10 maio 2018

A Intervenção no Rio de Janeiro e os Desafios da Segurança Pública

A intervenção federal no estado do Rio de Janeiro, decretada no dia 16 de fevereiro de 2018 pelo presidente Michel Temer1, com vigência até 31 de dezembro deste ano, objetiva pôr termo ao grave comprometimento da ordem pública naquele estado. Com anuência do governador do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Pezão2, este é o primeiro caso de aplicação concreta do instituto da intervenção previsto pelo Art. 34 da Constituição Federal. Uma medida extrema, paradigmática e histórica, destinada à reversão do estado de metástase da segurança pública no Rio.

A intervenção federal no estado do Rio de Janeiro, decretada no dia 16 de fevereiro de 2018 pelo presidente Michel Temer1, com vigência até 31 de dezembro deste ano, objetiva pôr termo ao grave comprometimento da ordem pública naquele estado. Com anuência do governador do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Pezão2, este é o primeiro caso de aplicação concreta do instituto da intervenção previsto pelo Art. 34 da Constituição Federal. Uma medida extrema, paradigmática e histórica, destinada à reversão do estado de metástase da segurança pública no Rio.
A imagem da metástase traduz uma série de falências: desrespeito a autoridades e instituições, crise econômica e financeira, corrupção policial, política e administrativa de vários setores do governo estadual, dramática reversão da funcionalidade do sistema prisional, expansão nacional e transnacionalização do crime organizado, ocupação territorial de áreas urbanas por facções em confronto permanente, aumento estarrecedor das estatísticas de violência em suas diversas formas e assim por diante.
A falta de verba para o pagamento dos servidores públicos, sobretudo policiais, e para os necessários investimentos em segurança, levou o Rio a decretar estado de calamidade pública em 2016. A situação se deteriorou em 2017, com aumento significativo do número de assassinatos e de crimes violentos – a taxa de homicídios no Rio foi de 29 a 32 por 100 mil habitantes em 2017 –, incluindo a morte de 134 policiais militares (este ano, já perdemos mais 36 policiais). A dramática continuação da tendência no início de 2018, especialmente durante o Carnaval, levou o presidente a tomar a decisão de intervir.
Com a intervenção, a competência estadual – primária, segundo a Constituição – em matéria de segurança passou para a esfera do governo federal, representada pela figura do interventor. O general de Exército Braga Netto, comandante militar do Leste e um dos responsáveis pela segurança dos Jogos Olímpicos do Rio de 2016, foi nomeado interventor militar. Diretamente subordinado ao presidente da República, suas atribuições foram limitadas à segurança, incluindo o controle operacional de todos os órgãos estaduais competentes pela matéria no estado do Rio de Janeiro – Polícia Militar, Polícia Civil e Corpo de Bombeiros. A reorganização desses mesmos órgãos e forças de segurança está entre seus desafios mais prementes.
A intervenção vai além do emprego das Forças Armadas nas chamadas ações de Garantia da Lei e da Ordem (GLOs)3 decretadas no Rio: operações de pacificação em comunidades e megaeventos, como a Conferência das Nações Unidas “Rio + 20”, em 2012, Copa das Confederações e visita do Papa durante a Jornada Mundial da Juventude, em 2013, Copa do Mundo 2014, Olimpíadas 2016 e a atual GLO, que continua vigente em paralelo à intervenção. Nas missões de GLO, as Forças Armadas agem de forma excepcional e episódica, em área restrita e por tempo limitado, nos casos em que há esgotamento, insuficiência ou indisponibilidade das forças tradicionais de segurança, em graves situações de perturbação da ordem.
Acões de Garantia da Lei e da Ordem
A intervenção, por sua vez, transcende o emprego episódico das Forças Armadas e de forças federais, e determina a gestão federal de uma área antes coordenada pelo poder estadual. Nesse sentido, as competências são mais amplas, exercidas sobre o espaço jurisdicional e administrativo primário do estado, e a atuação é mais profunda e duradoura, com maior capacidade operacional e integração entre entidades envolvidas.
