06 junho 2022

O enigma da Colômbia: As incertezas em torno da ascensão de Rodolfo Hernández nas eleições presidenciais do país

Empresário ‘outsider’ da política, Rodolfo Hernández chega ao segundo turno da disputa presidencial com chances de conquistar o poder, mas sem deixar claras suas propostas políticas e sem indicar como seriam as relações do país com a América do Sul. Em entrevista, a professora de relações internacionais Fernanda Nanci Gonçalves avalia o contexto político da Colômbia e explica que, apesar da campanha parecida, Hernández não é igual a Trump ou Bolsonaro

Empresário ‘outsider’ da política, Rodolfo Hernández chega ao segundo turno da disputa presidencial com chances de conquistar o poder, mas sem deixar claras suas propostas políticas e sem indicar como seriam as relações do país com a América do Sul. Em entrevista, a professora de relações internacionais Fernanda Nanci Gonçalves avalia o contexto político da Colômbia e explica que, apesar da campanha parecida, Hernández não é igual a Trump ou Bolsonaro

O candidato a presidente da Colômbia Rodolfo Hernández (Foto: Instagram)

Por Daniel Buarque

Um candidato que se vende como “outsider” da política tradicional, contra a corrupção e tudo o que está posto, subiu rapidamente na preferência do eleitorado colombiano, passou ao segundo turno e tem chances reais de ser eleito presidente do país em 19 de junho. Esta narrativa da ascensão do empresário Rodolfo Hernández lembra o que já foi visto na eleição de Donald Trump, nos EUA, de Jair Bolsonaro, no Brasil, e de uma notável onda de extrema-direita pelo mundo. Mas o caso colombiano é diferente, conforme explica a professora de relações internacionais Fernanda Nanci Gonçalves.

“Por mais que a estratégia dele seja muito semelhante à usada por Trump e Bolsonaro, de se vender como ‘outsider’, contra o que está posto, quando se tenta traçar essa ligação ideológica entre eles, ela não fica clara. Hernández não pode ser colocado em um contexto global de movimento de crescimento da extrema-direita”, explicou ela em entrevista à Interesse Nacional.

Este alinhamento ideológico do candidato, na verdade, se apresenta como um mistério às vésperas da decisão na Colômbia. Isso porque apesar de seu opositor, Gustavo Petro, estar associado claramente a um movimento de esquerda (que tem forte rejeição no país), Hernández não deixa claro o seu projeto de governo, não indica como pretende governar o país além da rejeição ao establishment. “Não há um entendimento conceitual de qual é o espectro ideológico dele, porque ele realmente não tem essa clareza”, disse a professora. 

Trata-se de um enigma importante para o Brasil, pois o candidato não apresentou seus planos de política externa para a região, mesmo que a parceria entre os dois países seja reconhecidamente importante para a América do Sul. Enquanto uma vitória de Gustavo Petro ampliaria a aliança de movimentos de esquerda na região (que poderia ganhar ainda mais força caso Luiz Inácio Lula da Silva seja eleito no Brasil), é impossível saber de forma clara o que uma possível eleição de Hernández representaria para a América do Sul.

Fernanda Nanci Gonçalves é doutora em ciência política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP/UERJ) e coordenadora e professora do curso de relações internacionais no Centro Universitário La Salle-RJ. Ela viveu na Colômbia durante sua pesquisa de doutorado. É autora dos livros Análise de Política Externa: o que estudar e por quê? (Ed. InterSaberes) e A articulação entre política externa e defesa no Brasil e na Colômbia: trajetória institucional e autonomia decisória (Ed. Appris). 

Leia a entrevista completa abaixo.

Rodolfo Hernández recebe o apoio de Ingrid Betancourt em campanha pela Presidência da Colômbia (Foto: Instagram)

Daniel Buarque – O que essa eleição presidencial na Colômbia significa para o Brasil? 

