21 julho 2020

A Bioeconomia e a Amazônia

  O debate atual sobre as queimadas, o desmatamento e o garimpo ilegais ganhou repercussão internacional e transformou-se na mais grave crise externa brasileira desde os anos 1970 e 1980, causada também por críticas às políticas de meio ambiente e de direitos humanos. No Brasil, vivíamos em um governo militar e um de seus princípios […]

 
O debate atual sobre as queimadas, o desmatamento e o garimpo ilegais ganhou repercussão internacional e transformou-se na mais grave crise externa brasileira desde os anos 1970 e 1980, causada também por críticas às políticas de meio ambiente e de direitos humanos. No Brasil, vivíamos em um governo militar e um de seus princípios era “Amazônia, integrar para não entregar”. A visão defensiva prevalecia em 1972, por ocasião da histórica Conferência Internacional sobre Meio Ambiente, organizada pela ONU, em Estocolmo. A retórica do atual governo repete os argumentos dos militares de então. Na época, a sanção foi política, com a deterioração da imagem do Brasil no exterior.
Gradualmente, começou a mudar a atitude do governo em relação ao meio ambiente. Paulo Nogueira Neto foi o responsável pela política ambiental, pela legislação interna e pela criação de estruturas administrativas, como a Sema e o Ibama, que desaguaram no atual Ministério do Meio Ambiente. O Brasil participou da referida Conferência de Estocolmo de chefes de Estado. A atuação do Brasil é lembrada por sua oposição a uma agenda meramente ambientalista e pela proposta de associar meio ambiente a desenvolvimento, antecipando a evolução da agenda ambiental e assegurando a defesa da soberania do país. Pode-se dizer que o Brasil, nas negociações ambientais, passou de posição defensiva para a de um país com atuação ativa e construtiva e, até recentemente, à de indiscutível liderança.
A partir da Rio-92, meio ambiente passou a ser considerado uma questão social global. Novas forças se associaram às políticas públicas: o consumidor, as ONGs e, mais recentemente, a onda verde na Europa. Atuam punindo os infratores com boicotes, mudanças de hábitos de consumo e pressionando por regras internacionais verificáveis. A mudança climática obedece à lei da física e não a princípios ideológicos. Nos fóruns internacionais esse tema deverá permanecer vivo e em pauta pela crescente preocupação com a saúde do planeta. Até os cardeais, em Sínodo no Vaticano, discutiram a Amazônia. Na Organização Mundial do Comércio (OMC), discute-se um acordo sobre meio ambiente, juntamente com cláusulas ambientais incluídas nos acordos comerciais, mandatórias. O tema foi levado à consideração, em agosto de 2019, do G-7, que congrega países desenvolvidos. Ficou decidido, sem ameaças à soberania, que recursos técnicos e financeiros serão oferecidos aos países amazônicos, inclusive o Brasil.
O tema do meio ambiente entrou definitivamente na agenda global. A necessidade de se estruturar uma governança ambiental em nível internacional tem transformado a questão do meio ambiente em uma das mais relevantes da agenda multilateral. Desde a Conferência de Estocolmo, em 1972, em particular a partir da Rio 92, houve uma proliferação de acordos de gestão de recursos naturais entre países: hoje o meio ambiente já é a segunda área com maior número de acordos internacionais no mundo (atrás apenas de comércio internacional).
Cinco exemplos recentes confirmam essa percepção: (a) a importância da sustentabilidade na agenda do Fórum Econômico de Davos, em janeiro de 2020; (b) a decisão de um dos maiores fundos do mundo, o BlackRock de desinvestir em projetos e empresas de combustível fóssil e dar prioridade a investimentos compatíveis com a agenda de desenvolvimento sustentável, (c) o TCI Fund Management, o mais rentável do mundo, pressiona as empresas de seu portfólio a reduzirem as emissões de gases de efeito estufa, (d) a questão ambiental entrou na agenda de financiamentos entre governos e instituições financeiras e (e) a decisão do parlamento da Valônia, região da Bélgica, e de outros países, como a Alemanha e a França, a Áustria, a Irlanda  e a Holanda de se manifestar contra o Acordo Mercosul-União Europeia por considerar que terá um impacto negativo no respeito às metas climáticas do Acordo de Paris, ao meio ambiente, à saúde e ao desenvolvimento de um modelo agroalimentar sustentável.