Em meu mandato de quase dois anos como ministro da Defesa, registrei 11 GLOs, instrumento excepcional mediante o qual a União, a pedido do governador do Estado, socorre para reverter a perda de controle da ordem pública ou a escalada do crime organizado, até que se restabeleça a normalidade.
Em várias ocasiões assinalei o equívoco da “banalização” do emprego das Forças Armadas em ações de GLO, que configuram um verdadeiro epitáfio de um modelo de segurança pública de três décadas ainda vigente no país – sobre o que discorrerei logo abaixo. A mesma percepção foi compartilhada pelo comandante do Exército, General Villas Bôas, que manifestou sua preocupação com o constante emprego do Exército em GLOs nos estados.
Se, por um lado, as GLOs resolviam em caráter de urgência situações específicas, em nada solucionavam suas causas profundas, que residem na incapacidade dos estados federados em lidar de forma eficaz com a insegurança.
O diagnóstico de falências múltiplas a que me referi acima trouxe à tona uma fratura estrutural: o colapso da concepção constitucional de 1988 em matéria de segurança pública. O modelo de segurança pública brasileiro pensado pelos deputados constituintes há três décadas está falido. Foi vencido pelo tempo e atropelado pela acelerada deterioração da ordem pública provocada pelo crescimento e penetração do crime organizado na sociedade e em segmentos locais do poder público, com arraigada presença territorial em comunidades e fortalecimento de meios e condições operacionais, cada vez mais letais.
O caso mais visível e dramático, pela repercussão, é o do Rio de Janeiro – embora, estatisticamente, estados do Nordeste, como Sergipe, Rio Grande do Norte e Alagoas, tenham incidência relativa muito maior de homicídios.
Dos 250 artigos da Constituição Federal de 1988, acrescidos de mais 114 artigos das disposições transitórias, que tratam dos mais variados assuntos, é impressionante constatar que apenas um único artigo discorre sobre o tema vital da segurança pública: o artigo 1444, que concentra em si todo um capítulo (III) do Título V (Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas) da Carta Magna.
Teria o legislador constituinte negligenciado a segurança? O cenário vislumbrado pelo constituinte da evolução do País parece, hoje, demasiadamente otimista.
Compreende-se que a Magna Carta de uma República que se reinventava após duas décadas de um regime militar tenha enfatizado aspectos ligados ao desenvolvimento, ao bem-estar social, à cidadania e à construção institucional democrática, em detrimento da vertente coercitiva da ordem pública. Em outras palavras, a ênfase constitucional no “progresso” reduziu o espaço da “ordem”, dada a memória recente das teses autoritárias de segurança nacional, associadas à repressão, da qual a sociedade desejava se desvencilhar.
A arquitetura minimalista da Lei Maior e de seu novo pacto federativo em matéria de segurança pública concentrou nos estados quase todo o ônus do sustento e da capacidade operacional nesse tema. A preservação da ordem pública e o policiamento ostensivo foram reservados às polícias militares estaduais. Além disso, o modelo de segurança estabelecido pela Constituição não contemplou os municípios, apesar de estes serem essenciais no combate ao crime. Limitou-se a Carta Magna a sugerir que os municípios poderiam constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações.
Separação entre segurança pública e segurança nacional
Durante o regime militar, as questões da segurança nacional e da segurança pública estavam imbricadas. Em reação a isto, a Constituição Federal de 1988 decretou a separação rígida entre segurança pública, de um lado, e segurança nacional – ou defesa –, ficando esta última reservada às Forças Armadas. Nos últimos anos, entretanto, tal separação estanque entre segurança e defesa, e entre as ações das polícias militares e civis e das Forças Armadas, passou a ser relativizada na prática com a integração gerada pelas operações conjuntas nas operações de GLO e nos megaeventos acima mencionados – e, agora, com a intervenção no Rio de Janeiro.
A constituinte de 1988 não vislumbrou o cenário atroz de descontrole da segurança pública que hoje conhecemos. Há 30 anos, não havia a previsão de multiplicação do poder das facções de um crime que se integrou nacionalmente – nem, muito menos, sua transnacionalização, como hoje se verifica. Os problemas nefastos das drogas e do tráfico de armas foram subestimados – ou se lhes escaparam mesmo – pelos fundadores e artífices da Constituição Cidadã.
