30 junho 2022

Vai ter golpe?

Em entrevistas, livescalls, conversas ou reuniões, invariavelmente não escapo à pergunta. E, invariavelmente, minha resposta é sempre a mesma: não, não vai ter golpe. E os argumentos a que recorro também não mudam, porque trata-se de uma não questão.

Os que temem, de boa-fé, ou os que se beneficiam politicamente desse temor, têm na analogia com 64 seu ponto de partida. É um recurso precário para a dimensão do que se pretende sustentar. Em 64, a grande mídia, o empresariado maciçamente, a classe média, igrejas (católica à frente), partidos e o ‘grande irmão do norte’, os EUA, eram favoráveis à intervenção militar.

O país vivia um caos, a inflação corroía salários e rendas, as greves se sucediam numa espiral contínua, e a insubordinação ameaçava a hierarquia nos quarteis. Havia clima propício aos que propalavam por uma intervenção que acabou interrompendo um governo democraticamente eleito.

Nada disso se passa agora, já que nem a mídia, o empresariado, as classes médias, igrejas ou partidos propõem, defendem ou promovem uma intervenção militar ou golpe. E as instituições não estão mais frágeis como à época – antes, estão sólidas.

Os Estados Unidos, sob Biden, e isso foi deixado claro pelo diretor da CIA, William Burns, em nome dos Estados Unidos ao governo brasileiro, discorda de qualquer caminho que leve à ruptura institucional no país, o que teria sido reiterado a Bolsonaro pelo próprio Biden, na recente Cúpula das Américas.

Na sequência da minha argumentação, desfaço outra tese recorrente de que as demissões do ministro da Defesa e dos comandantes militares são indícios de algo em marcha.

Acrescento: estamos no terceiro comandante do Exército em três anos e meio de mandato presidencial. Ao contrário, essas demissões indicam uma resistência de cúpulas militares a qualquer pressão por desvios em sua missão. Resultam da recusa a aventuras antidemocráticas.

Ainda assim, muitos interlocutores emendam mais duas questões. A primeira, sobre as falas dos generais em cargos de governo, em apoio ao presidente. A segunda, remete à retórica sobre a segurança das eleições, que tem oposto o Ministério da Defesa, o Exército e o a justiça eleitoral.

Esclareço que é um grande equívoco interpretar as falas e o apoio ao governo por parte de militares em cargos políticos, como a voz das Forças Armadas.

Quem fala pelas Forças Armadas são os militares na ativa e no exercício das suas funções, nomeadamente e, por hierarquia, os comandantes da Marinha, Exército e da Aeronáutica. E, estes, noves fora uma ou outra fala menos protocolar e mais descuidada, têm se mantidos distante da política.  

Presença de militares no governo

Entre todas as argumentações, uma é sólida, mas efetivamente não tem qualquer relação com a construção de um golpe:  a presença numerosa de militares na estrutura de governo – a maior de todas na história política recente.

Aqui, o ponto é o vácuo legislativo deixado pelo Congresso nacional que se omite do dever intransferível de fixar o papel das Forças Armadas e da defesa nacional. E da regulamentação desses e de outros pontos que definirão limites e espaços de ação e atuação.

Cabe ao poder político essa definição, mas este sistematicamente dele se aliena, como se comprova ao constatar que a Política Nacional e a Estratégia Nacional de Defesa, que passaram a ser objeto de análise pelo Congresso Nacional pela Lei Complementar 136 de agosto de 2010, da qual fui relator na Câmara, não têm merecido qualquer atenção dos líderes, deputados e senadores.

A Política e a Estratégia em vigor é a de 2012, já que as atualizações quadrienais de 2016 e de 2020 permanecem em um limbo parlamentar anos a fio. Ora, a defesa nacional, raisonetre do universo militar e dos militares, em nome da qual empenharão, se necessário, a própria vida, e que compreende a preservação do território, povo, cultura, recursos naturais e a soberania da Nação, é objeto de um desinteresse manifesto. (1)

Que juízo fazem disso os nossos militares? Sem procuração para tal e sem que os represente, afirmo que é o da irresponsabilidade política do Congresso com a defesa da Nação. Isso reforça o sentimento histórico de que cabe aos militares a proteção e a tutela do Brasil, frente a possíveis ameaças. (2)

Quanto a presença dos militares em governos, em diversas pastas, é algo a ser regulamentado e se insere nesse contexto de omissão congressual. Afinal, pela nossa Constituição, cabe ao Congresso as mais extremas decisões que pode tomar a Nação sobre si mesma – entre as quais, a de fazer a guerra e declarar a paz, que podem comprometer a nossa existência, a integridade do nosso território e do nosso povo.