Depois do fim da pandemia, a preocupação com o meio ambiente e com a mudança do clima deverá manter-se e até mesmo ampliar-se, ao lado das questões de saúde e segurança alimentar.
Por que é importante a discussão sobre a proteção da floresta amazônica, no contexto de uma nova agenda interna e externa?
Crescente influência da política ambiental sobre as negociações comerciais
As percepções críticas ao Brasil no exterior na questão ambiental têm como foco a Amazônia. Em 2019, as queimadas e o desmatamento foram alvo de manifestações no mundo inteiro, sobretudo de jovens, para sensibilizar os governos a tomar medidas para evitar as grandes alterações no clima com o aumento da temperatura no planeta. Informações distorcidas e meias verdades se misturaram a fatos reais, ampliando as consequências negativas para os nossos interesses comerciais e políticos. As diferenças quanto à gestão do Fundo Amazônia colocaram em risco a cooperação internacional com a Alemanha e a Noruega.
Diante dessa percepção externa, hoje são crescentes as ameaças de prejuízo para o setor do agronegócio pela possibilidade de boicote de consumidores e pela crescente influência da política ambiental sobre as negociações comerciais. A atuação na defesa dos legítimos interesses do setor está levando as associações das diferentes áreas e a Frente Parlamentar da Agropecuária a defender mais atenção pelo governo brasileiro aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil nos acordos assinados desde 1992.
Não está em questão a soberania e a capacidade do governo de determinar as políticas para a região.
Diferentemente do ocorrido nas décadas de 1970 e 1980, hoje as consequências negativas para o Brasil, além de políticas, são comerciais.
Os interesses em jogo são significativos. Nos próximos dez anos, projeta-se uma crescente demanda de produtos brasileiros. A política comercial tornou-se um instrumento da política climática. A proteção do meio ambiente tornou-se uma questão de competitividade internacional. A ausência de diretrizes objetivas sobre o tema é vista como afetando o cumprimento dos compromissos assumidos pelo Brasil, o que compromete seu papel protagônico global e também passa a impressão de   retrocessos nos esforços de redução de emissões de gases de efeito estufa, nas necessárias ações de fiscalização e no não cumprimento da Política Nacional de Mudança do Clima. O mundo está observando nossas ações que terão o poder de salvar ou destruir a maior floresta tropical do planeta, como ressaltam influentes instituições e periódicos de repercussão internacional.
A confrontação alimenta campanhas contra o país, estimuladas por motivações políticas e comerciais. O recém-concluído acordo de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia incluiu capítulo sobre desenvolvimento sustentável com novos compromissos que o Brasil deverá cumprir e que serão verificáveis por nossos parceiros europeus. O descumprimento dos dispositivos do acordo poderá acarretar boicotes e  restrição de importação de produtos agrícolas nacionais e, agora, até mesmo retaliações na área financeira.  