Entretanto, no longo hiato entre a Constituição de 1988 e o presente ano de 2018, a estrutura de segurança pública brasileira assistiu quase que passivamente ao crescimento da violência em níveis intoleráveis. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2017 (dados de 2016), o Brasil teve 7 pessoas assassinadas por hora em 2016 (mais de 1 a cada 10 minutos); mais de 61 mil mortes violentas intencionais, maior número da série histórica no País; 2.666 latrocínios (crescimento de 50% em relação a 2015); um carro roubado/furtado por minuto (mais de 1 milhão em 2015); uma mulher assassinada a cada 2 horas.
O impacto econômico dessa violência também é estarrecedor. Em 2015, as perdas materiais em decorrência da criminalidade superaram os R$ 25 bilhões (incluindo automotivo, patrimonial e carga), chegando a quase 0,4% do PIB. Segundo a Confederação Nacional do Transporte, em 2017, o valor subtraído em roubos de carga ascendeu a mais de R$ 1,5 bilhão. Os custos econômicos totais da criminalidade (somando-se encarceramento, perda da capacidade produtiva, gastos com segurança privada, perdas materiais, seguros e segurança pública) somaram cerca de R$ 270 bilhões (aumento médio de mais de 4% por ano desde 1996), dos quais dois terços recaem sobre o setor privado. Nessa espiral perversa, os valores subtraídos à sociedade e ao empresariado financiam o crime organizado, o tráfico de drogas e armas e a corrupção.
Custos intangíveis, sendo o mais vultoso, a perda de vidas
Para além dos custos financeiros impostos ao Estado e à sociedade, há custos intangíveis, que diminuem a qualidade de vida e o bem-estar da população: perda de produtividade ocasionada por morbidade física ou psicológica, prejuízos engendrados por interrupção dos negócios e dias de trabalho e de escola perdidos, custo na logística, transportes e seguros, desestímulo à acumulação de capital em face de incertezas, diminuição do turismo e assim por diante. Esses custos intangíveis são uma perda exorbitante para a sociedade brasileira, que corresponderia a um imposto anual de R$ 1.800,00, pago por cada cidadão. O custo mais vultoso, entretanto, é a perda de vidas, sobretudo de jovens, contra o futuro do País.
Por não ter, ainda, um orçamento vinculado, como ocorre com a saúde e a educação, a segurança pública foi tragada na deterioração da crise fiscal dos últimos anos. Para elevar o patamar do combate à violência, é preciso discutir o financiamento da segurança nos moldes previsíveis da saúde e da educação, e estabelecer metas e regras claras a serem observadas. A aplicação de novos recursos no setor será anunciada em breve.
Como o governo central permanece sem mandato para atuar efetivamente na segurança pública, salvo em aspectos residuais já referidos, impõe-se como passo inicial e decisivo para um processo de reversão da violência uma mudança constitucional.
Essa mudança é tarefa para o próximo governo, não havendo condição política e parlamentar para aprovar uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) este ano. Enquanto não for aprovada a PEC, o Ministério Extraordinário da Segurança Pública, criado pelo presidente Michel Temer, busca fazer com que a União possa efetivamente dividir com os estados federados o ônus da segurança pública, dando materialidade à ordem constitucional que a estabelece como direito e dever de todos.
O contraste entre, de um lado, um crime organizado eficiente, conectado nacional e internacionalmente e, de outro, um sistema de segurança defasado, em parte corrompido e com instituições e sistemas não integrados levou gradativamente o País àquelas exceções previstas na Constituição: de início, como já dito, com as GLOs utilizadas em larga escala, a ponto de se banalizarem, até o ápice da excepcionalidade, com a intervenção federal no Rio de Janeiro. Com a intervenção, o governo federal abre passagem para agir extraordinariamente em socorro àquela que é o cartão postal brasileiro no mundo.
A intervenção permite que o Rio se beneficie de forma singular da união de esforços de todas as forças de inteligência e operacionais do País para reverter o quadro de violência que infelicita a população. Mais que isso, a experiência de intervenção antecipa um modelo de reforma no sistema de segurança pública mais integrado entre União e estados.
