01 junho 2022

O espaço da China e do Brasil nas relações internacionais do século XXI

Os dois países não tiveram qualquer participação na criação da atual ordem capitalista, na qual foram integrados à força e tardiamente. Livro lança luz para o papel decisivo do Estado na desafiadora jornada de inserção global subordinada

Os dois países não tiveram qualquer participação na criação da atual ordem capitalista, na qual foram integrados à força e tardiamente. Livro lança luz para o papel decisivo do Estado na desafiadora jornada de inserção global subordinada

Encontro entre os presidentes Jair Bolsonaro e Xi Jinping durante visita do líder chinês ao Brasil (Alan Santos/PR)

Por Marcos Costa Lima e Renan Holanda Montenegro*

Reflexões sobre as “relações internacionais” podem partir de múltiplos ângulos analíticos. Há, contudo, dois elementos praticamente inescapáveis: o Estado; e a forma de inserção deste na cena global. Tal observação feita logo de partida tem sua razão de ser, já que o livro Brasil e China nas relações internacionais: temas e debates (Ed. UFPE, 2021) investiga dois países que não tiveram qualquer participação na criação da atual ordem capitalista, na qual foram integrados à força. E tardiamente, quando as potências europeias, os Estados Unidos e o Japão já possuíam avançados aparatos militares, econômicos e tecnológicos.

Nessas condições, o desafio de dotar o Estado de instituições e mecanismos capazes de prover uma trajetória minimamente autônoma de desenvolvimento e inserção internacional não constitui uma tarefa simples. Poucos conseguiram “subir a escada”. É sob esse contexto ampliado que devemos analisar o espaço ocupado pela China e pelo Brasil nas relações internacionais do século XXI. Sendo assim, direcionamos a ribalta, de início e brevemente, para as idiossincrasias da formação nacional de ambos os países.

Trajetórias históricas

De um lado, temos um autêntico Estado-Civilização, maiúsculo em diversos sentidos e amplamente reconhecido desde tempos remotos como um gigante adormecido. “Quando a China despertar, o mundo tremerá”, teria dito Napoleão[1]. A própria história da formação e consolidação do Império Chinês, cuja primeira unificação remonta a 221 a.C., demonstra com clareza o abismo existente entre este gigante asiático e a Europa, que passou por um longo interregno de instabilidade e descentralização após a queda de Roma, no ano de 476. Mesmo no início do século XIX, período da primeira Revolução Industrial, China e Índia correspondiam, juntas, a praticamente metade de toda a economia mundial. As estatísticas mostram que, àquela altura, a China era muito mais rica que o Reino Unido[2]. O incremento da importância chinesa – e da Ásia como um todo – nas relações internacionais atuais não passaria, então, de um retorno à normalidade.

O incremento da importância chinesa nas relações internacionais atuais não passaria de um retorno à normalidade

Com um Estado relativamente organizado, dotado de uma capacidade única de tributação e munido de um corpo de funcionários públicos treinados nos clássicos confucionistas, os chineses desenvolveram sua própria versão do excepcionalismo, observável na composição histórica de uma ordem regional sinocêntrica, representada pela noção de Tianxia (天下) – “Tudo Sob o Céu”, em tradução livre. Por séculos, a China esteve na dianteira até mesmo em relação ao progresso técnico, chegando a patrocinar grandes expedições marítimas décadas antes da expansão mercantilista tocada pelos europeus. Tais expedições, contudo, tinham muito mais o objetivo de ampliar o reconhecimento ao sistema Tianxia do que propriamente subjugar populações estrangeiras. Nesse diapasão, Giovanni Arrighi argumenta que os chineses não deram sequência às empreitadas navais porque “não havia nenhum tesouro a recuperar no Ocidente”, ao contrário dos europeus, que enxergavam nas navegações uma forma de conseguir equilibrar a balança comercial então favorável aos asiáticos[3].