O Congresso, porém, permanece inerte, até porque nada lhe é cobrado, embora as críticas sobre os militares, a sua presença no governo, sejam diárias, como se a decisão de estar em qualquer governo a eles coubessem, o que não é verdade.

Por fim, chega-se ao estresse do momento, objeto das atenções, o ‘embate’ entre o Tribunal Superior Eleitoral, de um lado, e o Exército e o Ministério da Defesa de outro.

Nesse caso, é necessário destacar dois aspectos. Um, o de que inexiste base constitucional para que os militares supervisionem as atividades do TSE ou do Supremo. Outra, que foram os militares convidados a participarem, ineditamente, do escrutínio da segurança das urnas, quando, anteriormente, suas funções se restringiam a assegurar a realização do pleito e o transporte das urnas, quando e onde solicitados pela justiça eleitoral.

TSE e participação das Forças Armadas

Ao TSE talvez tenha escapado que, ao convidar um representante das Forças Armadas para compor a Comissão de Transparência Eleitoral, dela também participaria toda a instituição, incluso o seu Comandante em Chefe, o Presidente da República, ainda que indiretamente, fazendo escalar as tensões e criando um foco de pressão do Planalto sobre os militares.

Nesse quesito é necessário trazer uma questão de fundo, a crítica contundente e aguda ao Supremo Tribunal Federal por parte dos militares da reserva e da ativa, sejam eles da Marinha, Exército ou da Aeronáutica. Hoje, para larga parcela da cúpula das Forças, o Supremo é um fator de instabilidade e de insegurança para o país – e tal juízo se baseia, dentre outros, em três pontos principais.

O primeiro é a insegurança jurídica, decorrente das constantes mudanças de entendimento sobre questões como o vai e vem em torno do trânsito em julgado, se ele seria válido já na segunda ou na terceira instância. Segue-se a invasão de competências do Executivo, em especial em matérias privativas da presidência da República, a exemplo da suspensão da anistia e da nomeação do Ministro do Trabalho, no governo Temer e, no atual governo, a nomeação do Diretor Geral da Polícia Federal, além do inquérito das Fake News, que teria atropelado atribuição constitucional do Ministério Público Federal.

Por fim, a percepção de que a responsabilidade pelo ocaso da operação Lava Jato, em especial a decisão do Ministro Edson Fachin, de declarar Curitiba fórum incompetente, quatro anos após, abrindo caminho para a revisão de diversas ações, processos e decisões judiciais, a exemplo da condenação do ex-presidente Lula.

Esse conflito, envolvendo duas instituições de Estado, é grave e, de parte a parte, inexistem iniciativas perceptíveis na busca do diálogo e de sua superação, o que preocupa. Hoje, além da alienação do Congresso relativamente ao tema da defesa e das Forças Armadas, temos um contencioso que se aprofunda entre a cúpula destas e o STF. Tudo maximizado pelo clima de polarização e denúncias envolvendo e se iniciando na Presidência da República.

Despolitização das polícias

Esse tema, espero, venha a constar entre as prioridades da agenda de um futuro governo, além de outro, de extrema importância, que é a despolitização das polícias, em especial as polícias militares, que colecionam exemplos dessa distorção. Três deles: 1) a sucessão de greves, expressamente proibidas pela Constituição de 88, geralmente puxadas por líderes que já são ou buscam ser agentes políticos detentores de mandato parlamentar e que terminam com a anistia dos grevistas; 2) a proposta de lei geral das polícias, em tramitação, e apoiada pelas corporações, que retira poderes dos governadores e institui lista tríplice para a escolha dos comandantes, a ser votada pelo integrantes das PMs; 3) o processo de promoção do oficialato, objeto de barganha e pressões políticas intensas.