Um dos primeiros passos na direção da reforma no Rio foi iniciar a reestruturação das polícias estaduais – que, em apenas um mês de intervenção, já tiveram seus comandos trocados de forma a estancar a cadeia de transmissão de segmentos dessas estruturas com o crime organizado. Mais que mera troca de comandos, houve condenações – entre elas, a do ex-diretor da Secretaria de Assistência Penitenciária do Rio, que, em conluio com fornecedores de presídios, representava parte do organismo contaminado daquele estado.
Para além das milhares de mortes e da dilapidação do patrimônio em larga escala, a gravidade do avanço do crime organizado representa uma verdadeira ameaça ao Estado Democrático de Direito. O regime de terror imposto pelos criminosos e suas facções nas ruas, bairros e comunidades torna a população assolada pela violência diária e a impede de exercer seus direitos civis mais elementares garantidos pela Constituição. O crime suprimiu, na vida de mais de um milhão de cariocas, residentes nas mais de 850 comunidades sob o domínio do tráfico, os mais básicos direitos, incluindo o de ir e vir e até o de escolher seus representantes livremente, sem a tutela dos comandantes locais do crime.
Crime organizado se beneficiou da globalização
Esse quadro de aparente impotência do Estado e de desespero da cidadania, num ambiente de disputa eleitoral, leva ao surgimento de plataformas políticas autoritárias de candidaturas que ganham espaço com fórmulas tanto simplistas quanto comprovadamente ineficazes no longo prazo. O discurso de força e supressão de direitos encontra eco fácil na busca desesperada por salvação, compreensivelmente presente nos cidadãos vítimas do crime ou potencialmente vulneráveis a ele. O combate à criminalidade deve resultar no fortalecimento da democracia e da cidadania, e jamais na regressão de conquistas históricas da sociedade brasileira.
Soluções autoritárias para a violência, embora alcancem fácil adesão em um momento de crise como o que vivemos, não podem tornar o País mais perigoso e violento do que já é. As soluções não podem seguir apenas a via da coerção, sendo insuficientes se não forem complementadas pela valorização do profissional das polícias e de medidas socioeconômicas que levem desenvolvimento e bens e serviços públicos de qualidade às comunidades mais duramente afetadas pela criminalidade.
Diante desse contexto, não se podiam mais adiar medidas excepcionais como a intervenção no Rio, medidas essas sempre respaldadas na Constituição, para deter o avanço do crime e iniciar um processo de reversão do quadro de violências.
Há um outro aspecto que precisa ser discutido e tratado de forma coordenada e articulada entre as áreas competentes do governo brasileiro: a dimensão internacional das ameaças à segurança pública.
O crime organizado não só acompanhou a globalização, mas se beneficiou de suas facilidades, de suas redes e de sua velocidade, aproveitando a interconexão entre atores através das fronteiras por meio das tecnologias de comunicação e informação. Com audácia e ferocidade, e uma eficácia e senso de oportunidade de causar inveja às empresas multinacionais mais competitivas e globalizadas, as facções lograram integrar cadeias de produção e comercialização de drogas, armas e contrabando. Passaram do comércio à produção e ao financiamento. De meros receptadores e intermediários de venda, inclusive para outros continentes, criminosos transnacionalizados passaram a comandar parte da produção de drogas em países vizinhos e consolidaram um circuito financeiro poderoso sustentado em produtos e operações ilegais.
A questão das fronteiras é crucial nesse debate. Um dos aspectos mais criticados pela sociedade, nos meios de comunicação e na voz dos especialistas na matéria, consiste em uma suposta ineficiência no controle das nossas fronteiras, portas de passagem de armamentos e drogas. Cabe aqui enfrentar o que se tornou uma lenda – a de que nossas fronteiras são “queijos suíços”. Não é bem assim. Há um permanente e tenaz trabalho de vigilância das Forças Armadas, Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal, com apoio tecnológico cada vez mais sofisticado, apoiado por satélites e equipamentos de sensoriamento remoto, para detectar e obstruir a passagem de vetores do crime.
