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Interesse Nacional
23 maio 2022

Sidney Chalhoub: Há uma preocupação muito grande da comunidade de brasilianistas com a democracia do Brasil

Em entrevista, professor de Harvard e presidente da Brazilian Studies Association (Brasa) diz que longo histórico de golpes e intervenções militares na política do país dá motivo para atenção à crise democrática do Brasil, mas explica que o governo Bolsonaro está isolado no mundo e seria difícil ter apoio internacional para um governo autoritário 

Em entrevista, professor de Harvard e presidente da Brazilian Studies Association (Brasa) diz que longo histórico de golpes e intervenções militares na política do país dá motivo para atenção à crise democrática do Brasil, mas explica que o governo Bolsonaro está isolado no mundo e seria difícil ter apoio internacional para um governo autoritário 

Desfile da Operação Formosa, da Marinha, em Brasília com a presença do presidente Jair Bolsonaro em agosto de 2021 (Pedro França/Agência Senado)

Por Daniel Buarque

A crise da democracia brasileira, sob risco em um ano de eleições, foi um dos temas mais importantes abordados durante encontro internacional de acadêmicos que estudam o Brasil no exterior, em março. A comunidade de brasilianistas está preocupada com a situação da política do país, explicou Sidney Chalhoub, presidente da Brazilian Studies Association (Brasa), entidade que reúne estrangeiros que pesquisam temas ligados ao Brasil.

“Há um consenso em torno da ideia de crise da crise democrática”, disse Chalhoub em entrevista à Interesse Nacional. “O Brasil voltou a não ter um regime democrático funcional. Tanto que a discussão política está totalmente capturada pela questão sobre a possibilidade de um golpe, sobre acusações falsas de fraude eleitoral”, explicou.

Chalhoub é professor de história e de estudos africanos e afro-americanos na Universidade de Harvard. É autor de A força da escravidão (2012), em que aborda a escravidão ilegal e a precariedade da liberdade no Brasil oitocentista, e de livros sobre a história social do Rio de Janeiro, como Trabalho, lar e botequim (1986), sobre a cultura operária no início do século XX, Visões da liberdade (1990), sobre as últimas décadas da escravidão; e Cidade febril (1996), sobre cortiços e epidemias na segunda metade do século XIX. 

Um dos focos da sua avaliação sobre a situação brasileira é que a presença dos militares na política foi uma constante desde o século XIX, o que gera preocupação no momento atual. O Brasil, diz, tem uma “tradição do intervencionismo militar na política”, que coloca a democracia em risco. Apesar disso, o contexto internacional e o isolamento do governo de Jair Bolsonaro tornam difícil que uma tentativa de golpe tenha apoio fora do país. “Não há nenhuma condição do governo norte-americano fazer o que fez em 1964, até porque Bolsonaro é um realmente um pária Internacional, não tem diálogo em lugar nenhum”, disse. 

Leia a entrevista completa abaixo.

Daniel Buarque – Como a Brazilian Studies Association está acompanhando a questão da eleição no Brasil neste ano? 

Sidney Chalhoub – A associação não se reuniu para tomar uma posição sobre a eleição. Mas tivemos um congresso há poucos meses, em março, no qual houve várias discussões a respeito dessa situação contemporânea do país e toda a crise atual. Tanto as plenárias que reúnem todos os participantes quanto as mesas de debates trataram da atual crise política e da situação no país. Um dos focos foi a crise da democracia, em que se falou da história das intervenções políticas no Brasil. Há uma preocupação muito grande da comunidade de brasilianistas e de pessoas que atuam em universidades norte-americanas.

Daniel Buarque – Na conferência da Brasa de 2016 houve uma crise na associação por conta do posicionamento a respeito do impeachment de Dilma Rousseff. Como está a associação atualmente?

Sidney Chalhoub – A experiência de 2016 foi difícil porque criou uma crise sem precedentes. A Brasa se posicionou naquele momento, que foi muito difícil, e ninguém quer ver aquela situação se repetir. A nossa convicção é que diagnosticamos com absoluta precisão o buraco em que o Brasil entrava com aquele processo de impeachment. Com a chegada de Bolsonaro ao poder, vários associados a Brasa fundaram a organização política US Network for Democracy in Brazil para a gente agir livremente, assumir posições políticas de forma que a Brasa evita por conta da sua característica característica académica. Mesmo assim, é evidente que há um acordo muito grande a respeito da gravidade da situação no Brasil. Há um consenso em torno da ideia de crise da crise democrática.

