01 janeiro 2011

A Elaboração Legislativa e a Interpretação Judicial da Lei da Ficha Limpa

Os professores da fgv analisam o processo de elaboração da Lei da Ficha Limpa e o seu processo de interpretação pelo Supremo. No Congresso, o projeto chegou pela iniciativa popular, o que já o diferenciou da maioria dos projetos de lei em andamento. Com mobilização social, transparência e publicidade do processo de elaboração a lei foi aprovada. A aprovação da lei não foi suficiente para a sua implementação no país todo. Ao aplicá-la houve divergências. O Supremo, assim como o Congresso, outrora, se tornou o ator principal.

O grande debate público que ocorreu sobre a Lei da Ficha Limpa colocou luz sobre dois processos decisórios fundamentais: o de elaboração e o de interpretação das leis. Ambos fundamentais para o regime democrático. Este debate evidenciou uma evolução nem sempre perceptível da institucionalização de nossa democracia. Que evolução foi esta? Trata-se de um aperfeiçoamento institucional graças à inovação normativa. Para bem captá-lo precisamos antes estar de acordo sobre o que seja instituição e institucionalização. Propomos partir do conceito de Douglass North, Prêmio Nobel de Economia. Instituição resulta de uma combinação de regras formais, e comportamentos sociais, e da específica exigibilidade de ambos (enforcement). A importância, diz North , é que instituições moldam o desempenho econômico de uma nação. Por analogia, neste caso, poderíamos dizer que instituição seria uma combinação de normas jurídicas formais produzidas pelo devido processo legal, com comportamentos políticos produzidos com liberdade e igualdade. Ao serem ambos exigíveis e implementados, molda-se o regime democrático. O processo de elaboração da lei, ou a iniciativa popular

Nosso foco é menos a virtude e mais o processo de elaboração da lei, resultante de combinação pouco comum entre mobilização social objetivada e rápida decisão congressual. Nem sempre a mobilização da sociedade civil se organiza em torno de objetivos legislativos concretizáveis. Neste caso, foi necessária para fugir do labirinto do processo legislativo regular. O tempo médio para aprovação de uma lei no Congresso Nacional é de 1 238,32 dias . Esta foi de apenas 222 dias . O motor desta incomum rapidez foi a maximização do caráter includente e participativo do princípio constitucional da transparência, publicidade e ampla liberdade de informação jurídica e política. A tecnologia midiática tende a tornar cada dia mais possível acoplar uma democracia representativa a uma democracia participativa. Tal como estabelece nossa Constituição: democracias concomitantes. Somatórias e não excludentes.


A iniciativa da lei começou fora do Congresso. Mobilizou dezenas de associações de múltiplas naturezas, inclusive religiosas. A ponto de fundarem o MCCE (Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral) . Conquistou, paralelamente, repercussão e engajamento político da mídia . Ocupou a internet. A Constituição permite a iniciativa popular das leis. Esta obteve mais de 1,3 milhão de assinaturas quase de imediato. Cumpria a Constituição. Mas para ir mais rapidamente, a lei não foi apresentada assim . O deputado Antônio Carlos Biscaia endossou a iniciativa popular e perfilhou o projeto. O atual labirinto decisório do Congresso foi vencido sem os tradicionais embates ou negociações intrapartidários, sem a tradicional e muitas vezes implícita ação de lobbies ou movimentação de ruas. A lógica desta mobilização foi de outra natureza. O labirinto foi vencido desta feita, mas necessita ser desfeito. Segundo José Paulo Cavalcanti, para uma lei ser aprovada tem de passar, em geral, por pelo menos seis Comissões obrigatórias do Congresso, e dezenas de relatores especializados. Para a decisão congressual, regras de tramitação são muitas vezes mais decisivas do que o próprio conteúdo do projeto de lei.


