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Interesse Nacional
03 abril 2020

A Miséria da Democracia na República dos Salteadores

L’état c’est moi” (o Estado sou eu), dizia Luiz XIV, soberano absolutista de França. Quantos brasileiros, alguns dos quais falam francês por elitismo esnobe, podem dizer, como o rei, que eles são o Estado? Dizem que a escravatura foi abolida por obra e graça da mui pouco graciosa princesa Isabel dos Bourbons nos idos do penúltimo decênio do século XIX. Mas, um tipo novo de servidão foi instalado nesta República tropical sob as ordens de um estancieiro gaúcho, Getúlio Vargas, em nome da eficiência do serviço público. E o resultado está aí: enquanto o trabalhador comum trabalha como mouro e enfrenta o tal do serviço público, que dele só se serve, este reina absoluto com todos os direitos, prerrogativas e devidas mordomias. Por isso, é ocioso perguntar se o Brasil tem jeito. Tem não. As castas burocráticas estatais não deixam, não, de jeito e maneira.
E esse regime não tem como ser abolido por culpa de um sistema político aristocrático em que os marajás são a nobreza e o resto da população, a escumalha. Graças às artimanhas com que os donos do poder armaram as teias de aranha de uma democracia de fancaria, que presta reverências ao formalismo, ao garantismo e a outras cretinices do velho, bom e sábio Direito. Tudo foi armado, desde o princípio, quando as oligarquias rurais e a nobreza imperial juntaram as forças para inventar uma democracia em que o grego é negado, porque o poder não emana do povo e a este é negado. O segredo da escravidão verde, amarela, azul e branca é a composição do mando na herança dos positivistas autoritários e metidos a filósofos.
Na base de tudo está o velho Montesquieu, que estabeleceu como segredo do bom desgoverno a harmonia do tríplice comando. É tudo simples, tão simples. O Legislativo legisla, o Executivo executa e o Judiciário, por menos judicioso que seja, decide se o jeito de mandar está certo ou errado. A forma como esse equilíbrio é mantido merece ser narrado para que se entenda como funciona o reinado da tramoia.
 35 partidos e nenhum presta
Desde o quase século sob El Rey o poder não emana do povo, mas dos chefões. Nas aparências, o monarca presidencial é o único mandatário da República de todos os tempos legitimada pelo conceito fundamental da velha democracia de Atenas, segundo o qual cada cidadão tem direito a um voto. Mas, até mesmo esse nobre princípio se desmancha diante da evidência de que nele quem pode mais chora menos. Neste país as constituições são mais periódicas do que os jornais, mas todas, de dom Pedro I ao dr. Ulysses, que morreu no mar salgado, todas trataram de explicitar e escamotear o poder popular. O primeiro truque é criar uma miríade de 35 partidos políticos (até agora) autorizados a funcionar, fundados um atrás do outro e financiados todos pelo bolso furado dos pagadores de impostos. A Constituição de 1988 atingiu o ápice da glória partidária e do cinismo político com a criação do Fundo Partidário, a imposição do Fundo Eleitoral e, mais recentemente, a adaptação malandra do orçamento impositivo. Como sói acontecer no Brasil, todo foie gras termina em pizza, e as indulgências plenas decretadas pelos éditos do bezerro de ouro são emitidas diretamente pelo baixo clero, enquanto o sumo sacerdote dorme o sono profundo dos mais injustos. A pérola jogada aos porcos de nosso presidencialismo de desfaçatez é a emenda orçamentária sem fiscalização, distribuída entre prefeitos e organizadores chapinhas dos relatores. Os ditos representantes do povo fornicam como coelhos e parem feito insetos. São incansáveis na arte de reproduzir privilégios e foros para si próprios. O tal governo do povo, para o povo e pelo povo é, na prática, a ditadura absoluta das chefias partidárias que partem, repartem, mas sempre ficam com tudo. Para o cidadão, não sobram nem migalhas do rega-bofe dos poderes na distante e insensível Brasília.