Fernanda Nanci Gonçalves –  Do ponto de vista da região, tanto o Hernández quanto o Petro deixaram claro que as relações com a Venezuela são importantes, então essa exclusão tamanha que se vê da Venezuela na região pode ser algo que seja modificado tanto com a chegada do Hernández quanto do Petro. Falar de Colômbia é falar de Estados Unidos e Venezuela. São os dois principais polos da política externa colombiana. E ao longo do tempo foi havendo uma exclusão da Venezuela do sistema regional. Mas alguma resolução da crise na Venezuela é muito importante para os colombianos

Em relação ao Brasil, o país já se deu conta, independentemente de ser Bolsonaro ou Lula o próximo presidente, que a Colômbia é um país importantíssimo na América do Sul. É uma das economias mais importantes, e a gente tem muito potencial para explorar as relações bilaterais, tanto economicamente quanto do ponto de vista da cooperação na região de fronteira, de combate às drogas, ao tráfico, mas também, por exemplo, no quesito de meio ambiente na região amazônica. 

Com o Gustavo Petro na Presidência, acredito que a gente vá ter mobilizações tanto do Brasil quanto da Colômbia no sentido de buscar uma cooperação na região amazônica. Meio ambiente é muito forte no discurso do Gustavo Petro. Considerando as relações com o Brasil, se Petro e Lula vencerem as eleições, é possível pensar em uma aliança mais progressista na região. Até porque não seria só Brasil e Colômbia em um espectro mais à esquerda, mas também o Alberto Fernández, na Argentina, o Gabriel Boric, no Chile. Poderia ser uma nova onda rosa, com limitações, já que o contexto é diferente do dos anos 2000. 

‘Hernández não deixa muito claras as suas propostas de política externa, mas é claro que reconhece, é impossível não reconhecer, a relevância de ter boas relações com o Brasil’

Ao mesmo tempo, Hernández não deixa muito claras as suas propostas de política externa, mas é claro que reconhece, é impossível não reconhecer, a relevância de ter boas relações com o Brasil. Se o Hernandez vencer, não deve haver essa agenda progressista na região. Mas a questão é esperar ele divulgar quais são as propostas dele em termos de política externa para saber para onde vai caminhar. Não acredito que vá ter um embate direto, ou isolacionismo na região Então é essa figura controversa que a gente vai ter que esperar  para ver como vai ser.

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/nova-onda-rosa-na-america-latina-depende-do-brasil/

Daniel Buarque – Observadores estão comparando Hernández a Donald Trump e a Bolsonaro. Ele diz que não é nem de direita nem de esquerda. Não é possível colocar ele dentro de um espectro ideológico?

Fernanda Nanci Gonçalves –  Ele chegou ao segundo turno muito pelo discurso de ser um outsider, ser contra o establishment, contra tudo o que sempre existiu na Colômbia –que é essa rivalidade entre esquerda e direita. A gente já tinha visto a ascensão de Donald Trump, que vem pelos republicanos, mas que vem com o mesmo discurso, contra o que está colocado, por uma nova política. Esse discurso deu força de fato a ele. Ele de fato conseguiu captar muitos votos dos colombianos que estão cansados desse debate tradicional. 

Por mais que a estratégia dele seja muito semelhante à usada por Trump e Bolsonaro, de se vender como outsider contra o que está posto, quando se tenta traçar essa ligação ideológica entre eles, ela não fica clara. Hernández não pode ser colocado em um contexto global de movimento de crescimento da extrema-direita. Ele vem de uma cidade super-pequena, com um discurso muito populista e popular. Ele usa muito redes sociais e fake news, mas ele não tem essa essa aproximação com a extrema-direita, ideologicamente. 

‘Hernández não é Trump e também não é Bolsonaro. Ele é ele, é diferente, traz novidade, fala diretamente com a população’

Além disso, a pessoa que está por trás da campanha dele, é o Ángel Beccassino, que foi o estrategista político da reeleição de Juan Manuel Santos, em 2014, e foi também o marqueteiro político da campanha do Petro, em 2018. Então não se trata de um estrategista político da extrema-direita. Ele não está contando com pessoas por trás da sua campanha dele que tenham essa ideologia da extrema-direita, mas está cercado de pessoas que sabem muito bem como mobilizar a opinião pública. O próprio Ángel diz que Hernández não é Trump e também não é Bolsonaro. Ele é ele, é diferente, traz novidade, fala diretamente com a população. 