Autoridades europeias vêm repetindo que o desmatamento da Amazônia faz cada vez mais difícil a ratificação desse acordo. A União Europeia apresentou um plano de reconstrução dos países-membros para depois da pandemia de mais de 700 bilhões de euros que inclui ambiciosa política industrial com forte ênfase em medidas ambientais. A iniciativa “European Green Deal” prevê medidas para proteção de florestas tropicais, como o incentivo ao consumo de commodities de cadeias de abastecimento livres de desmatamento. Está em discussão no Parlamento Europeu projeto de lei que visa responsabilizar civil e penalmente empresas importadoras de commodities de áreas desmatadas. Em junho, 29 instituições financeiras, entre fundos de pensão, bancos e gestoras de oito países (Noruega, Dinamarca, Suécia, Reino Unido, França, EUA, Japão e Brasil) que, juntas somam quase US$ 3,75 trilhões sob sua gestão, enviaram carta ao governo brasileiro em que mencionam o avanço do desmatamento nos últimos anos e o relato de desmantelamento de políticas ambientais e de direitos humanos. Esses fatos, alertam, criam incerteza generalizada sobre as condições de se investir ou fornecer serviços ao país. O pedido de adesão do Brasil à OCDE pode ser dificultado pelo acompanhamento feito pela instituição das boas práticas regulatórias no tocante à sustentabilidade, ao crescimento verde e ao meio ambiente.
O que fazer, nesse novo quadro internacional, para transformar a percepção negativa do Brasil no exterior e evitar consequências contrárias aos interesses concretos do setor do agronegócio? Este é o mais visado e o mais prejudicado, pela crescente importância que as exportações de produtos primários adquiriram no comércio exterior brasileiro (nos primeiros cinco meses de 2020, mais de 60% das exportações brasileiras foram de commodities).
O Brasil deve abandonar a posição defensiva que passou a adotar (“campanha é consequência de desinformação sobre o que ocorre no Brasil, radicalismo ambiental estimula lobby sobre a Amazônia e serve de pretexto para o protecionismo europeu”) e modificar a retórica e as medidas que resultam no esvaziamento dos órgãos de controle e fiscalização da Amazônia. Se não por convicção arraigada, que seja por pragmatismo e realismo político para a defesa de interesses comerciais concretos e para restabelecer a percepção externa sobre o Brasil. Não há como confrontar a tendência global de definir políticas de preservação do meio ambiente e de mudança do clima. Esse tema passará a interferir cada vez mais na estratégia de negócios. Urge a definição de uma estratégia que retire o Brasil do isolamento e, em especial, proteja o setor do agronegócio, que sofrerá as consequências, caso o Brasil descumpra os compromissos internacionais assumidos, inclusive no acordo recente com a União Europeia. Os interesses da agroindústria estão associados à política de preservação ambiental. A exemplo da França e da Alemanha, os planos governamentais de estímulo à economia, na saída da crise pandêmica, deveriam incluir investimentos para a preservação ambiental e para a redução das emissões de gás carbônico.
Restabelecer a credibilidade externa do Brasil
Para esclarecer objetivamente o que está ocorrendo será importante retomar o diálogo com a comunidade internacional com o objetivo inicial de restabelecer a credibilidade externa. A narrativa deve estar alicerçada em fatos e resultados concretos das novas medidas adotadas e no reconhecimento dos erros cometidos. Com isso, o Brasil poderá voltar a participar ativamente das discussões nos fóruns internacionais sobre a agenda de meio ambiente e mudança do clima. São essas as alternativas para o Brasil conseguir mudar a percepção externa negativa, não campanhas publicitárias no exterior.
Algumas iniciativas concretas de parte do governo e do setor privado estão em curso.
O governo, sob pressão dos acontecimentos, declarou tolerância zero com as queimadas e prometeu medidas drásticas para conter os desmatamentos e o garimpo ilegais, com a atuação do Ibama, do ICMBio, da Polícia Federal e das Forças Armadas, e vai promover iniciativas para tentar mudar a imagem negativa no exterior, como tristemente exemplificada pelas manifestações contra embaixadas brasileiras em muitas capitais. Vão na direção correta medidas de médio e longo prazos que, se produzirem resultados efetivos na sua implementação, poderão ajudar a recuperação da credibilidade:

  • A recriação do Conselho da Amazônia sob a presidência do vice-presidente da República, Hamilton Mourão, para coordenar ações para a proteção da floresta e o desenvolvimento da região;

 

  • A decisão de enviar as Forças Armadas para apoiar o Ibama e o ICMbio no combate a ações de desmatamento, queimadas e o garimpo ilegais na floresta amazônica no período crítico de seca e evitar o ocorrido no ano passado;

 

  • A abertura de negociação por parte do vice-presidente Mourão com a Alemanha e a Noruega para restabelecer o Fundo Amazônia com a apresentação de um plano para contenção de ilegalidades e a reconstituição da governança com a recriação do Comitê Orientador do Fundo Amazônia, que define as prioridades de investimentos e fiscaliza a aplicação de recursos externos;

 

  • Execução do Plano de Combate ao Desmatamento Ilegal, que entrará em vigência em julho e vigorará até meados de 2023;

 

  • Estudos na área econômica e do Banco Central para transformar o Brasil em um centro de negociação de carbono.

Do lado da sociedade civil, em atitude pouco usual, os presidentes dos maiores bancos nacionais alertaram para a fragilidade ambiental do país, assinalando que as consequências do perigo ambiental podem até vir de maneira mais lenta do que o perigo da saúde, como a Covid-19, mas são mais duradouras e difíceis de reverter.
As empresas agropecuárias terão de superar divisões no setor, aceitar a responsabilidade (accountability) e se posicionar quanto à continuidade da Moratória da Soja, a certificação da produção, a rastreabilidade e a participação de programas de baixo carbono para evitar boicotes e restrições à exportação de seus produtos.
É importante o exame objetivo dos compromissos internacionais assumidos voluntariamente pelo Brasil e o grau de seu cumprimento pelo governo brasileiro. A divulgação dos resultados desse trabalho poderia ser utilizada pelo governo e pelo setor privado no que estou chamando de Diplomacia Ambiental. Essa ação esclarecerá o engajamento e as medidas concretas necessárias para, na defesa do interesse nacional, voltar a fazer o que foi feito depois da crise dos anos 1970/1980: uma política de transparência para esvaziar a campanha contra as políticas do atual governo. A falta de informação interna dos compromissos internacionais assumidos pelos diferentes governos brasileiros nas últimas décadas e a crescentemente negativa percepção externa sobre as políticas ambientais do atual governo criam uma incerteza adicional para o setor produtivo, em especial do agronegócio, apesar dos esforços privados na conservação do meio ambiente, como a Moratória da Soja, compromisso de 2006 até os dias de hoje, em que a indústria se compromete voluntariamente a não comprar soja de áreas desflorestada do bioma Amazônia, em vigor desde 2008.
Irice e Escolhas encaminharam proposta ao governo
Por outro lado, ampliam-se o exame e a discussão de propostas concretas para o crescimento e o desenvolvimento econômico da Amazônia. Nesse sentido, com a preocupação com os 25 milhões de brasileiros que vivem na Amazônia, o Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice) e o Instituto Escolhas elaboraram proposta encaminhada ao governo com um plano para destravar uma agenda de bioeconomia na Amazônia, visando à utilização dos recursos naturais e humanos da região para estimular a economia e o emprego.
A proposta sobre o aproveitamento da bioeconomia na Amazônia inclui quatro vertentes: financiamento e infraestrutura; engenharia financeira; ações voltadas para o desenvolvimento da oferta e da produção locais; e ações voltadas para o desenvolvimento da demanda.
Essas ações são as principais e mais urgentes medidas de política pública a serem adotadas, com capacidade para destravar a bioeconomia em curto prazo, oferecendo possibilidades para que a região amazônica, que está sendo tão castigada pela Covid-19, saia dessa crise de forma rápida, segura e sustentável, gerando emprego, renda, inclusão social e proteção e preservação do meio ambiente.
Destravar essa agenda, oferecendo condições para o adensamento de cadeias industriais e de valor, desde a extração da matéria-prima, beneficiamento primário, processos de PD&I e industrialização, até o consumidor final, exige uma estratégia público-privada com coordenação central, alinhando ações de diversas agências governamentais e atores privados, financeiros, de comunidades locais, da área acadêmica e da sociedade civil.
Com vasto território e biodiversidade abundante, a Amazônia disponibiliza uma infinidade de matérias-primas que, a partir da bioinovação, podem ser convertidas em milhares de moléculas e compostos de alto valor agregado. Por isso, as iniciativas de promoção da bioeconomia precisam contemplar as ações voltadas aos produtos da floresta, tais como açaí, castanhas, cacau, óleos vegetais (de babaçu, andiroba, buriti etc.), bem como o incentivo a atividades de incremento da piscicultura dos peixes amazônicos (incluindo os seus produtos, como carne, óleos, couro, resíduos), entre outras.
Trabalho publicado pela OCDE indica que até 2030 a contribuição global da biotecnologia sobe a mais de US$ 1 trilhão distribuídos entre os setores de saúde, produção primária e industrial. Países como Holanda, Finlândia e Índia desenvolvem projetos na área de bioeconomia.
Política externa para o meio ambiente e a mudança do clima
Em conclusão, a defesa do interesse nacional aconselha uma narrativa transparente e a mudança de postura. Mais do que uma campanha de relações públicas no exterior, com enorme gasto e poucos resultados, o que não se pode mais adiar é a definição de uma política externa para o meio ambiente e a mudança do clima, que passaria a ser o eixo condutor da política externa brasileira, como foi a questão comercial até agora. Sair da atitude defensiva, com políticas e medidas para a defesa da floresta amazônica, acima de ideologias e partidos, é o que se espera do governo federal. A apresentação de resultados concretos terá como efeito recuperar o papel central do Brasil nas questões de meio ambiente e mudança de clima e restaurar a credibilidade externa, a fim de modificar a percepção negativa sobre o país.
O Brasil é, certamente, o país que mais tem a ganhar com o reforço dos padrões mundiais de exigência quanto à sustentabilidade. Nossa liderança nessa área nos colocaria à frente dos principais concorrentes não só para o comércio, mas também para a captação de investimentos.
 

Presidente e fundador do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE). É presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da FIESP, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Trigo (Abitrigo), presidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional (Cedesen) e fundador da Revista Interesse Nacional. Foi embaixador do Brasil em Londres (1994–99) e em Washington (1999–04). É autor de Dissenso de Washington (Agir), Panorama Visto de Londres (Aduaneiras), América Latina em Perspectiva (Aduaneiras) e O Brasil voltou? (Pioneira), entre outros.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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