Dimensões e atipicidade de nossas fronteiras
Duas questões se impõem de forma incontornável nas reflexões sobre esse aspecto da questão. O primeiro diz respeito às dimensões e atipicidade de nossas fronteiras. O Brasil tem 17 mil quilômetros de fronteiras, o que equivale a uma linha reta entre São Paulo e Tóquio. Desses, perto de 9 mil quilômetros são compostos de rios e florestas. No arco Norte, essa malha hidrográfica vem de fora para dentro, penetrando no Brasil pela bacia amazônica, o que torna extremamente difícil seu policiamento, que tem sido feito pelas Forças Armadas e policiais.
Para se ter um parâmetro comparativo, os Estados Unidos investiram bilhões de dólares na proteção de sua fronteira de 3 mil quilômetros com o México. Nossa fronteira com a Bolívia, por exemplo, é mais extensa que a dos Estados Unidos com o México!
Esses 17 mil quilômetros são compartilhados com dez países e a Guiana Francesa. Quatro desses vizinhos estão entre os maiores produtores mundiais de drogas e origem de contrabando, flagelos que geram violência e criminalidade em suas próprias sociedades.
Na minha gestão à frente do Ministério da Defesa, pus foco na construção de uma diplomacia de segurança com esses países, no marco de um mecanismo de coordenação e de agenda convergente com o Ministério das Relações Exteriores. Foram realizadas diversas reuniões bilaterais com ministros de Defesa e Segurança e altas autoridades civis e militares de países vizinhos, empreitada organizada conjuntamente com o Itamaraty e o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República.
No plano multilateral regional, o Mercosul e a Unasul dispõem de mecanismos e normativas em matéria de segurança internalizadas no ordenamento jurídico brasileiro, mas se verifica certo déficit de implementação efetiva. É necessário assegurar a eficácia de entendimentos importantes alcançados nesses foros.
Concluí que é preciso ir além dos encontros bilaterais e reuniões formais regionais: devemos caminhar no sentido de consolidar uma iniciativa sul-americana de defesa, um fórum ou plataforma específica, não burocratizada, que articule de forma eficaz as respectivas autoridades e estruturas de segurança nacionais desses países para o combate ao crime organizado de forma integrada. Pretendo dar início à concertação com ministros de Segurança de países vizinhos, em estreita coordenação com o Itamaraty, para a conformação dessa iniciativa sul-americana.
Coordenação entre as áreas de segurança e de política externa
A razão é tão simples quanto óbvia: se o crime se transnacionalizou, não se pode pretender combatê-lo apenas no ambiente nacional, circunscrito às fronteiras e mecanismos jurídicos exclusivamente domésticos. Estruturas do crime como PCC e Comando Vermelho já se fazem presentes nos países vizinhos, ampliando suas bases de comando. O enfrentamento ao crime organizado requer organização e integração de governos.
Os setores do governo brasileiro responsáveis pela segurança e pela política externa estão se coordenando mais estreitamente para trabalhar, em cooperação com os países vizinhos, sobretudo produtores de drogas e exportadores de armas e contrabando, para realizar ações integradas, concretas e eficientes contra o crime transfronteiriço, incluindo perseguição e repressão aos ilícitos e modernização legislativa.
Nesse sentido, em novembro de 2016, ainda como ministro da Defesa, participei, juntamente com o ministro-chefe do GSI, general Sergio Etchegoyen, da primeira reunião do Cone Sul sobre segurança fronteiriça, liderada pelo então ministro José Serra. A iniciativa será retomada em breve pelo chanceler Aloysio Nunes.
Outro aspecto crucial é a discussão séria sobre o sistema penitenciário. Aqui, uma das fontes da tragédia brasileira. Não por acaso este é um dos primeiros focos de minha gestão à frente da pasta da segurança. A situação é absurda: nosso sistema penitenciário, espaço em que o Estado deveria exercer seu máximo grau de imposição, tem sido, na prática, em larga medida, gerenciado pelo crime organizado.