Daniel Buarque – Então não é possível saber como seria um governo dele?

Fernanda Nanci Gonçalves – Ele vai ter dificuldade para governar, se for eleito. Até porque ele tem um perfil um pouco autoritário. Quando foi prefeito, ele teve vários problemas. Primeiro, o problema é que ele se vende com esse discurso anticorrupção, mas ele está sendo investigado por corrupção. Além disso, ele agrediu um vereador que estava criticando a família dele. Politicamente é assim que ele se vende, como um cara diferente, que fala na cara, que resolve os problemas. 

Então a gente não sabe muito como ele vai governar. Até porque nas eleições legislativas deste ano, quem chegou com o maior número de cadeiras foi a esquerda, que apoia Gustavo Petro, então certamente ele vai enfrentar muitas mobilizações dentro do Congresso, dentro do Senado. E mesmo os conservadores e liberais, que se juntam a ele agora para tirar o Petro, não vai necessariamente se mobilizar para viabilizar algumas propostas dele.

Ele pode vencer porque agora há muita mobilização contra a esquerda, principalmente porque a Colômbia nunca teve uma experiência de esquerda no poder.

‘A gente não sabe muito como ele vai governar. Até porque nas eleições legislativas deste ano, quem chegou com o maior número de cadeiras foi a esquerda, que apoia Gustavo Petro, então certamente ele vai enfrentar muitas mobilizações dentro do Congresso, dentro do Senado’

Daniel Buarque – Existe alguma explicação para isso? Porque essa rejeição tão grande da esquerda na Colômbia, considerando que a América Latina tem movimentos fortes de esquerda? 

Fernanda Nanci Gonçalves –  Na Colômbia, os movimentos de esquerda nunca foram fortes, principalmente porque movimentos de esquerda eram automaticamente associados às guerrilhas. Então existe esse conservadorismo extremo na Colômbia por conta da guerra civil dentro do país, das guerrilhas, e qualquer movimento que fosse contestatório ao status quo, ao capitalismo, livre comércio etc. era considerado marxista, era considerado comunista, era considerado um movimento para ser perseguido. E isso pesa contra o Petro hoje, porque ele foi do M-19. É verdade que ele superou esse passado dele de guerrilha e se tornou muito atuante politicamente. 

Daniel Buarque – Depois da surpreendente ascensão de Hernández, qual a sua leitura do primeiro turno e que perspectiva tem para a decisão de 19 de junho?

Fernanda Nanci Gonçalves – As pesquisas de intenção de voto já estão demonstrando a migração daqueles votos que seriam para o candidato até então preferido para o segundo turno, Fico Gutiérrez, que é apoiado pelo partido conservador e pelos uribistas, o centro democrático, para Hernández. Isso porque, de fato, quem vota na direita não volta de jeito nenhum no Gustavo Petro, que representa a esquerda. Aqui no Brasil a gente fala sobre a existência de um antipetismo, e na Colômbia há um ‘antipetrismo’, que é contra o que representa o Gustavo Petro, que é, na verdade, a representação da esquerda na Colômbia. 

‘Aqui no Brasil a gente fala sobre a existência de um antipetismo, e na Colômbia há um ‘antipetrismo’, que é contra o que representa o Gustavo Petro, que é, na verdade, a representação da esquerda na Colômbia’

O Hernández disparou nas pesquisas de opinião nos últimos 10 dias de campanha. Era realmente algo bem inesperado. O próprio Hernández não acreditava que ele ia chegar ao segundo turno. Ele se disse surpreso de ter conseguido tantos votos assim . Até era possível imaginar que ele ia chegar, principalmente porque estamos vendo essa realidade em outros lugares, como no Brasil, onde Bolsonaro se vendeu com um discurso muito semelhante ao do Hernández, que é o discurso do outsider. Dizendo ‘eu vou fazer diferente’, ‘a minha bandeira é a luta contra a corrupção’. O Herández fala que não é nem de esquerda nem de direita, fala em mudar a política, diz que não vai receber salário, que o que importa são as pessoas. 

