brasilia, FCO 7-4423, 6, NAK.

[14] Telegram number 213 of 2 July 1982, FCO a Brasilia, FCO 7-4423, 7, NAK. O telegrama foi expedido com cópia para Washington (desta vez para Carrick) e para o MOD (tendo como destinatários, além da já conhecida Inteligência do Comando da RAF, misteriosos D14 e DS8).

[15] Harding explicou que não via possibilidade de que o adido tivesse acesso ao míssil no final de semana. De resto, nunca ficou resolvido que se poderia ter acesso ao artefato à vontade. No entanto, deixou claro, Brown estaria presente quando da liberação do míssil e viajaria com ele até o Reino Unido.

 [16] Telegram number 307 of 2 July, Brasilia a FCO, FCO 7-4423, 8.

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

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