‘A nossa convicção é que diagnosticamos com absoluta precisão o buraco em que o Brasil entrava com aquele processo de impeachment’

A percepção era de que o impeachment já era claramente uma indicação da gravidade da situação. Isso foi percebido muito rapidamente pela comunidade de brasilianistas no exterior. A percepção clara é que a democracia brasileira entrava num novo momento de instabilidade profunda. As interpretações variam em relação ao início disso, se foi em 2013 ou em 2014. Eu particularmente acho que o fato mais grave desse processo, que indica uma irresponsabilidade pessoal e partidária muito grande, foi o não reconhecimento da derrota em 2014 por Aécio Neves. As teorias sobre crise democráticas, inclusive nos Estados Unidos, mostram que a democracia se baseia em instituições que precisam funcionar e se baseia também numa espécie de pacto de respeito mútuo. E essa transgressão de não reconhecer a derrota numa eleição que todo mundo sabe que foi limpa, sem nenhum indício que possa justificar a suspeita de fraude, é um problema. 

O processo atual ameaça o único período de real democracia que o Brasil experimentou, que foi Constituição de 88 para cá. Agora parece estarmos de volta ao que se chamava de período democrático, como de 1945 até 1964, quando havia eleições, mas não se sabia se a pessoa eleita poderia assumir o poder. Foi assim com Getúlio Vargas, foi assim com Juscelino Kubitschek. E nós voltamos a esse período. Não acho que aquilo fosse um período democrático, quando não há certeza de que as eleições serão limpas, e quem perder reconhecerá o resultado e quem ganhar assumirá o poder, questões básicas da democracia. Se isso não está assegurado, você não está num regime democrático funcional. E o Brasil voltou a não ter um regime democrático funcional. Tanto que a discussão política está totalmente capturada pela questão sobre a possibilidade de um golpe, sobre acusações falsas de fraude eleitoral. 

‘O perigo do golpe no Brasil é muito real, especialmente por conta do olhar histórico’

Daniel Buarque – Existe alguma percepção dos brasilianistas em relação ao risco de um golpe no país?

Sidney Chalhoub – O perigo do golpe no Brasil é muito real, especialmente por conta do olhar histórico. Da Independência até a década de 1960, o Brasil praticamente não tinha um Exército profissional, e a primeira geração de políticos brasileiros desconfiava de um Exército profissional. No século XIX, entretanto, a Guerra do Paraguai cria uma outra situação, profissionalizando e dando empoderamento político ao Exército a ponto de criar uma outra tradição política que não deixa o país. É a tradição do intervencionismo militar na política. 

O primeiro episódio está ligado à escolha do Duque de Caxias como patrono do Exército brasileiro, pois ele foi o chefe das Forças Armadas que levou à vitória contra o Paraguai, mas foi também o responsável pelo primeiro golpe militar na política brasileira. Em 1868, Caxias era um político conservador de longa data e achava que o governo liberal estava preocupado com a questão escravocrata e não estava dando apoio suficiente ao esforço de guerra, então ele pressionou Dom Pedro II a demitir o gabinete liberal e a nomear um outro gabinete mais conservador. Foi um golpe branco, o primeiro caso claro de intervenção militar num jogo político que estava funcionando segundo as regras do período perfeitamente. Foi um momento político crucial da crise da monarquia. 

Daí para frente, os militares nunca deixam de ter essa força política. Nos anos 1870, 1880, eles se tornam cada vez mais profissionalizados, exigem cada vez mais recursos do Estado, começam a participar mais no jogo político. Tanto que a República chega por meio de um golpe militar. E daí pra frente, são anos de ditaduras, mesmo em situações em que havia eleições e o equilíbrio corrupto das oligarquias paulista e mineira, era um equilíbrio sempre precário. E desde então houve nos anos 1920, com os tenentes e com tentativas também de intervenção na política. Em 1930, Getúlio chega ao poder com apoio dos militares, depois é derrubado pelos militares, mais tarde Juscelino é eleito, mas ninguém sabe se ele vai assumir… Até 1964, com o golpe, e a coisa não volta ao normal até a Constituição de 1988, quando os militares saíram do poder bastante desmoralizados. Desde então o Brasil viveu um quarto de século de democracia, mas isso começa a degringolar com o impeachment. Naquele momento, o caráter disfuncional das instituições se tornou manifesto. 

‘Paradoxalmente, os militares voltam a ter espaço político durante os governos do PT, com a ambição da política externa Brasileira de que o Brasil se tornasse um protagonista Internacional’

Paradoxalmente, os militares voltam a ter espaço político durante os governos do PT, com a ambição da política externa Brasileira de que o Brasil se tornasse um protagonista Internacional, levando a participar em organizações internacionais, a chefiar a missão do Haiti, por exemplo. Os militares se beneficiaram desse processo, bem como das Operações de Garantia da Lei da Ordem.

Daniel Buarque – Apesar do fortalecimento dos militares e das declarações do presidente, o contexto Internacional hoje é muito diferente do passado. Mesmo considerando que a história de golpes no Brasil é muito longa, a tendência é olhar para 1964, para o apoio que os Estados Unidos deram naquele momento. E hoje vê-se esse movimento em que Joe Biden está deixando muito claro que vai defender a democracia brasileira. Como o mundo está acompanhando esse processo de ameaça à democracia no Brasil? 

