A Política e a Estratégia Nacional de Defesa
O Executivo nacional encaminhou ao Congresso três documentos relacionados com a Estratégia Nacional de Defesa (END), a Política Nacional de Defesa (PND) e o Livro Branco da Defesa Nacional.
A PND apresenta o contexto da política nacional de defesa, seus fundamentos, o ambiente nacional e o internacional, a concepção política de defesa e os objetivos nacionais de defesa. A END discute a concepção estratégica de defesa, os fundamentos (poder nacional, capacidade nacional de defesa, base industrial de defesa, recursos humanos, ações de diplomacia, setor de defesa, estratégias e ações estratégicas de defesa). Ambos os documentos procuram responder aos desafios percebidos pelo atual governo e mostrar, em linhas gerais, o planejamento das prioridades para a defesa do País.
Voltada prioritariamente para ameaças externas, a política de defesa estabelece objetivos para o preparo e o emprego de todas as expressões do Poder Nacional. Os objetivos gerais são: garantir a soberania, o patrimônio nacional e a integridade territorial; assegurar a capacidade de Defesa para o cumprimento das missões constitucionais das Forças Armadas; promover a autonomia tecnológica e produtiva na área de defesa; preservar a coesão e a unidade nacionais; salvaguardar as pessoas, os bens, os recursos e os interesses nacionais situados no exterior; ampliar o envolvimento da sociedade brasileira nos assuntos de defesa nacional; contribuir para a estabilidade regional e para a paz e a segurança internacionais; incrementar a projeção do Brasil no concerto das Nações e a sua inserção em processos decisórios internacionais.
A Estratégia Nacional de Defesa, por sua vez, orienta os segmentos do Estado brasileiro quanto às estratégias e medidas que devem ser implementadas para que esses objetivos sejam alcançados. Trata das bases sobre as quais deve estar estruturada a defesa do País, assim como indica as articulações que deverão ser conduzidas, no âmbito de todas as instâncias dos três Poderes, e a interação entre os diversos escalões condutores dessas ações com os segmentos não governamentais do País.
O livro Branco da Defesa, entre outros aspectos, apresenta os princípios básicos da defesa nacional e analisa os sistemas internacionais, regional e o do Atlântico Sul; examina os tratados e regimes internacionais com reflexos para a defesa (desarmamento, não proliferação de armas nucleares, mar, Antártida e espaço exterior e meio ambiente); indica a aproximação da política externa e de defesa; explica o funcionamento do Ministério da Defesa e de seus órgãos; elabora análises sobre os setores estratégicos para a Defesa (nuclear, cibernética e espacial); apresenta os sistemas de monitoramento e controle; de gerenciamento da Amazônia Azul, de fronteiras, de controle do espaço aéreo, de mobilização nacional, do serviço militar, de inteligência de Defesa; determina a participação do Brasil em missões de paz, além da atuação das forças armadas na garantia da lei e da ordem e dos programas sociais da Defesa com ações subsidiárias e complementares.
Em vista da limitação de espaço, vou comentar alguns aspectos que me pareceram mais importantes para a compreensão das questões da Defesa Nacional, suas limitações e as distorções que decorrem da forma como o documento é concebido e elaborado.
País pacífico, cuja constituição advoga a solução negociada dos conflitos, a única guerra com vizinhos em que o Brasil se viu envolvido foi contra o Paraguai, em 1865. Todos os conflitos de fronteiras foram resolvidos em entendimentos bilaterais ou por arbitragem. Com esse pano de fundo, não é difícil explicar a falta de uma forte cultura de Defesa, como nos EUA, na Rússia e na Europa. Os 21 anos de autoritarismo contribuíram, por outro lado, para as restrições posteriores à renovação do equipamento militar obsoleto, talvez pelo receio da área política de estimular o ressurgimento do poder militar no Brasil. Hoje, conhecemos os nomes dos juízes da Suprema Corte, mas, ao contrário do que ocorreu entre 1964 e 1984, não sabemos quem são os comandantes militares, nem a identidade do ministro da Defesa.
A ausência dessa cultura de Defesa explica, em grande parte, as constantes reduções de recursos públicos para a manutenção da capacidade operacional das três forças e as reações negativas quando se registra um aumento para 2% do orçamento, como ocorre agora. E isso não parece despertar qualquer preocupação na sociedade quanto aos riscos para a proteção de nosso território terrestre (fronteiras) e marítimo (plataformas de exploração de petróleo) e para uma reação adequada às novas ameaças globais, como o tráfico de armas, de drogas, o terrorismo e a guerra cibernética.
