30 junho 2020

A Crise e o papel do Estado

Não há como enfrentar a crise provocada pela pandemia sem a ação do Estado. O isolamento, imposto por lei ou por medo do contágio, provoca uma parada na economia. Diferentemente da crise financeira de 2008, essa é uma crise da economia real.

Não há como enfrentar a crise provocada pela pandemia sem a ação do Estado. O isolamento, imposto por lei ou por medo do contágio, provoca uma parada brusca na economia. Diferentemente da crise financeira de 2008, essa é uma crise da economia real, uma queda simultânea da demanda e da oferta. Para evitar que se transforme também numa crise financeira, é necessário que o governo, através do Banco Central, injete liquidez no sistema financeiro. Foi o que fizeram em 2008 os bancos centrais dos países avançados, mas dessa vez será necessário injetar também recursos diretamente na economia, pois com medo da inadimplência generalizada, o sistema financeiro não repassará os recursos. É preciso que o Estado, através do Banco Central, faça chegar os recursos diretamente às empresas e a todos os afetados pela brusca parada da economia.
Um país que emite sua moeda, hoje exclusivamente fiduciária, não tem restrição financeira. A exigência de que o Estado equilibre as suas contas é uma restrição político-administrativa, com o objetivo de impor disciplina e racionalidade aos gastos públicos e frear a tentação demagógica por gastos descontrolados. Quando há capacidade ociosa e desemprego, quando o país não tem dívida externa e o balanço de pagamentos é superavitário, o governo pode e deve investir de forma inteligente, sem se preocupar com a fonte de recursos.
Até o momento, para ficar apenas na política econômica, a reação do governo está muito aquém do necessário. O dogmatismo fiscalista, a crença equivocada de que é sempre preciso equilibrar o orçamento fiscal sob risco de quebrar o Estado, torna ainda mais difícil a aprovação e a implementação das políticas necessárias. É preciso reagir rápido e pôr em prática as políticas de auxílio emergencial. É preciso tentar preservar o emprego e garantir imediatamente uma renda mínima para que toda família possa sobreviver na crise. Não se trata de políticas anticíclicas, de estímulos para a economia, algo que será necessário, uma vez superada a epidemia, mas de políticas voltadas para aliviar o impacto da recessão e do desemprego. É preciso deixar de lado pruridos burocráticos, confiar e ousar, para evitar uma verdadeira tragédia humanitária.
Os estados e os municípios, como não têm moeda própria, estão obrigados a limitar seus gastos ao que arrecadam. Numa crise dessa gravidade, a arrecadação irá cair de forma dramática. Sem ajuda substantiva da União, os governos estaduais e municipais serão incapazes de honrar seus compromissos e de prestar os serviços básicos. Independentemente da conveniência ou não de tornar o sistema mais ou menos descentralizado, no momento, é preciso aprovar um orçamento de emergência, com recursos a serem transferidos da União para os estados e os municípios. Além da injeção de liquidez, da expansão do crédito, o Estado, em todas as suas instâncias, será obrigado a gastar para enfrentar a crise humanitária provocada pela epidemia. Será preciso reforçar o sistema de saúde pública e pôr em prática políticas sociais compensatórias.
Epidemias provocam mudanças de regime
Diante de uma crise dessas proporções, o sistema de mercado é incapaz de dar as respostas adequadas. Ao contrário, corre o risco de se tornar disfuncional. O mercado é baseado na competição e no individualismo, mas o momento, mais do que nunca, exige coordenação e cooperação. O liberalismo primário que hoje pauta a política econômica no país será imperiosamente revertido. Será uma oportunidade para revalorizar o Estado e a política, para transformar o nosso Estado cartorial e patrimonialista num Estado eficiente e a favor da população. É uma oportunidade para que a vida pública volte a atrair pessoas bem-intencionadas e qualificadas. Infelizmente, haverá sempre risco de que a crise venha a reforçar o apelo do autoritarismo, com o sacrifício das verdadeiras conquistas do liberalismo ilustrado. O Estado, chamado a intervir, pode vir a se tornar ainda mais burocrático, autoritário e policialesco.
Ao longo da história, as grandes epidemias sempre provocaram as mudanças de regime. Uma crise dessas proporções nos leva a refletir, nos obriga a reavaliar os valores e o modo de vida contemporâneo. O questionamento do capitalismo financeiro turbinado das últimas décadas, que concentrou riqueza, inibiu a competição e destruiu empregos, se tornará ainda mais exacerbado. A tributação pode e deve ser usada para proteger os necessitados e reduzir as desigualdades, mas enquanto a economia estiver com capacidade ociosa e desemprego – e é provável que seja por um longo tempo – não se deve aumentar a carga tributária, mas sim desenhar políticas públicas inteligentes, voltadas para o aumento da produtividade e do bem-estar.
Uma reversão, ainda que parcial, da hiperglobalização será inevitável. A vulnerabilidade do sistema de produção globalizado ficou evidente, não apenas do ponto de vista dos estados nacionais, mas também das empresas, que mesmo em tempos menos atribulados, tinham visto a gestão das cadeias de fornecedores se transformar em um ponto crítico. A produção globalizada não deverá ser completamente revertida, mas haverá um reequilíbrio, com maior peso para a produção local. A desindustrialização nacional, levada ao paroxismo, será certamente reavaliada.
É improvável que se volte ao mundo de antes da crise, mas é muito difícil fazer previsões sobre como será o mundo do pós-crise. Se a história serve de referência, é possível que haja efetivamente progresso em direção a uma sociedade melhor e mais justa, mas não antes de um período de grande turbulência política e social.


É economista, ex-presidente do BNDES e ex-diretor do Banco Central, autor de livros, ensaios e artigos sobre questões econômicas e financeiras.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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