E ele teve uma estratégia de nos últimos dias da campanha não ir para os debates presidenciais. Ele chamou os debates de briga de rua e disse que não tinha capacidade de, em 2 minutos, falar sobre as propostas dele, que são muito complexas. Agora está tendo um movimento do pacto histórico, que é a coalizão que apoia o Gustavo Petro, de demandar no Conselho Nacional Eleitoral que o Hernández não fuja dos debates para o segundo turno. Há uma lei na Colômbia que diz que é necessário que os candidatos na campanha à Presidência participem de debates.

Daniel Buarque – Qual a relevância dessa ascensão de Hernández dentro do contexto político colombiano?

Fernanda Nanci Gonçalves – Esse surgimento de um candidato com o discurso antipolítico é importante dentro de um contexto diferente na Colômbia, porque nas eleições presidenciais até 2018, o debate principal era a questão da paz e da guerra, era como lidar com o problema que está colocado no país há mais de 50 anos que é a guerra civil. Havia um debate muito claro, principalmente em 2018, que era se os acordos de paz que tinham sido firmados com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, as Farc, em 2016, iriam para a frente ou seriam revisados. A pauta principal na Colômbia sempre girou em torno dessa dimensão da segurança pública, de garantir a estabilidade doméstica. E durante muito tempo isso foi muito favorável aos discursos de direita, aos discursos conservadores. Então, na Colômbia, a polarização é se o eleitor é a favor ou contra o acordo de paz. 

E agora, de 2018 para 2022, há muitas mudanças na Colômbia. A Colômbia hoje é um país muito mais complexo do ponto de vista da sua agenda política, porque o acordo de paz de fato trouxe espaço na agenda política colombiana para outras discussões, que hoje são muito mais relevantes. 

A Colômbia é tradicionalmente vista na América do Sul como um país estável economicamente, ela passa bem pelas crises, enquanto a região ainda está passando por vários solavancos e problemas. Só que agora a Colômbia começou a sentir os problemas econômicos muito fortemente, principalmente por conta da pandemia, e aí o índice de desemprego, que nunca foi tão elevado, está em 15%. A população está preocupada com dinheiro, com as propostas do governo para economicamente viabilizar uma qualidade de vida para as pessoas. 

E aí questões que tradicionalmente não eram tão discutidas nas eleições tomaram as ruas. Em 2021 vê-se manifestações públicas na Colômbia em prol de reformas educacionais, de um acesso a uma educação gratuita e de qualidade, uma discussão muito grande sobre a reforma tributária. Foram manifestações que geraram uma greve nacional. Foram mais de 40 dias de mobilização, pessoas nas ruas mesmo durante a pandemia.

‘É parte da estratégia dele não ter uma agenda clara. Ao mesmo tempo em que ele fala que é a favor do empresariado, do empreendedorismo, do livre comércio, ele também diz que tem que criar emprego público.’

Essas faltas sociais, essas faltas de reforma educacional que não apareciam tradicionalmente começaram a aparecer e mobilizaram as pessoas na Colômbia para se abrirem, para entender essa agenda mais progressista especialmente do Gustavo Petro. E ele conseguiu também chamar a atenção dos eleitores com propostas diferentes das propostas tradicionais do centro democrático. A proposta dele é modificar o modelo econômico colombiano, criar empregos públicos e aumentar a máquina pública. E aí a discussão toda com a direita é como fazer isso em meio à crise. E isso leva os eleitores da centro-direita a não votar nele e a buscar alternativas. Por isso que, no segundo turno, a chance do Hernandez de fato virar o jogo e sair como ganhador é real, não deve ser descartada

Daniel Buarque – O Hernández também consegue mobilizar os eleitores em torno dessas questões sociais?

Fernanda – É muito difícil, porque ele não tem uma agenda clara. É parte da estratégia dele não ter uma agenda clara. Ao mesmo tempo em que ele fala que é a favor do empresariado, do empreendedorismo, do livre comércio, ele também diz que tem que criar emprego público. A agenda clara dele é apenas dizer que é anticorrupção, sem dar mais detalhes. É uma questão tão abrangente que permite fazer várias mobilizações, caminhar para onde quiser. Não há um entendimento conceitual de qual é o espectro ideológico dele, porque ele realmente não tem essa clareza. 

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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