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Interesse Nacional
27 maio 2022

A elite do antielitismo: um paradoxo francês

Eleição na França foi marcada pelo crescimento de um discurso conspiratório de divisão entre o povo (representando o bem) e a elite (símbolo do mal). Apesar de ter um apelo internacional, este pensamento ignora que as lideranças antielitistas também formam uma casta superior elitista formada por políticos profissionais pouco diferentes dos que eles mesmo criticam

Eleição na França foi marcada pelo crescimento de um discurso conspiratório de divisão entre o povo (representando o bem) e a elite (símbolo do mal). Apesar de ter um apelo internacional, este pensamento ignora que as lideranças antielitistas também formam uma casta superior elitista formada por políticos profissionais pouco diferentes dos que eles mesmo criticam

Cartaz de campanha pela reeleição de Emmanuel Macron rasgado (Foto: Lorie Shaull)

Por William Genieys e Mohammad-Saïd Darviche*

Os resultados da eleição presidencial levaram muitos observadores a pensar que a França estaria dividida em três polos: um centro de governo, uma direita reagrupando suas correntes conservadoras e extremistas e uma esquerda voltada principalmente para seu polo radical.

As variáveis ​​da sociologia eleitoral, a abstenção, a divisão entre gerações ou estilos de vida explicam que não se trata de uma simples repetição do cenário de 2017. Aliás, a crise dos “coletes amarelos” e a da Covid-19 acentuaram o sentimento de “ódio” de políticos que representam os partidos do governo. Emmanuel Macron encarna esse ódio particularmente bem.

Rumo a um alinhamento de discursos contra as “elites”?

Poucos desses analistas, no entanto, destacaram a vitória sem precedentes de candidatos que se diziam antielitistas.

O termo “elite” vem do verbo eligere (“escolher”), um termo latino em uso na França a partir do século XII. Na contemporaneidade, “elite” e “elitismo” designam na comunidade dos homens um certo número de pessoas “eleitas” destinadas a liderar os não-“eleitos”, o que se associa à noção de mérito. Ao contrário do aristocratismo, o elitismo tem uma conotação social e política positiva. O antielitismo é uma crítica radical dessa concepção. Hoje aplicado à vida política, resulta em um questionamento do caráter “meritocrático” da competência e, portanto, da legitimidade das elites da democracia representativa.

Qualificamos assim os candidatos que mobilizaram durante a campanha a retórica do antielitismo. A extrema-direita, Éric Zemmour, Marine Le Pen, a direita soberanista, Nicolas Dupont-Aignan, Jean Lassalle, mas também os candidatos da esquerda radical, Jean-Luc Mélenchon, Philippe Poutou ou Nathalie Artaud, vilipendiaram o poder da “oligarquia” , dos “poderosos”, das “finanças”, da “casta”, dos “de cima”, etc.

Os candidatos que mobilizaram essa retórica no primeiro turno das eleições presidenciais entre 2012 e 2022 obtiveram um número cada vez maior de votos: 33% em 2012; 49,8%: em 2017; e 61,1% em 2022. Se realmente não podemos fazer um nexo de causalidade entre essa retórica e essas pontuações, podemos supor que essa retórica não chocou os eleitores a ponto de dissuadi-los de votar nesses candidatos.

Uma retórica contra a democracia representativa

Essa retórica antielitista –transmitida por líderes populistas por mais de uma década– transcende a divisão direita-esquerda.

Como aponta Jacques Julliard, o movimento social de 1995 foi o momento histórico que tornou a retórica antielitista “um dos tópicos obrigatórios do discurso político”. Desde então, continuou a se tornar central para os estilos discursivos de direita mais radicais, mas também cada vez mais de esquerda, em particular da França Insubmissa. Gérald Bronner lembra que mesmo os políticos mais moderados não hesitam em fazer uso dessa figura de “demagogia cognitiva”. Todos se lembrarão do lema “meu adversário é o mundo das finanças!” lançado por François Hollande durante a campanha eleitoral de 2012. Nesse contexto, os argumentos racionais perdem seu espaço, pois mesmo quem os carrega se livra deles em nome da rentabilidade eleitoral.

Nesta perspectiva, a oligarquia “dos ricos, a casta dos políticos” e os tecnocratas do “Estado profundo (francês ou de Bruxelas)” devem sair. Este apelo para se livrar da elite é consubstancial à divisão do mundo entre o povo (bem) e a elite (mal). O bem não deveria naturalmente expulsar o mal? Normalmente enquadrada na bagagem conceitual da extrema-direita, essa redução da luta política a categorias religiosas também foi teorizada pela chamada esquerda “radical”.