Por sua vez, o Brasil foi, literalmente, uma criação executada de fora para dentro. Nas páginas iniciais do seu clássico Formação Econômica do Brasil,Celso Furtado assinala que “a ocupação econômica das terras americanas constitui um episódio da expansão comercial da Europa”[4].  O interesse-mor das potências europeias estava restrito quase que exclusivamente ao comércio, “e daí o relativo desprezo por estes territórios primitivos e vazios que formam a América; e inversamente, o prestígio do Oriente, onde não faltava objeto para atividades mercantis”, pontua Caio Prado Júnior[5]. Sob esse pano de fundo, a ampla variedade de grupos étnicos nativos que habitavam o território onde hoje se localiza o Brasil foi praticamente devastada, no que configura um dos primeiros genocídios de que se tem notícia. Ademais, o fluxo contínuo de povos africanos escravizados pelo Atlântico Sul não nos deixa ter dúvidas que o Brasil foi uma nação forjada sob o signo da violência.

A ampla variedade de grupos étnicos nativos que habitavam o território onde hoje se localiza o Brasil foi praticamente devastada. Ademais, o fluxo contínuo de povos africanos escravizados não nos deixa ter dúvidas que o Brasil foi uma nação forjada sob o signo da violência

Com a independência formalizada no primeiro quarto do século XIX, em mais um episódio que guarda relação direta com a dinâmica competitiva das grandes potências europeias, o Estado brasileiro se desgarrou das amarras metropolitanas com o desafio de administrar um mosaico social complexo e único. Foi também no desenrolar do século XIX que, após anos de isolamento, a China viu sua desvantagem militar se transformar em vulnerabilidade incontornável. Em 1842, depois de sofrer décadas de pressão das potências ocidentais e ser destroçada na 1ª Guerra do Ópio, o país assinou o primeiro de uma série de “tratados desiguais”. Até a revolução de 1949, os chineses viveram, nos termos deles próprios, “um século de humilhação”.

Os dois países, portanto, a despeito das contingências domésticas e regionais, da posição geopolítica e das diferentes trajetórias históricas, enfrentaram constrangimentos similares no que diz respeito à inserção tardia no capitalismo global. No entanto, os resultados alcançados foram marcadamente distintos.

Os dois países enfrentaram constrangimentos similares no que diz respeito à inserção tardia no capitalismo global

Lições, possibilidades e desafios

Um observador atento às dinâmicas globais no início dos anos 1970 dificilmente poderia prever algo sequer próximo ao atual estado das coisas. Era época do milagre brasileiro e dos últimos momentos da desastrosa Revolução Cultural na China. De lá para cá, o Brasil passou por sucessivas crises de inflação, de dívida, além de vários momentos recessivos. Somente entre o segundo trimestre de 2014 e o quarto de 2016, a contração acumulada foi de 8,2%[6]. Situação bem diferente da China, que viu seu Produto Interno Bruto (PIB) crescer ininterruptamente por décadas seguidas, muitas vezes a taxas de dois dígitos anuais.

Há uma extensa literatura que se debruça sobre as vicissitudes da trajetória econômica do Brasil, na qual é possível encontrar trabalhos seminais sobre as veredas do nosso projeto desenvolvimentista e os obstáculos que não nos permitem vencer a condição de periferia dependente. De forma análoga, é possível encontrar farto material que explica o incrível desenvolvimento econômico protagonizado recentemente pela China, uma história de sucesso sem precedentes se comparada com qualquer outra experiência nacional dentro do sistema interestatal capitalista.

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/brasil-e-china-no-seculo-xxi-a-construcao-de-uma-parceria-estrategica/

O livro Brasil e China nas relações internacionais não se dedica exatamente a essas questões, embora elas sejam objeto de reflexão em alguns dos seus capítulos. O que todos eles têm em comum é exatamente o intuito de lançar luz para o papel decisivo do Estado na desafiadora jornada de inserção subordinada na ordem global. Entre as temáticas abordadas, mencionamos: o debate do planejamento e o caráter de classe do Estado nas experiências de China e Brasil; a atuação internacional brasileira na primeira década e meia do presente século; o lugar das fontes renováveis na estratégia chinesa de segurança energética; o projeto da Nova Rota da Seda e o adensamento da projeção da China em direção ao Oceano Índico, particularmente na África.

