30 junho 2022

Por que se abusa da palavra liberdade na política?

Idealizada com a evolução dos movimentos políticos modernos, desde o final do século XVIII, e transformada em mito desde então, a liberdade é uma ação pessoal e política suficientemente importante para ser levada a sério, mas segue sem uma definição unânime, o que faz com que cada cultura e geração possam redefinir genuinamente seu conceito

Idealizada com a evolução dos movimentos políticos modernos, desde o final do século XVIII, e transformada em mito desde então, a liberdade é uma ação pessoal e política suficientemente importante para ser levada a sério, mas segue sem uma definição unânime, o que faz com que cada cultura e geração possam redefinir genuinamente seu conceito

Por José-Francisco Jiménez-Díaz*

A questão da definição de liberdade tem sido foco das reflexões do pensamento político moderno. As respostas a ela têm sido muito variadas e contraditórias e a reflexão sobre a liberdade ainda está aberta. O pensamento político contemporâneo debateu intensamente essa ideia complexa.

O dicionário da Real Academia Espanhola fornece uma dúzia de definições de liberdade e, ao mesmo tempo, mostra mais de 20 exemplos. Estes incluem: “liberdade de movimento”, “liberdade de culto”, “liberdade de expressão”, “liberdade de informação”, entre outros.

Um significado de liberdade vinculado ao pensamento contemporâneo é este: “Nos sistemas democráticos, um direito de valor superior que assegura a livre autodeterminação das pessoas”.

De acordo com ele, as democracias enfatizam em suas constituições o “valor superior” da liberdade. Na atual Constituição espanhola, este valor é mencionado primeiro, entre outros valores (“liberdade, justiça, igualdade e pluralismo político”), no artigo 1.1. Assim, fica clara a preeminência do “valor da liberdade” no ordenamento jurídico espanhol. Outra questão é se o referido valor é atendido e cumprido por agentes e instituições políticas.

Um conceito que pode ser mitificado

Uma definição unânime de liberdade é praticamente impossível. Cada cultura e cada geração podem redefinir genuinamente a liberdade. A relação com o passado e as experiências socioculturais condicionam a forma de expressar e vivenciar as ideias políticas. Além disso, todo ideal humano, como a liberdade, pode ser mitificado.

Especificamente, a liberdade foi idealizada com a evolução dos movimentos políticos modernos, desde o final do século XVIII. Nesse sentido, a experiência da Revolução Francesa foi um momento crucial para repensar a liberdade.

Por exemplo, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão afirmava: “Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos”. Isso aludia a dois valores superiores aprovados pela Assembleia Nacional Constituinte (1789).

Mas na França de 1789 e nos últimos tempos, as realidades sociais e políticas não concordavam exatamente com essa afirmação. Assim, a referida Declaração excluía as mulheres, pois falava apenas de “homens” e as primeiras só conquistaram certos direitos no século XX em alguns países. De fato, as relações entre ideias e ações políticas são tempestuosas e cumprir os ideais é uma tarefa complexa e árdua.

Olympe de Gouges retratada por Alexander Kucharsky (Wikimedia Commons / Bonarov,, CC BY-SA)

Olympe de Gouges (1748-1793) redigiu a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã (1791) e ousou proclamar direitos e liberdades iguais para mulheres e homens. No entanto, as mulheres em muitos Estados do mundo ainda não têm plenos direitos civis e políticos. O sufrágio feminino chegou tarde, mesmo em países como Suíça (1971) ou França (1945). As desigualdades socioeconômicas continuam a limitar a liberdade, assim como outros ideais políticos (justiça, igualdade…).

Uma viagem histórica: entre idealizações e complexidades

O desejo de conciliar o desejo de liberdade humana com a necessidade de autoridade tem sido recorrente nas várias tradições do pensamento político. Essa empreitada ocupou a obra de John Stuart Mill (1806-1873), que se propôs a revelar os limites do poder que a sociedade poderia legitimamente exercer sobre o “indivíduo”.

Até que ponto a sociedade pode limitar a ação individual? Essa foi a questão central do famoso ensaio Sobre a Liberdade (1859).

Em 1819, Benjamin Constant publicou um texto lúcido sobre a evolução histórica da liberdade (A Liberdade dos Antigos Comparada à dos Modernos). Neste último, dizia:

“O desejo dos antigos era dividir o poder social entre todos os cidadãos de um mesmo país: eles chamavam isso de liberdade. O anseio dos modernos é a segurança nos gozos privados, e eles chamam de liberdade as salvaguardas outorgadas pelas instituições para tal gozo.”

Os antigos, representados na Grécia clássica, tinham uma concepção socializada de liberdade, em que os bens públicos prevaleciam sobre os interesses da pessoa. Ela só poderia alcançar uma vida boa (eudaimonia) se participasse da vida da polis. O cidadão era obrigado a participar de instituições sociopolíticas. Nesse contexto, o termo “indivíduo” não tinha sentido.

No entanto, a liberdade praticada na modernidade distanciou-se do ideal antigo por meio de três processos. Primeiro, uma cultura política centrada no “indivíduo” e no cultivo da privacidade prevaleceu na sociedade capitalista-industrial. Em segundo lugar, e em decorrência do exposto, houve a retirada da cidadania na esfera privada e, portanto, o governo representativo passou a ser visto como possível e legítimo. Terceiro, essa nova ideia de governo foi adaptada às condições socioeconômicas da vida moderna desde o final do século XIX.

Por outro lado, surgiram novos conceitos de política, como a disputa por valores e a luta pelo poder, que redefiniram as ideias de ação individual e liberdade.

Como a liberdade é possível em nosso mundo?

Desde que se pensou a ideia de governo representativo, o mundo sócio-político mudou profunda e rapidamente. De fato, as sociedades atuais são caracterizadas por mudanças globais que dificilmente poderiam ter sido concebidas há dois séculos. Complexidade, exclusão, fragmentação, reflexividade e risco são algumas das características das estruturas sociais recentes.

A privacidade do “indivíduo”, proclamada nos tempos modernos, tornou-se uma quimera diante da vigilância constante facilitada pelas tecnologias da informação nas últimas décadas.

O próprio indivíduo torna-se um mito, pois a interdependência social é mais intensa do que nunca. A cidadania das poliarquias depende de múltiplos laços familiares, comunitários e nacionais, bem como de vínculos globais (multinacionais, organizações internacionais etc.) que vão além do controle individual.

Retrato de Alexis de Tocqueville por Théodore Chassériau (Wikimedia Commons)

Alexis de Tocqueville (1805-1859), profundo pensador da liberdade, dizia que os cidadãos contemporâneos estão ligados a duas paixões inimigas: “a necessidade de ser conduzido e o desejo de permanecer livre”.

A liberdade é uma sensação e um sentimento pessoal e uma ação comum que deve ser gerada diariamente. A liberdade liga-se aos costumes (mores), requer uma ação concertada e a responsabilidade pela própria ação. Assim, quem busca em liberdade algo diferente dela mesma é feito para servir.

Consequentemente, a liberdade é uma ação pessoal e política suficientemente importante para ser levada a sério. O significado da política é promover e proteger as condições sociais e institucionais que tornam possíveis as liberdades civis. Colocar esse senso de política em prática é complicado e pode encontrar muitos obstáculos. Aprofundá-lo exige uma reflexão detalhada e contextualizada do mundo atual.


*José-Francisco Jiménez-Díaz é professor de ciência política e da administração na Universidad Pablo de Olavide


Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original, em espanhol.


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

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