Muitas providências precisam ser tomadas para reverter esse quadro, mas seguramente a primeira delas é reduzir a população carcerária, cujo excesso está exatamente no enorme contingente de presos temporários ou ainda já com direito à liberdade. Esse contingente, seja pelo baixo grau de periculosidade, seja pela primariedade, ausência de antecedentes de violência, detidos por delitos menores, não deve ser encarcerado em regime fechado.
A insuficiência de prisões de regime aberto faz com que acabem no regime mais duro, convivendo com os comandos do crime organizado, o que lhes deixa sem opção: é aderir ou morrer. Assim, pelo sistema de encarceramento, o Estado funciona na prática como recrutador para o crime, ampliando seu contingente em escala geométrica.
Tenho conversado com a OAB para que nos ceda advogados dativos que possam filtrar esses casos e reduzir, desde logo, essa população, fazendo justiça aos presos vítimas de erros do próprio sistema penitenciário e reduzindo as fileiras do crime.
Evitar o inchamento dos presídios
Com a mesma OAB insisto em uma solução para os advogados que acabaram envolvidos com o crime organizado – uma minoria de efeito danoso para a sociedade, na medida em que serve à preservação das comunicações entre os comandos encarcerados e seus subordinados fora dos presídios. A introdução dos parlatórios nos presídios se inscreve nesse contexto.
Também temos tratado junto ao Poder Judiciário e ao Ministério Público para evitar o inchamento dos presídios com casos que não se adequem ao regime fechado.
Junto ao Supremo Tribunal Federal, tenho buscado que se defina qual a quantidade de droga em posse de uma pessoa a definirá como usuária ou traficante. Por incrível que pareça, essa é uma questão ainda em aberto no Brasil, diferentemente dos países mais desenvolvidos nessa matéria. Um jovem sem antecedentes preso com determinada quantidade de drogas vai para regime fechado não só pela falta dessa definição, mas também por faltar ao juiz opção para uma pena adequada. Sem prisão aberta, resta-lhe deixar de punir ou trancafiar o cidadão no reino dos comandos do crime.
Tenho investido também na redução do tempo de construção de presídios, na qualificação da gestão do sistema e na inteligência para distribuí-los no País na proporção e regime que atendam à demanda real.
Passo agora a tratar da percepção de insegurança no Rio de Janeiro, que não mudou, o que é compreensível. Um mês e meio após decretada a intervenção, persistem questionamentos com relação à sua eficácia. Quero afirmar, entretanto, que a ansiedade por resultados ofusca os avanços já obtidos.
Segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP), ligado à Secretaria de Estado de Segurança Pública do Rio de Janeiro, indicadores de fevereiro último já registram reduções em relação a fevereiro de 2017 que merecem ser conhecidas pelo público em geral em matéria de homicídio doloso (redução de 13,1%) e letalidade violenta (redução de 9,2%).
Embora tenha havido melhora nesses itens, o número evidentemente é alto: no estado, há 19 mortes violentas por dia, e, em fevereiro, houve 100 mortes em operações policiais – alta de 17,6% em relação ao mesmo mês de 2017.
Além disso, o ISP registrou importantes melhorias nos indicadores de produtividade policial em relação a fevereiro de 2017: Armas apreendidas: aumento de 19%; apreensão de drogas: aumento de 25,4%; recuperação de veículos: aumento de 42,7%; e cumprimento de mandados de prisão: aumento de 36,3%.
Vale destacar, ademais, que o Exército e o ISP deram início a um trabalho de mapeamento por meio de fotos de satélite em 3D das rotas de fuga do tráfico (caminhos de favelas ligadas por trilhas, de Rocinha a São Conrado e Tijuca).
Esses resultados positivos da intervenção no Rio de Janeiro contrastam com a percepção cética transmitida pela imprensa. É importante ressaltar, porém, que a população mantém apoio quase absoluto à intervenção no Rio de Janeiro, o que a faz portadora de expectativas positivas. Mesmo a mídia parece unânime no diagnóstico de que a intervenção precisa de tempo para apresentar resultados.
Por outro lado, houve aumento de policiais civis e militares mortos em serviço (uma vítima em fevereiro de 2017 e duas em fevereiro de 2018) e de roubos de veículos (aumento de 11,8% em relação a fevereiro de 2017).