Uma quarta força militar: engenheiros e administradores
Cabe indagar se o documento apresentado ao Congresso Nacional para exame e deliberação responde aos novos desafios de um mundo em rápida transformação e à perda de protagonismo do país no entorno estratégico, na linguagem da ESN. É importante ressaltar, de início, a dificuldade de se examinar essa matéria pelo fato de os objetivos nacionais carecerem de uma grande estratégia com visão de médio e longo prazos. Além disso, em tempos de paz, sem ameaça de conflito plausível e iminente, a atividade principal do Ministério da Defesa não deveria ser a preparação para operação de combates, mas sim a logística de defesa para aumentar sua capacidade de dissuasão, como seguidamente repetido no documento. Nesse particular, como uma primeira observação seria urgente o exame de uma profunda reforma das instituições, separando as operações de logística (indústria, instituições científicas tecnológicas (ICTs) e a gestão de tudo isso) das de defesa. Sendo suas finalidades muito distintas, impõe-se a criação de órgão independente, como foi feito nos anos 60, na França. O modelo francês da DGA (Délégation Générale de L’Armement) é baseado em uma quarta força militar, formada basicamente por engenheiros e administradores oriundos das melhores universidades francesas. Essa força é complementada por civis com qualificações semelhantes. O Brasil dispõe de uma massa crítica de técnicos, civis e militares que poderiam integrar essa instituição. Trata-se de uma decisão política de alto nível em que sairiam ganhando as forças armadas e a defesa nacional.
Depois de pouco mais de 30 anos, o mundo volta à era de competição entre superpotências, com o declínio da dominação dos EUA e a emergência tecnológica, comercial e militar da China. Ao contrário do que se anunciava no pós-Guerra Fria, quando a distensão mundial e a globalização reduziram os níveis de confrontação e ampliaram a prosperidade econômica, em um contexto de redução do papel do Estado, nos últimos anos, tem crescido o espectro do conflito estratégico militar entre as maiores potências e ressurgido a competição pela supremacia global.
Qual seria o papel do Brasil como uma das dez maiores economias do mundo, a quinta em território e a sexta em população? Como o Brasil deveria se posicionar, em termos de Defesa, em seu entorno geográfico e área de influência? Como enfrentar o déficit de geração tecnológica face à rápida obsolescência dos equipamentos militares e dos projetos especiais das três forças? Como evitar que a crise entre os EUA e a China seja transplantada para a América do Sul e interfira no interesse nacional? Como levar adiante uma agenda de defesa que atenda aos interesses brasileiros?
A área de influência do Brasil, como definido na PND, abrange América do Sul, Antártica e o Oceano Atlântico até a costa ocidental da África. A referência à integração regional amplia o entorno por incluir a América Central e a América do Norte. A menção a possíveis tensões e crises no entorno estratégico e a disponibilidade do Brasil para contribuir na solução de controvérsias ou para defender seus interesses podem ser interpretadas como se o Brasil pudesse empregar as FFAA em intervenções militares, em contradição com o disposto na Constituição. Por ação do governo brasileiro, o Conselho de Defesa desapareceu com o fim da Unasul, sem nenhuma proposta de substituição feita por Brasília.
O entorno geográfico brasileiro detém significativas reservas de recursos naturais, em um mundo já cioso da escassez desses ativos. Tal cenário poderá ensejar a ocorrência de conflitos nos quais prevaleça o uso da força ou o seu respaldo para a imposição de sanções políticas e econômicas. No Atlântico Sul, declarado pela Assembleia Geral das Nações Unidas como Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul – Zopacas, percebe-se o crescimento de ilícitos transnacionais, como pesca predatória, crimes ambientais e a presença de países que dela não fazem parte e que, no entanto, possuem interesses na região. Assim, as expressões do Poder Nacional devem estar adequadamente capacitadas para fazer valer os interesses nacionais. Potências externas, como China, Rússia, EUA e Irã têm incrementado sua presença e influência nessas áreas, sem qualquer referência nos documentos de política e de estratégia de defesa. Por outro lado, nada se menciona sobre as consequências do ângulo da Defesa da iniciativa chinesa da nova rota da seda (Belt and Road Initiative) na América Latina. Outros elementos estratégicos deveriam ter merecido exame dos documentos: a nova doutrina da Otan inclui seu âmbito não só no Atlântico Norte, mas também no Atlântico Sul, área de direto interesse do Brasil, a inclusão de Brasília como aliado estratégico dos EUA fora da Otan e a participação brasileira nos trabalhos do Comando Sul dos EUA, em Miami. Nem a política, nem a estratégia examinaram as implicações desses fatos sobre os interesses nacionais.
Sendo um país grande, como referido acima, com possibilidade para transformar-se em uma potência com características diferentes, a amplitude das atividades de defesa deveria ajustar-se aos anseios e às ambições que seu poder pode projetar. Nesse sentido, um planejamento na área de defesa não pode deixar de incluir a Europa, a África e a China.
As rápidas transformações tecnológicas exigem um esforço para estimular a Base Industrial de Defesa a pesquisar para complementar as aquisições externas. A falta de isonomia tributária favorece a importação de armas dos EUA, como acontece agora com a compra de armas para a polícia em detrimento da produção nacional. A indústria brasileira de defesa, em especial a empresa estratégica, terá de se internacionalizar ou se abrir e formar “joint-venture” com empresas estrangeiras para ter acesso a novas tecnologias e financiamento, enquanto não houver avanço autóctone significativo em inovação e financiamento. As três áreas ressaltadas na Estratégia de Defesa Nacional (cibernética, energia nuclear e espaço) deveriam merecer estímulos, como ocorre nos EUA e na Otan, para que a produção nacional supere as vulnerabilidades cada vez maiores de nossos materiais bélicos e responda aos novos desafios de inteligência artificial.