Do bico de pena a Justiça que não condena
Há mais legendas no cenário político de Pindorama do que morcegos com o novo coronavírus do comunismo capitalista chinês. Esses ratos voadores proliferam em cavernas providenciadas por um monstro de muitas mãos e poucos punhos, chamado Justiça Eleitoral. Não se imagine que seja coisa recente, vem de muito tempo atrás. Tudo começou com a eleição a bico de pena de candidatos que tinham de provar certa renda numa República Velha que nunca morreu.
Hoje, as coisas funcionam assim: o “varão de Plutarco” (SQN) Roberto Requião encarna um pistoleiro chamado Ferreirinha no motorista de sua equipe de campanha para o governo do Paraná, utilizando para divulgar a patranha uma excrescência chamada horário eleitoral gratuito. A eleição dada como perdida foi vencida e a chapa declarada vencedora, porque oportunamente o advogado do adversário logrado se esqueceu de dar nome aos bois, ou melhor, ao vice. Parfait, diria Luiz XIV.
O suntuoso Tribunal Superior Eleitoral abriga momentos impagáveis de humor cinzento. Até os gansos do lago no fosso do castelo do Planalto sabem que a eleição vencida por Dilma do Lula e Temer do quadrilhão foi disputada na base de muita grana e pouco juízo. Gilmar Mendes, supremo soltador da República das prisões cada vez mais superlotadas, presidiu um julgamento em que a chapa foi inocentada por excesso de provas, como definiu jocosamente o próprio relator, Herman Benjamin.
Nosso torrão tupiniquim, aí, sim, serve de cenário a comédias azedas e outras salgadas. Em que outro país do planeta azul se encontrará um presidente em pleno exercício do cargo que acusa de fraudada a eleição que ele próprio ganhou? E sabe o que é pior? Ele existe, tem patente de capitão, usa faixa verde-amarela de humorista e se chama “seu Jair”. E mais: vai ver até tem razão. Qualquer “arararraquer” (a bênção, Corinha Rónai!) sabe que é mais fácil fraudar eleição em urna eletrônica do que tomar biscoito de guri em ponta de rua. Mas, provar quem há de? E perante este Estado das petas, quem precisa provar alguma coisa?
Baixo clero sobe ao altar
Bolsonaro ganhou a eleição para presidente da insana República porque era o único candidato tão baixo clero, mas tão insignificante, que nem sequer foi convidado para um assaltinho a cofre público nenhum. Aí mora o segredo da ditadura dos velhacos das organizações criminosas partidárias. Esta dorme sossegada, à prova de golpes ou lanças, pólvora ou metrancas, baseada no conceito mais antidemocrático que pode ter nossa Constituição enxundiosa e surrealista que estabelece a impossibilidade de candidaturas sem partidos. Ou seja, o escravo pagador de impostos que elege os reis de paus tem de se submeter à vontade soberana de quadrilhas emplumadas que limitam a disputa da chefia do Poder Executivo a uma roda de pôquer à beira do abismo e muito longe do céu. Por esta e mais outras, o nobre conceito do “cada cidadão, um voto” vira uma forma cachorra de distanciar o eleitor do eleito com a queda do erre final e da vergonha na cara de ambas as partes. Partes que sempre terminam em partidos, claro.
Se a matemática do Executivo não passa do zero, imagine só a do Legislativo. É, mas aí, sim, é o Poder que representa o povo, é ou não é? Como? Os gênios do liberalismo depois da ida do dr. Getúlio para a estância nos pampas bolaram um nó matemático que nem Euclides, o velho grego, desataria. Nem Alexandre, o macedônio, deceparia. O voto proporcional. O eleitor não vota num candidato nem num projeto de governo, poder ou o escambau. Nada disso. Nestes tristes trópicos do velho Lévi-Strauss, que não usava calças jeans dessa marca, vota-se mesmo é no quociente eleitoral, um princípio matemático sem nenhum valor moral e com zero força política.