A filósofa Chantal Mouffe clama assim pelo repúdio da razão, fundamento da democracia liberal, em favor da “energia libidinal”. Ela propõe “mobilizar” essa energia “maleável” contra a oligarquia para “construir” o “povo”. Nesta perspectiva, as emoções e os afetos terão de se traduzir na rejeição, como sugere o deputado François Ruffin, “física e visceral” da elite.

Além disso, o antielitismo é apresentado como um discurso político que pode “salvar” a democracia. Para seus promotores, o elitismo contemporâneo frustra a imaginação igualitária e obscurece grandes projetos de emancipação em prol da globalização neoliberal.

A mobilização do declínio das “grandes narrativas”

Esse antielitismo tira sua força de um contexto de declínio das “grandes narrativas” (liberalismo, socialismo etc.) e é hoje recuperado pelos partidários de uma crítica à democracia representativa. Esse combustível ideológico de movimentos sociais sem liderança, como o dos “coletes amarelos”, possibilita mobilizar um eleitorado cada vez maior em torno de uma suposta clivagem entre “bloco de elite” e “bloco popular”.

O raciocínio desses críticos da “oligarquia” se baseia em uma “simplificação terrível”: o mito da existência de uma elite “Consciente, Coerente e Conspiratória” (modelo dos “3 Cs”) criticada por James Meisel por conta da distorção da teoria da classe dominante de Gaetano Mosca. De fato, esse atalho facilita a associação de qualquer tipo de mediação de elite com teorias da conspiração.

Na estratégia discursiva populista, a ideia de uma elite unificada maximizando seus interesses concorre fortemente com aquela – mais condizente com o pluralismo democrático – de uma multiplicidade de grupos de elite competindo pelo poder político, religioso, social e econômico.

Nos Estados Unidos, desde o governo de George Bush filho, estudos têm evocado o papel de uma “elite das sombras” que teria favorecido a segunda Guerra do Golfo. No entanto, a demonstração da interpenetração das redes neoconservadoras e a administração das relações exteriores é baseada em estudos cuja natureza científica é discutível. Pesquisas, empiricamente mais sólidas, demonstraram que no caso da reforma do sistema de saúde, os grupos de interesse (grandes farmacêuticas, seguradoras etc.) não desempenharam tal papel com o governo Obama. No entanto, apesar da falta de evidências, o mito de uma elite onipotente influenciando todas as decisões democráticas persiste. Num contexto de crise de confiança nos governos, reforça a crença no antielitismo.

A elite do antielitismo: outra oligarquia?

Ao impulsionar esse raciocínio sociológico, poderíamos estabelecer que certos líderes que mobilizam a retórica antielitista também formam uma elite. O diplomata britânico e ex-ministro conservador Georges Walden, trata do surgimento de uma “casta superior de elite antielitista” composta por indivíduos de origens sociais muito privilegiadas à imagem dos primeiros-ministros David Cameron e Boris Johnson. Ambos são produtos do currículo de elite Eton-Oxford.

Na França, a elite antielite caracteriza-se por seu perfil político profissional. Marine Le Pen e Jean-Luc Mélenchon são exemplos emblemáticos disso, como mostram suas carreiras e sua liderança partidária. A primeira é uma “herdeira política” que entrou na carreira aos 18 anos, antes de subir todos os escalões do Front National até se candidatar às eleições presidenciais a partir de 2012. O segundo é um “produto da meritocracia” à francesa, obtendo seu diploma em letras modernas e ao mesmo tempo aderindo ao Partido Socialista em 1976.

Durante a sua longa carreira política, acumulou as funções eletivas, entre outras, de deputado, senador, deputado europeu e a função executiva de Ministro Delegado para a Educação Profissional (2000-2002). Desde a criação de seu próprio partido (Le Parti de Gauche, em 2008, que se tornou La France Insoumise em 2016), ele também concorreu três vezes nas eleições presidenciais. Além disso, ambos impuseram uma liderança indiscutível em seu partido político, como evidenciado por sua contínua reeleição para a liderança. Este controle severo sobre a organização ilustra a Lei de Ferro da Oligarquia cara a Roberto Michels.

Os critérios da sociologia das elites, a saber, origem social, formação, trajetória profissional, tempo de carreira política, acumulação e tipo de mandatos, mostram, sem surpresa, a pequena distância que as separa-os daqueles que denunciam.


*William Genieys é diretor de pesquisa do CNRS na Sciences Po

Mohammad-Saïd Darviche é mestre de conferência da Universidade de Montpellier


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional


Este artigo é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons license. Leia o artigo original.

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

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