O resultado líquido foi uma pressão política jurídica associativa, midiática e tecnológica inédita, mas legal e legitimamente previsível. Longe das ruas e acima dos partidos políticos, mas não contra eles: Ficha Limpa Já. O objetivo estratégico comum foi aprovar a lei a tempo de vigorar nas eleições de 2010. Não mais a tradicional mobilização difusa, mas uma quase mobilização gerencial, com meta e cronograma. E, sobretudo pública, aberta, comunicada, livre, que deságua no político, no congressista, nos partidos, nos rituais normativos legislativos, mas que não se paralisa por eles. Além da difusa mobilização popular, havia um crescente sentimento de justiça, diriam Cláudio e Solange Souto, a mover o próprio Judiciário. Em 2004, o juiz Marlon Reis ganhara o Prêmio Innovare pela prática de integração da Justiça Eleitoral com a Sociedade Civil, por apoiar a descoberta de casos de compra de votos, uma prática que deveria ser expandida por todo o Judiciário . Na presidência do TRE do Rio de Janeiro, o desembargador Marcos Faver, ex-membro do Conselho Nacional de Justiça, hoje presidente do Colégio dos Presidentes dos Tribunais de Justiça, já procurava impedir a candidatura de pessoas com pendências graves na Justiça . Mais ainda. Desde as eleições de 2008, a Associação dos Magistrados Brasileiros, que congrega cerca de 13 500 juízes, iniciara campanha por eleições limpas, diretamente através de jurisprudências dos Tribunais Eleitorais.


O pressuposto conceitual de todos era a desnecessidade de novas leis. Bastariam os princípios constitucionais já existentes . Ou seja, leis podem ser mudadas via interpretação judicial. Não somente pelo Congresso, mas pelo Poder Judiciário também. Mudando não o significante, mas o significado. Não a forma legal, mas o conteúdo jurídico. Tudo legítima e democraticamente, como, aliás, é do feitio do direito anglo-saxão. Este processo de convergência das regras formais de elaboração legislativa e da mobilização social legislativamente objetivada só foi possível por causa da transparência que cercou os políticos. Muitos acreditam que o Congresso só aprovou a lei porque a votação foi em plenário, aberta, nominal e transmitida ao vivo pela televisão. Foi na ágora, a assembleia do povo, agora tecnológica e televisada. Distantes, mas presentes, os cidadãos. Vendo sem serem vistos. Julgando, não sendo magistrados. Estudos mostram que cerca de 30% dos 541 congressistas da atual legislatura respondem a algum tipo de processo no Supremo. A lei foi aprovada por 388 votos a favor, um voto contra, e 123 parlamentares faltaram à sessão. Unanimidade televisada.


A consciência de um congressista ao votar uma lei é tão livre quanto a de um magistrado ao proferir sentença. A diferença é que aquele depende mais da opinião pública. Magistrados gozam de vitaliciedade, os congressistas não. Em geral, a primeira ambição de um congressista é ser reeleito. Cerca de 80% dos deputados federais buscavam a reeleição . Os congressistas fizeram análise de custo–benefício de seu voto num cenário de reeleição. Votando contra a lei, os danos eleitorais imediatos à candidatura seriam maiores do que o risco de eventual incidência da lei sobre si mesmo. Estava em jogo a conectividade da representatividade política entre eleitor e congressista. Cerca de 85% dos eleitores eram favoráveis à Lei da Ficha Limpa . O processo de interpretação das leis ou o “metaempate” no Supremo
A lei entrou em vigor no dia 4 de junho deste ano. O prazo para os partidos políticos inscreverem os candidatos era 5 de julho. E a primeira fase das eleições ocorreu em 3 de outubro. Por mais eficiente que pudesse ser, o Supremo não teve muito tempo para tomar a decisão. Na primeira sessão plenária ocorrida no Supremo sobre a constitucionalidade da lei, surgiu um problema: houve empate entre os dez membros do Supremo sobre a questão principal. Seria constitucional aplicar a lei já para as eleições deste ano ou valeria somente para as futuras eleições em 2012? Outras questões também dividiam os ministros: seria constitucional o dispositivo que aplicava a lei a situações pretéritas? Não seria inconstitucional fazer retroagir a incidência da lei, um dos pilares da segurança jurídica? Sem resposta a essas perguntas, as eleições não chegariam a bom termo. A paralisia decisória do empate entre ministros levantou uma questão institucional para a opinião pública: Quais as consequências para a democracia de um tribunal que se autoparalisa? Estava em jogo o timing decisório do Supremo. Decidir a tempo, eis um fator indispensável para o regime democrático mostrar sua eficiência operacional. Hoje, o tempo é tão fundamental quanto o conteúdo da decisão judicial.