Mirando o horizonte, há pelo menos um par de aspectos a não perder de vista no desenrolar deste século. O primeiro se refere ao lugar da Ásia enquanto novo eixo dinâmico do capitalismo, fenômeno que se inicia ainda na Guerra Fria, quando o Japão, os Tigres Asiáticos (Hong Kong, Taiwan, Cingapura e Coreia do Sul) e a própria China empreenderam, em tempos e ritmos distintos, uma trajetória notável de modernização das suas estruturas econômicas. O segundo aspecto diz respeito ao espaço ocupado pelas potências emergentes nesse processo de reordenamento sistêmico. Após serem alçadas à condição de protagonistas na entrada do século, particularmente após a Crise de 2008, o arrefecimento das taxas de crescimento e as crises políticas em muitos desses países parecem ter freado o furor inicial.

Vivemos o século asiático, mas não exatamente – pelo menos por ora – o século dos emergentes

Vivemos o século asiático, mas não exatamente – pelo menos por ora – o século dos emergentes. Todavia, há margem para reversão da tendência. Cabe ao Brasil adequar-se à conjuntura em tela, recobrando seu lugar de destaque. Do contrário, permaneceremos a debater nossa situação de dependência terceirizando os culpados. Falta-nos um projeto nacional.

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/tatiana-rosito-apesar-de-ter-objetivos-claros-brasil-nao-desenvolveu-estrategia-de-longo-prazo-para-relacoes-com-a-china/

Por fim, e em tempo, convém salientar que este livro não seria possível sem o trabalho coletivo e altivo desenvolvido por docentes e pesquisadores(as) da Coordenadoria de Estudos da Ásia (CEÁSIA), ligada ao Centro de Estudos Avançados da Universidade Federal de Pernambuco (CEA-UFPE). Desde 2015, ainda sob a alcunha de “Instituto”, o grupo vem se empenhando em analisar e interpretar os variados desafios que se apresentam ao Sul Global, sempre partindo de uma clave crítica, sensível às perspectivas e cosmovisões oriundas da periferia. Nesse fito, estabelecer pontes entre a Ásia e a América Latina, a China e o Brasil, constitui parte fundamental da empreitada. Sigamos, pois.

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* Marcos Costa Lima é professor associado no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador da Coordenadoria de Estudos da Ásia (CEÁSIA).

Renan Holanda Montenegro é pesquisador de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFPE e pesquisador associado da CEÁSIA.


Notas

[1] A frase dá título ao livro de Alain Peyrefitte (1975), presidente da Comissão de Assuntos Culturais e Sociais da Assembleia Nacional Francesa, que chefiou uma delegação de parlamentares e jornalistas em viagem à China. A missão permaneceu no país durante três semanas, em julho de 1971.

[2] Ver conhecido estudo de Angus Maddison (2007).

[3] Arrighi (1996, p. 35).

[4] Furtado (1986, p. 5).

[5] Prado Júnior (1995, p. 15).

[6] Ver publicação de Borça Jr., Barbosa e Furtado (2019) no Blog do Instituto Brasileira de Economia (IBRE), ligado à Fundação Getúlio Vargas.


REFERÊNCIAS

ARRIGHI, Giovanni. O Longo Século XX: Dinheiro, Poder e as Origens de Nosso Tempo. São Paulo: UNESP/Contraponto, 1996.

BORÇA JR., Gilberto; BARBOSA, Ricardo de Menezes; FURTADO, Mauricio. A Recuperação do PIB Brasileiro em Recessões: Uma Visão Comparativa. Blog do Ibre, 02 de maio de 2019. Disponível em: https://blogdoibre.fgv.br/posts/recuperacao-do-pib-brasileiro-em-recessoes-uma-visao-comparativa.

FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. 21ª edição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1986.

MADDISON, Angus. Contours of the World Economy, 1–2030 AD: Essays in Macro-Economic History. New York: Oxford University Press, 2007.

PEYREFITTE, Alain. Quando a China Despertar… O Mundo Tremerá. Lisboa: Parceria, 1975

PRADO JÚNIOR, Caio. História Econômica do Brasil.42ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1995.

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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