Nesse contexto, a opinião pública e a mídia têm assinalado que o novo Ministério da Segurança Pública, apesar de formalmente ainda qualificado de “Extraordinário”, veio para ficar, independentemente do processo sucessório.
Sistema único de segurança pública em tramitação no Congresso
As ações do Ministério Extraordinário da Segurança Pública, criado pela Medida Provisória no. 821, de 26 de fevereiro de 2018, contam com esse apoio para o pleno exercício de suas competências: coordenar e promover a integração da segurança pública em todo o território nacional em cooperação com os demais entes federativos; exercer as competências constitucionais previstas no artigo 144 por meio da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal; a defesa dos bens e dos próprios da União e das entidades integrantes da administração pública federal indireta; e planejar, coordenar e administrar a política penitenciária nacional.
A agenda e os órgãos singulares do Ministério da Justiça dedicados à segurança migraram para o novo Ministério, que passou a comandar a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal, o Departamento Penitenciário Nacional, o Conselho Nacional de Segurança Pública, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e a Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp).
Caberá ao Ministério da Segurança Pública impulsionar o Sistema Único de Segurança Pública, ora em tramitação no Congresso, e liderar iniciativas como integração de sistemas de inteligência, padronizar equipamentos, formas de treinamento, comando, formação e doutrinas, entre outras formas de apoio às polícias e ao sistema penitenciário.
Em conclusão, o Rio de Janeiro necessita do que a ONU chama de “missão de estabilização”, com a intervenção de forças capazes de restabelecer a paz. Mudanças significativas na situação de segurança do Rio de Janeiro demandarão tempo, mas já é possível apresentar os primeiros resultados positivos. Se estes são relativamente modestos no plano estatístico, posso afirmar que têm sido importantes no plano da integração e articulação de setores do governo, no sentido amplo – Executivo (polícias, sistema penitenciário, interação entre União e Estados), Judiciário, Legislativo e Ministério Público. Ainda como ministro da Defesa, e agora, com maior afinco, como ministro da Segurança Pública, tenho incentivado uma força-tarefa integrada pela Procuradoria Geral da República e pelos ministérios da Segurança Pública e da Defesa, para que atuem de forma coordenada, integrada e eficaz no combate ao crime organizado.
Além da articulação de Estado, estou empenhado em convidar a sociedade civil a participar do esforço nacional em favor da segurança pública, tendo presente a determinação constitucional de que a segurança, além de “dever do Estado”, é “responsabilidade de todos”. Nesse sentido, estou iniciando um processo de aproximação entre o Ministério e entidades como a OAB, sindicatos, ONGs, empresários e representantes de igrejas para que cada setor possa aportar sua contribuição em uma mobilização nacional em prol da segurança.
A atual tragédia da segurança pública reflete uma deterioração de décadas, e sua solução não pode ocorrer de forma milagrosamente instantânea. Mas, a reversão desse quadro já se iniciou. Não há segunda opção para o Brasil.

  1. O fundamento jurídico do Decreto nº 9.288, que impôs a intervenção no Rio de Janeiro, encontra-se no Art. 84, caput, inciso X, e no Título V, Capítulo III da Constituição Federal, bem como no Título V da Constituição do estado do Rio de Janeiro.
  2. A Câmara dos Deputados aprovou a intervenção por ampla maioria: 340 votos a favor e 72 contra. Da mesma forma, o Senado a endossou de forma inequívoca: 55 votos favoráveis, 13 contrários e uma abstenção.
  3. As operações de GLO são reguladas pela Constituição Federal (Art. 142), pela Lei Complementar 97, de 1999, e pelo Decreto 3897, de 2001.
  4. O Art. 144 da Constituição Federal estabelece que a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio por meio dos seguintes órgãos: polícia federal; polícia rodoviária federal; polícia ferroviária federal; polícias civis; polícias militares e corpos de bombeiros militares.

Raul Jungmann é político, consultor e ex-deputado federal, foi ministro da Reforma Agrária no governo de Fernando Henrique Cardoso e ministro da Defesa e da Segurança Pública no governo Michel Temer

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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