01 junho 2022

A Rússia está realmente perdendo a guerra de comunicação contra a Ucrânia?

Ocidente foi conquistado por um discurso favorável aos ucranianos, mas a Rússia tem conseguido manter influência em outras regiões do mundo e ainda tem apoio na África, no Oriente Médio e na América do Sul. Possível crise econômica na Europa ainda pode tornar continence um alvo mais fácil para a propaganda russa

Desde o início da guerra, o Ocidente foi conquistado por um discurso midiático favorável aos ucranianos, mas a Rússia tem conseguido manter influência em outras regiões do mundo e ainda tem apoio na África, no Oriente Médio e na América do Sul. Uma possível crise econômica na Europa ainda pode tornar continente um alvo mais fácil para a propaganda russa

O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky

Por Christine Dugoin-Clément*

Foi nas primeiras semanas após o lançamento da “operação militar especial” russa contra a Ucrânia que a opinião pública de todo o mundo descobriu Volodymyr Zelensky. Este jovem presidente (44 anos), experiente no trabalho midiático, comunica-se notavelmente através de vídeos filmados diretamente no modo selfie no coração da cidade de Kyiv, sob bombas.

A comunicação viva e moderna de Zelensky e suas equipes tem tido muito mais sucesso com a opinião pública ocidental do que a comunicação russa, considerada incômoda e amplamente enganosa. Tanto que muitas vezes parece certo que Kyiv já teria vencido a guerra de informação contra Moscou. Estaria isso certo?

Dois modos de comunicação em extremos opostos

No início do conflito, os presidentes russo e ucraniano recorreram a dois meios de comunicação radicalmente opostos.

Quebrando os códigos da presidência aparecendo com camisetas cáqui, andando nas ruas, filmando a si mesmo, afirmando sua proximidade com a população, cercado de membros de seu governo muitas vezes também vestidos com roupas militares e até usando piadas como a famosa “Não preciso de um táxi, preciso de armas” (em resposta à sugestão americana de evacuá-lo rapidamente de Kyiv), Volodymyr Zelensky optou por uma comunicação direta, pela simplicidade e sinceridade. Um modo de comunicação inovador em comparação aos normalmente usados ​​pelos políticos, especialmente em tempos de guerra, e que facilita a mobilização das opiniões ocidentais para fortalecer a posição dos governos que apoiam Kyiv.

O presidente russo, Vladimir Putin, durante evento em estádio de Moscou

Por outro lado, Vladimir Putin aderiu aos códigos usuais de sua comunicação, e sua distância dos destinatários de suas mensagens foi até acentuada. Evidenciado pelo formato da mesa de vários metros de comprimento escolhida para encenar seu encontro com Emmanuel Macron antes do início da invasão e, posteriormente, com o secretário-geral das Nações Unidas Antonio Guterres, que marcou pela distância física que impôs.

Posteriormente, após o início do conflito, a imagem inicial do presidente Putin foi mantida: hierático, congelado atrás de uma mesa emoldurada por bandeiras, vestido com um traje rigoroso, ele se apresenta como símbolo de um poder estritamente codificado.

Com o avanço da guerra, sua retórica continua a endurecer. Foi assim que o discurso de 18 de março preocupou particularmente os ocidentais, seja pela historiografia proposta, seja pela violência das declarações. Embora essa intervenção tenha sido organizada em um estádio e não em um escritório do Kremlin, o chefe de Estado mostrou-se sozinho no palco, com vista para a multidão para recolher os aplausos populares, de modo a aparecer como a encarnação de um poder forte e sem divisão.

Oposição de discursos

No que diz respeito ao discurso, pudemos observar uma inversão por Kyiv da historiografia apresentada por Moscou para justificar uma “operação militar” que deveria “desnazificar e desmilitarizar a Ucrânia”. Para tornar a invasão aceitável, o Kremlin convocou a “grande guerra patriótica”, ou seja, a Segunda Guerra Mundial, e brandiu uma visão da história criticada por especialistas. Os ucranianos invertem as referências históricas falsificadas pela Rússia, destacando o passado reconhecido pelos historiadores, e sublinhando os momentos marcantes para seus interlocutores para melhor mobilizá-los.

Assim, quando Zelensky é convidado a falar em vídeo diante do Congresso dos Estados Unidos, ele se refere a Pearl Harbor; em frente ao Bundestag, fala do Muro de Berlim; dirigindo-se à França, ele evoca o massacre de Oradour-sur-Glane.

O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, durante visita à cidade de Bucha, alvo de massacre

Pelo teor de seus discursos, ele aponta as distorções históricas de Moscou, lembra aos ocidentais seu passado para melhor mobilizá-los e, pela força de suas observações, busca fazer seus ouvintes entenderem que, se a Rússia usa a retórica da grande guerra patriótica para justificar uma invasão sem fundamento, os ucranianos estão vivendo a deles.

Ao mesmo tempo, enquanto Zelensky multiplica os discursos, a palavra de Putin permanece relativamente rara, Moscou preferindo apresentar ou fazer falar os membros do governo. Essa abordagem permite notavelmente que o presidente russo mantenha uma margem de ajuste: foi assim, por exemplo, que os objetivos iniciais da “operação militar especial” foram revistos para baixo.