Os primeiros recursos que chegaram ao Supremo, questionando a aplicação da lei, foram em junho deste ano, no mesmo mês em que a legislação foi promulgada. Porém, as primeiras decisões dadas pelo Supremo no final de junho e início de julho, antes das férias forenses, foram decisões monocráticas. E por essas decisões monocráticas já se percebia que os ministros estavam divididos. Somente após a realização do primeiro turno das eleições, o Supremo põe novamente em pauta , para decisão do plenário, outro Recurso Extraordinário que questionava a constitucionalidade da aplicação da Lei da Ficha Limpa . O eleitor foi votar sem ter todas as informações necessárias, sem saber se seu voto seria contabilizado e válido. Teria a força legal para eleger seu representante? Ainda hoje cerca de dez milhões dos votos dados correm o risco de não terem sido válidos.


Esta autoparalisia, voltando a Douglass North, comprovava a necessidade de leis formais e comportamentos sociais informais para construir o regime democrático. Acoplados à necessidade de mecanismos específicos para fazer cumprir ambos. Havia a necessidade de enforcement, isto é, dar força, de fazer valer a lei, no caso, exigir que o Supremo decidisse a tempo. O eleitor precisa se assegurar de que os ideais normativizados correspondem à prática cotidiana de cada um de seus cidadãos e do Supremo também. Tinha agora uma resposta a pergunta clássica: Quem julga o julgador? Quem julga o Supremo quando ele não decide? A mobilização acima dos partidos, a transparência das decisões legislativas e judiciais, e a tecnologia midiática respondeu. O julgador dos julgadores é o povo, o eleitor, a opinião pública. Foram os ministros senão julgados, pelo menos avaliados, e através deles a intensidade da legitimidade do próprio Supremo. A opinião pública acompanhou o debate judicial de cenho franzido, que tanto distancia as pessoas entre si, quanto os cidadãos de suas instituições. O cenho franzido dos eleitores para com o Poder Judiciário não é de hoje. A lentidão do próprio Supremo pode ser um dos fatores violadores dos direitos individuais? A não decisão do Supremo fere direitos fundamentais? Será ela um inevitável destino da democracia?


O empate fora acidente institucional. A Constituição estabelece em onze os membros do Supremo. Ao não indicar com presteza um nome para substituir o ministro Eros Grau que atingira a compulsória, o presidente da República deixou involuntariamente o Supremo com dez, e exposto ao empate. O presidente nada transgrediu. A Constituição não determina prazo para esta indicação. Não se podia ter certeza de que recursos processuais e pedidos de liminares, nem que os votos individuais de cada ministro, resultassem em tribunal dividido. Por analogia com Octávio Paz: instituições, assim como a história, resultam de causalidades, e de casualidades também. Ao tentarem desempatar, os ministros empataram outra vez. Ocorreu o “metaempate”, diria Helio Oiticica. A regra do art. 13, IX, do Regimento Interno do STF diz: São atribuições do Presidente: IX – proferir voto de qualidade nas decisões do Plenário, para as quais o Regimento Interno não preveja solução diversa, quando o empate na votação decorra de ausência de Ministro em virtude de:


a) impedimento ou suspeição
b) vaga ou licença médica superior a 30 (trinta) dias, quando seja urgente a matéria e não se possa convocar o Ministro licenciado. Por esta regra, o presidente ministro Peluso, que votara contra a admissão da Lei da Ficha Limpa, desempataria. Muito provavelmente a lei só entraria em vigor nas próximas eleições, em 2012. O que provocaria frustração popular, aceitável a longo prazo, é obvio. O problema era o curto prazo. Caso prevalecesse outra regra do Regimento Interno, o art. 146 ou o art. 245, § único, II , como sugerido pelo ministro Celso Mello e acatado pela maioria dos ministros do Supremo, o recurso impetrado por Jader Barbalho não valeria. Permaneceria a decisão do TSE. Prevaleceu.