Sidney Chalhoub – Esse posicionamento dos Estados Unidos é importante e passa uma mensagem de que os Estados Unidos estão mais preocupados com a manutenção das regras democráticas no Brasil e que não sustentariam uma aventura golpista, como fizeram em 64. Mas é preciso tomar cuidado com a leitura desse momento, porque sabemos que houve uma colaboração próxima entre o Departamento de Justiça dos Estados Unidos e os procuradores corruptos da Lava Jato, os procuradores politizados da Lava jato que tornaram a eleição Brasileira de 2018, olhando retrospectivamente, uma fraude. Por isso o trabalho do Washington Brazil Office e do US Network for Democracy in Brazil é importante para ajudar na conscientização e de conversa política com os parlamentares norte-americanos. É um trabalho de sustentação da democracia brasileira no parlamento americano. É preciso tomar cuidado, pois os Estados Unidos também nunca estão felizes com a esquerda no poder no Brasil, na Colômbia, na Argentina. Uma volta dessa onda de governos mais progressistas na América Latina também provavelmente não é bem vista pelo governo norte-americano. Acredito que do ponto de vista da opinião pública, não há nenhuma condição do governo norte-americano fazer o que fez em 1964, até porque Bolsonaro é um realmente um pária Internacional, não tem diálogo em lugar nenhum. 

‘É preciso tomar cuidado, pois os Estados Unidos também nunca estão felizes com a esquerda no poder no Brasil, na Colômbia, na Argentina. Uma volta dessa onda de governos mais progressistas na América Latina também provavelmente não é bem vista pelo governo norte-americano.’

Daniel Buarque – Não acha que é preciso pensar na questão de geopolítica atual, com a guerra na Ucrânia e a posição do Brasil de evitar se colocar contra a Rússia, por exemplo?

Sidney Chalhoub – A Rússia não tem como prestar apoio a ninguém na atual situação. A China é outra história, realmente tem cartas na manga e pode ter influência. Mas o ponto central são os Estados Unidos, que podem partir para uma política de sanções em relação ao Brasil no caso de um golpe no país. É isso que vai doer. As ligações com a economia norte-americana são muito íntimas e tem indicações simbólicas. Não sei se isso ocorreria, e admito que sou cético. No fim, essas considerações geopolíticas vão falar mais alto do que a defesa da democracia. Claro que haverá pressão, mas eu não sei onde vai essa pressão, ou se ela vai ter poder de dissuasão. O mais importante é que a eleição brasileira mande um recado totalmente inequívoco de rejeição ao autoritarismo.

Daniel Buarque – Esse cenário de recado da eleição, ou o de risco de golpe, consideram a possibilidade de derrota de Jair Bolsonaro nas eleições, mas o presidente pode vencer e ser reeleito. Qual a sua percepção para um cenário de vitória dele para as relações com os Estados Unidos? 

Sidney Chalhoub – Esse isolamento que já existe continuaria. Se ele ganhar no voto, significa realmente que o país está com uma tendência suicida incontrolável. Mas será preciso reconhecer, se for isso que o povo brasileiro escolher. Tem que respeitar. E cabe à oposição continuar a fazer o que fez nos últimos anos: apoiar os movimentos sociais, denunciar as barbaridades internacionalmente. É uma dinâmica de contenção de danos. E tudo depende também do resultado também das urnas do Congresso. Se o país tiver um Congresso mais independente, por exemplo, Bolsonaro pode ganhar a eleição e sofrer um impeachment. Pode acontecer algo parecido com o que aconteceu com Dilma, que ganhou a eleição de 2014 por pouco e não governou no segundo mandato.

Daniel Buarque – Voltando à atuação da Brasa, a associação acadêmica tem conseguido dar espaço para outras pesquisas, ou o foco está muito ligado à questão política no Brasil?

Sidney Chalhoub – O último Congresso foi interessante por ter outros temas importantes. Eu pude falar sobre Machado de Assis, por exemplo. A organização acadêmica tem uma discussão ampla sobre a política brasileira, mas continua com espaço para pesquisas de cultura, com discussões sobre Machado, José de Alencar, Guimarães Rosa, por exemplo. Estudos tradicionais deste tipo continuam com muita força –inclusive com pesquisas realizadas no Brasil.

No início, estávamos muito preocupados com as universidades brasileiras no governo Bolsonaro. Mas, no fundo, aprendemos uma diferença que existe entre Brasil e Hungria ou Turquia, por exemplo, onde as universidades foram atacadas impiedosamente pelos governos. Por mais que Bolsonaro tenha atacado a educação, no Brasil as proteções institucionais, as universidades públicas com autonomia intelectual, autonomia académica e estabilidade de professores e funcionários, se sustentou. Então as universidades se seguraram bem. Elas estão sucateadas, sem verbas de manutenção de custeio, não têm bolsas de estudo, mas elas podem se recuperar relativamente bem, porque o principal, que é a manutenção do professorado, das características fundamentais institucionais, foram mantidos nesse período. 

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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