Essa tática de comunicação também permite a manutenção de uma forma de imprecisão que pode, se necessário, permitir que o Kremlin se esconda atrás de uma forma de “negação plausível”: as declarações mais maximalistas são feitas por propagandistas do regime, membros do governo ou ministros, enquanto as de Putin poderiam, paradoxalmente, ser consideradas, por esse critério, como alimentados por uma certa moderação, ou pelo menos menos maximalistas, mostrando-o como o único interlocutor possível.

Os ucranianos convencem no Ocidente, os russos, em todos os outros lugares?

Se os ocidentais descobriram o conflito pelo prisma de uma esfera midiática e por meio de redes sociais que são principalmente favoráveis ​​à resistência da Ucrânia, as populações africanas, do Oriente Médio ou mesmo da América do Sul provavelmente não foram levadas a um ambiente comparável. De fato, nesses países geograficamente mais distantes da zona de conflito, o discurso russo e pró russo e as mensagens favoráveis ​​à ação do Kremlin na Ucrânia estão muito mais presentes do que na zona ocidental.

Assim, uma onda de conteúdos foi transmitida a partir dos primeiros dias de março. Como o pesquisador Carl Miller mostra em particular, essas mensagens elogiavam alternadamente a confiabilidade do aliado russo (em comparação com a suposta falta de consistência do apoio ocidental), a dualidade da atitude dos europeus em relação aos refugiados ucranianos, por um lado, afegãos ou sírios, por outro; solidariedade dos BRICS; antiglobalismo ou antiamericanismo.

Convidados a falar sobre a resolução exigindo que a Rússia ponha fim imediatamente à sua ofensiva contra a Ucrânia, várias dezenas de países do Oriente Médio, africanos e asiáticos se abstiveram

À luz do esforço de propaganda russo dirigido às regiões não-ocidentais, é admissível perguntar se a vitória ucraniana na esfera informacional no Ocidente não se deve em parte a um desinvestimento parcial desta última por uma Rússia que, para fins estratégico, teria preferido concentrar seus esforços em outras áreas.

De fato, desde os primeiros dias do conflito, o Ocidente reagiu com muita força e, provavelmente, muito mais rápida e vigorosamente do que a Rússia esperava. No entanto, esse apoio à Ucrânia era previsível. Nessas condições, não seria preferível concentrar o esforço em regiões do globo que provavelmente ofereceriam menos apoio à Ucrânia e nas quais a opinião pública poderia ser mais receptiva aos argumentos veiculados por uma informação de campanha orquestrada pelo Kremlin?

A relevância desta questão é confirmada pela análise dos votos de 2 de março de 2022 na ONU: convidados a falar sobre a resolução exigindo que a Rússia ponha fim imediatamente à sua ofensiva contra a Ucrânia, várias dezenas de países do Oriente Médio, africanos e asiáticos se abstiveram.

Um renascimento da campanha de informação russa voltada para o Ocidente?

Se, em vez de visar os países ocidentais, que podem parecer alvos difíceis de alcançar, a Rússia parece ter optado por concentrar a sua campanha de informação em áreas que estão a priori mais bem dispostas para isso, podemos concluir que Moscou desistiu de visar a Europa, Estados Unidos e Canadá? Nada é menos garantido.

A análise das recentes operações de informação realizadas no mundo pelos russos, seja nos Estados Unidos, na República Centro-Africana ou no Mali, mostra que um contexto social ou economicamente conturbado constitui terreno fértil para operações de influência. A guerra na Ucrânia tem graves consequências na inflação, nas políticas energéticas, no custo de vida, nas questões agroalimentares, que têm um impacto económico e social particularmente doloroso para as populações.

A análise das recentes operações de informação realizadas no mundo pelos russos mostra que um contexto social ou economicamente conturbado constitui terreno fértil para operações de influência

No entanto, se a Ucrânia pode até agora tentar lançar contra-ataques no terreno militar, ela continua totalmente dependente do apoio maciço do Ocidente em termos de fornecimento de armamentos e/ou ajuda económica. Além disso, nesta fase do conflito e nos próximos meses, redirecionar as operações de influência para as populações ocidentais pode ser lucrativo para a Rússia. Com efeito, o momento deverá ser muito difícil para os europeus que sofrerão os efeitos cumulativos da inflação e dos problemas económicos e ambientais, sem prejuízo dos efeitos de uma eventual crise agroalimentar. Esse contexto conturbado pode ser particularmente propício para a implantação de campanhas de informação russas destinadas a dividir as populações europeias e enfraquecer a capacidade dos governos ocidentais de continuar seu apoio à causa ucraniana no médio e longo prazos.

Afinal, se o conflito físico parece longe de terminar, o da esfera da informação sem dúvida não está mais perto do fim.


* Christine Dugoin-Clément é analista de geopolítica, membro do Laboratório de Pesquisa IAE Paris – Sorbonne Business School, Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne, titular de ‘normas e riscos’ do IAE Paris – Sorbonne Business School


Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original.


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

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