A interpretação judicial da Lei da Ficha Limpa tornara público um mistério institucionalizador do Supremo. Diga-me a regra, dir-te-ei o decisor e, por conseguinte, o resultado. A legalidade não é unívoca. Personificou-se o resultado. Aos olhos da mídia, das associações, dos internautas e dos eleitores, o Supremo se descobria como instituição vulnerável às paixões interpretativas. Consequências eram facilmente calculáveis. A personalização do previsível atingiu a crença na imparcialidade institucional do próprio Supremo. Os enormes esforços e, ao mesmo tempo, a incapacidade de decidir foram sistematicamente transmitidos ao vivo pela tv Justiça. Reproduzidos instantaneamente na internet e redes de televisão. A crença de que o Supremo não precisa ser neutro, mas precisa parecer neutro, como poderia dizer Robert Dahl, de tão sólida se desfazia no ar. Supremo: ambiguidade institucional


A combinação de regras regimentais conflitantes e o humano comportamento político dos ministros produziram um processo de quase autoflagelação institucional. Para dela fugir, uns ministros buscaram outras regras, não necessariamente jurídicas, como as do conviver diplomático, como sempre o faz a ministra Ellen Gracie. Outros se apegaram ao profissional comportamento dialógico, como o ministro Celso Mello, numa incessante invenção do desempate. Outros, corretamente, enfatizaram regras da democracia e evitaram votar duas vezes tal qual déspota, como o ministro Carlos Peluso. O “metaempate” não fará o eleitor descrente do Supremo, que tanto tem contribuído para nossa democracia. Mas sublinha sua ambiguidade institucional. Como ser imparcial diante de acirradas controvérsias humanas e ideológicas? A pessoa não se distingue do cargo. Nem o continente do conteúdo. O ministro é a soma de seus traços de personalidade com os poderes do cargo.


A transmissão ao vivo, as performances demasiadamente humanas de alguns ministros, o conflito no primeiro tempo entre a moralidade eleitoral de um lado, e o direito individual dos candidatos de outro, e, no segundo tempo, entre dispositivos regimentais conflitantes de desempate, transmitiram à opinião pública mensagem claríssima. Constituição sozinha não existe. É texto sem vida. Ideal sem real. O que existe mesmo é a interpretação da Constituição e a decorrente capacidade de ser exigida e obedecida: o enforcement. Validade, vigência, legalidade e legitimidade são atributos indispensáveis do Estado Democrático de Direito. Eficácia e eficiência são necessárias. Sem estes, aqueles se transformam no manto diáfano da fantasia formal. Pura ideologia.


A Constituição é o que o Supremo diz que é. Até o Congresso mudá-la. Nada mais. Se o Supremo decide e implementa a Constituição, habemus democracia. Do contrário… Do contrário, nem é bom pensar. Em suma, a análise do processo de elaboração e interpretação da Lei da Ficha Limpa deixou clara a necessidade de que a democracia ultrapassasse duas paralisias institucionais: o labirinto do Congresso e o empate do Supremo. O labirinto na tramitação de uma lei desconecta o eleitor de seu representante, afeta a democracia representativa. O “metaempate” deixa o País sem uma legítima decisão final e pacificadora de seus conflitos. Estas paralisias foram superadas por uma mobilização política acima dos partidos, mas não contra eles, midiática e tecnológica, fora das ruas e dos bastidores do poder. Muita internet, mobilizações individual e associativa em rede. Difusa, mas concretizável legislativamente. Tende a crescer na evolução da democracia. Tende a conciliar a democracia representativa com a democracia participativa. • JOAQUIM FALCÃO é professor de Direito da Fundação Getulio Vargas. Foi Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça de 2005 a 2009. Mestre em Direito (LL.M.) pela Harvard Law School; Doutor (Ph.D.) em Educação pela Université de Genève.


JOAQUIM FALCÃO é membro da Academia Brasileira de Letras e professor titular de Direito Constitucional da FGV Direito Rio. JOÃO CARLOS COCHLAR é pesquisador da Fundação Getulio Vargas.

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