Uma regra simples e efetiva seria tornar norma que policiais, militares e agentes de Estado – em geral –, ingressando na política não retornem a suas corporações e que fosse fixado um período prudente de quarentena. Caso isso não seja politicamente viável, outras travas legais devem ser pensadas e instituídas. Agentes de Estado não podem, nem devem, utilizar-se das estruturas das suas respectivas instituições para fazer política eleitoral.

Retomando o fio dos militares e Forças Armadas, a dissociação destas vis a vis o poder político necessita ser superada. Ao Congresso cabe liderar, mediante diálogo com as Forças e a sociedade, um projeto de defesa que atenda aos interesses nacionais e nos dê capacidades dissuasórias frente a ameaças reais e/ou potenciais. Nesse mesmo projeto, devem coexistir meios para que os militares tenham condições de trabalho condizentes com a sua missão, além de assegurarmos uma robusta base de defesa, focada na indústria, inovação e tecnologia.

Ao longo dos últimos 35 anos em apenas dois momentos isso foi observado.
O primeiro, no governo Fernando Henrique Cardoso, com a criação do Ministério da Defesa. O segundo, no governo Lula, com as supracitadas Política e a Estratégia Nacional de Defesa, submetidas ao Congresso Nacional, o que jamais ocorrera, e que deveria ensejar um diálogo histórico entre o poder político e as Forças Armadas.

Assim esperávamos. Esperança amplamente frustrada. Jamais o parlamento chamou os militares para dialogar sobre a defesa nacional, fez audiências, ouviu especialistas, a academia ou a sociedade. Produziram-se relatórios ou pareceres pífios, genéricos, meras cópias de trechos da própria obra Política e a Estratégia Nacional de Defesa.

O ‘dialogo histórico’ jamais ocorreu. Há que se dar razão ao professor Mangabeira Unger, que certa vez afirmou que as elites e o poder político “só querem apaziguar os militares, concedendo-lhes, aqui e ali, uma fragata, alguns tanques ou aviões”, quando é da defesa do país que se trata.

Essa omissão tem diversas causas, pela ordem: (i) o sentimento de que o país não sofre ameaças, historicamente. Nossa última guerra, a do Paraguai, dista mais de 150 anos; (ii) defesa nacional não dá votos, não cativa o eleitorado; e (iii) inexistem cargos em comissão a nomear, ergo, ‘territórios políticos’ a capturar e seus correspondentes benefícios político-eleitorais.

Reverter tal quadro só será possível se nossas elites e o poder político em especial, tiverem um projeto consistente e moderno de defesa do país, articulado com uma política de relações exteriores que projete nossos interesses nacionais. Nesse sentido, e em relação a um futuro governo, minhas expectativas são mínimas. Nem o atual governo, nem a oposição e muito menos os ‘presidenciáveis’, esboçaram, até aqui, qualquer programa ou mesmo propósito sobre a defesa nacional e o papel das Forças. Esse nanismo programático, aliás, é escancarado nos sites e programas de todos os quase 30 partidos (!!!) que hoje temos.

Em suma, e espero estar enganado, pouco ou quase nada vai mudar na relação poder político versus Forças Armadas.

Repito que não vejo possibilidade de uma ‘intervenção militar’, como antecipam tantos ‘analistas’ da mídia. Inexistem condições externas para tanto, idem motivações, processos ou planos internos das Forças. Vença quem vencer a disputa presidencial, os militares terão o futuro presidente como o seu Comandante em Chefe, como manda a Constituição.

Notas:

1. Esse padrão foi quebrado apenas ano passado por duas audiências públicas da Comissão de Relações Exteriores da Defesa Nacional (Creden) por ocasião do recebimento da Política Nacional e a Estratégia Nacional de Defesa relativa ao quadriênio 2020/2024.

2.Trata-se do registro de uma percepção sobre o ponto-de-vista dos militares, que não entra em seu mérito.

Raul Jungmann é político, consultor e ex-deputado federal, foi ministro da Reforma Agrária no governo de Fernando Henrique Cardoso e ministro da Defesa e da Segurança Pública no governo Michel Temer

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