Isso mesmo: o escravo velho de guerra sufraga uma legenda qualquer ao teclar um nome ou um número e ver a cara de um sujeito que não existe, a não ser como um número, cujos algarismos revelam a miséria da democracia na República dos saltimbancos. Somam-se os votos inúteis, embora chamados de úteis, e se divide o total pelo número de cadeiras disputadas para a Câmara dos Deputados. O resultado é o quociente eleitoral, o verdadeiro vencedor da eleição proporcional, o substituto simbólico do desusado poder popular.
 93% dos deputados são intrusos
Apenas 7% dos descarados demagogos que têm assento na chamada Câmara baixa (eita, definiçãozinha arretada de certa, sô!) conseguiram votos de fato para representar um povo que, et pour cause, não é representado. Ou seja, a partir dessa sina de puxadores de votos (ou de carros oficiais?), os drs. Enéas, os Paulos Maluf e as Janaínas Paschoal da política elegem uma súcia que nem eles nem seus eventuais eleitores conhecem. É isso que se chama de representação do povo. E o regime ganha a mais imprópria marca de um produto falso (ah, desculpe, fake), democracia representativa. Quaquaquá.
Já que falamos de aritmética, é o caso de lembrar que um acreano que vota em São Paulo tem um voto 13 vezes menos poderoso do que um paulista que viva no Acre. É isso aí. O quociente eleitoral para eleger deputados federais não é federal, não. É estadual. E quem é mais vale menos. O voto é proporcional, mas proporcionalmente os Estados menos populosos e mais pobres têm mais poder na representação do que os mais populosos e ricos. Nessa matemática de paradoxos, os pequenos se valem da bancada mínima e os grandes são punidos com o limite da bancada máxima. Algarismos romanos são incapazes de refletir esses paroxismos da representação capenga dos escravos, que, por isso, não fazem leis nem viajam nas asas da FAB Tour, nem nos tempos em que Lula Babá instituiu o direito dos pobres a frequentar o que nem ele se arrisca a usar: aviões de carreira. Isso aí pode até ser considerado “outros 500”, mas, no fundo, dá tudo na mesma.
Não pense, contudo, caro eleitor, que no Senado o apito toca em outro tom. Qual o quê! Senadores são três, eleitos em revezamento de um e dois. Nesse caso, não chore ainda, não, mas o cidadão, coitado, não tem direito ali nem a representação simbólica. Herdado do império dos Bourbons, o Senado da República não representa o indivíduo, mas outra entidade abstrata, a Unidade Federativa. Por isso, as eleições são majoritárias, cada cidadão tem direito a um voto, no caso, três, mas isso serve para pouca coisa, toda vantagem para os eleitos e um chá frio de água de batata para os eleitores.
Ah, dirá nossa Poliana em dia de fé em Deus e pé na tábua, vem aí o Judiciário para nos redimir. O Judiciário, no Estado brasileiro, é composto de três castas propriamente ditas: os juízes de primeira instância, que condenam, os de segunda, que mantêm as penas, e os de terceira, quarta e quinta, que soltam em nome do cidadão, que lhes paga o mais alto vencimento do serviço público (entenda-se servir-se do público, na feição correta), vítima e garantidor do garantismo. Permita-me o ínclito leitor a liberdade de esquecer magistrados de instâncias inferiores, pois, por mais judiciosas que sejam suas sentenças, nunca serão mantidas pelos colegas do topo da colina. A miséria moral do Estado brasileiro se concentra de forma irretorquível nas altas Cortes de Justiça. Ruy Barbosa, meu colega cabeçudo, imaginou um Supremo Tribunal Federal para funcionar como poder moderador à imagem e a exemplo de sua majestade, que o baiano e republicano tanto admirava. Durante um bom tempo, mais tempo do que bom, diga-se, isso significava grandes juristas de notório saber, boa reputação e conduta ilibada. Tantas virtudes no time atual de 11 não poderiam ser limitadas por mandatos ou cobranças. Membros do pretório nada excelso têm emprego vitalício e não são cobrados por ninguém. Bastou o senador Lasier propor um mandato de dez anos para se tornar o mais execrável dos nobres seniores da República monárquica. Os dicionários não registram, mas, no Brasil, privilégio recebido é sinônimo de direito conquistado e imperdível. Assim como a nova nobreza dos morcegões do Planalto transmite moléstias, mas delas não padece, supremo magistrado, que é sumo sacerdote da zorra e da discórdia, orgulha-se de ser reprovado em concursos para julgadores em começo de carreira e de cuspir na mão dos pobres que suam em bicas para sustentá-los na base de medalhões de lagosta regados a vinhos três vezes premiados. Ora vejam!
 O Supremo dos maçanetas
Há dois juízes em 11 ministros, Fux e Rosa. Os outros são procuradores – Celso, Marco Aurélio, Gilmar, Cármen e Fachin – ou advogados – Toffoli, Barroso, Lewandowski e Moraes. Nenhum deles é um luminar comparável a Victor Nunes Leal, autor do clássico Coronelismo, Enxada e Voto. Todos têm origem humilde. Calma, não me refiro a posses. Mas, sim, ao fato de todos pertencerem à baixa classe dos maçanetas e carregadores de pastas. Não pense que essa categoria profissional seja aviltante. O capitão Bolsonaro já deu sinais de que substituirá o jovem assessor do advogado Saulo Ramos, Celso de Mello, nomeado por Sarney, por André Mendonça, que, embora tenha bajulado o chefão Lula em artigo para a Folha de Londrina, sobrevive adulando Toffoli, cujas luzes intelectuais não iluminariam um box de banheiro. Outro tirambaço na competência poderá ser dado se o atual presidente nomear, como promete, seu secretário-geral, Jorge Oliveira, com três anos de advocacia não praticada, para o lugar de Marco Aurélio Mello, cuja trajetória de nepotismo faria os imperadores romanos babarem de inveja. Sua virtude? “É o mais leal ao meu pai”, disse Eduardo, o filhote de Bolsonaro 03. Não core. Não se irrite. Não será fácil encontrar nos substituídos quem tenha sido escolhido por virtude mais republicana do que a fidelidade canina ao dono da bola.
O Estado brasileiro é um imenso traste impagável por todos esses motivos e outras causas deles advindas. Senadores têm oito anos de mandato, enquanto os membros do Senado dos EUA, no qual nossos primeiros constituintes se basearam, têm seis. Ministros do STF, que estão longe de ser infalíveis como o papa, só saem da cadeira que o capinha puxa para corresponder à sua régia remuneração a fim de advogarem para ganhar muito dinheiro e proteger os bons compadres que os ajudaram a escalar o Olimpo. Só num Estado permissivo como o nosso Gilmar Mendes pode julgar amigos e antigos camaradas de palácio e ainda ser proprietário de uma rendosíssima escola de profissionais do chicanismo, que, pelo amor de Deus, nada têm que ver com o genial Chico Anysio.
No país onde, diziam os maldosos mais velhos, traficantes se viciam, prostitutas se apaixonam e gigolôs se casam com elas, não é difícil encontrar proles unidas pelo ofício defendendo réus em processos julgados pelos pais ministros. Afinal, o templo por excelência da perfídia de nossa herança ibérica é o cartório. A incompetência gerencial levou milhões de trabalhadores com tempo trabalhado suficiente para se aposentarem a filas infindáveis nas repartições encarregadas de não fazerem o serviço.
O Estado brasileiro perdeu a capacidade de fiscalizar e as consequências disso acarretam perdas para o Tesouro e mortes para o distinto público. Então, contemplamos as prisões superlotadas e tornadas sucursais pioradas do inferno, as agências em ruínas dos bilionários bancos ditos públicos, os índices deprimentes da educação, os pobres morrendo sem direito sequer a entrar nos hospitais e outras evidências de nossa máquina pública emperrada. E perguntamos ao primeiro desempregado deitado sobre molambos na calçada: você acha que o Brasil tem jeito? Parece que não tem. Pois o único meio de prosperar seria abolir a escravatura do pagante submetido à empáfia do incompetente, corrupto e abonado habitante privilegiado do paraíso da estadocracia estroina e voraz. Talvez seja impossível, mas um dia, provavelmente, talvez, quem sabe…

José Neumanne é jornalista, poeta e escritor.

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