No setor nuclear, o Brasil é um dos países mais atuantes na causa da não proliferação de armas atômicas. Sem renunciar ao domínio da tecnologia nuclear, optou por empregá-la para fins pacíficos, decisão consubstanciada no texto constitucional e referendada pela adesão do País ao Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, registra a END. Os objetivos incluídos na END, além de genéricos, em alguns casos são difíceis de concretização como “o aprimoramento das tecnologias e as capacitações para a completa nacionalização da construção do submarino nuclear”, sobretudo pelo diferimento no tempo por falta de recursos da entrega do submarino, o que implicará a obsolescência dos equipamentos e dos sistemas agora utilizados. O Brasil detém a sexta maior reserva de urânio do mundo, mas nossa produção representa apenas 15% do consumo de Angra 1 e 2. O minério é um monopólio da União, e a estatal Indústrias Nucleares do Brasil (INB), sem recursos adequados, é responsável pela prospecção, pesquisa e lavra do urânio. Desde 2015, contudo, a produção foi suspensa porque a mina a céu aberto em Cachoeira, na Bahia, a única em exploração no Brasil, deixou de ser viável economicamente. De 2000 a 2015, a produção de concentrado de urânio abasteceu Angra 1 e 2, mas, a partir de 2016, o Brasil tem importado urânio para abastecê-las. Com a construção de Angra 3 e, nos próximos anos, com a provável expansão das usinas nucleares, a demanda interna crescerá significativamente.
As bases para uma nova visão dessa questão foram lançadas em dezembro passado com a consolidação da Política Nuclear Brasileira, cuja finalidade seria orientar o planejamento, as atividades nucleares e radioativas no país, levando em conta a soberania nacional, com vistas ao desenvolvimento e à proteção da saúde humana e do meio ambiente.
Ataques cibernéticos a redes de informação
O Comitê de Desenvolvimento do Programa Nuclear Brasileiro (CDPNB), coordenado pelo Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República, produziu documento que trata do fomento à pesquisa, da prospecção de minérios nucleares e do incentivo à produção nacional para atender à demanda interna e à exportação, além de assegurar o recurso geológico estratégico do minério nuclear. A nova politica é importante porque prevê a quebra do monopólio e a abertura do mercado brasileiro.
No setor cibernético, engatinhamos nos esforços para a proteção da segurança das comunicações governamentais e privadas. O Centro de Defesa Cibernética – criado no âmbito do Ministério da Defesa em 2010 -, previsto na Estratégia Nacional de Defesa, continua afetado pela falta de recursos financeiros. A situação atual, que pode ser considerada como “vulnerável”, tem-se agravado pela velocidade das mudanças e pela intensificação dos ataques cibernéticos a nossas redes de informação. No Brasil, nos últimos anos, instituições públicas e empresas têm sido objeto de ataques por hackers e por organizações no exterior. A guerra cibernética se assemelha à guerra insurrecional, com a diferença de poder planejar e executar a ação à distância, longe do inimigo. A utilização de algoritmos de inteligência artificial multiplicará o impacto das ações e criará no adversário novas vulnerabilidades. Será mais difícil a identificação de seus autores, pela utilização dos robôs para autorizar a difusão de falsas informações nas redes sociais ou para a disponibilização com livre acesso de algoritmos, permitindo incluir pessoas em qualquer vídeo e colocar em sua boca o que se deseje que ela diga. É possível que já estejam acontecendo operações de espionagem cibernética, de sabotagem ou de influência comandadas de maneira completamente autônoma, necessitando apenas do sinal verde de alguém.
No setor espacial, a Força Aérea, em conjunto com a Agência Espacial Brasileira, por intermédio de todo o complexo científico-tecnológico e da interação com a Base Industrial de Defesa, tem repetido a cada quatro anos a prioridade de desenvolver soluções nacionais para veículos lançadores de satélites e tecnologias associadas que permitam fazer uso de plataformas espaciais com finalidades de comunicações, observação da terra, vigilância, meteorologia e navegação. Não há referência às perspectivas para o Centro de Lançamento de Alcântara, com a entrada em vigência do Acordo de Salvaguarda Tecnológica com os EUA. O grande desafio será tornar o Centro operativo para lançamento de satélites no prazo mais curto possível. Para tanto, serão necessárias medidas de caráter político para abrir ao Brasil as portas do importante mercado global espacial. A partir de agora, espera-se que o governo federal acelere e complete as mudanças na governança do setor e defina uma estratégia, de longo prazo, que dê previsibilidade para as eventuais empresas interessadas, não só dos EUA, mas de outros países, como França, Israel e Japão.
A política de defesa deveria determinar a política militar. As políticas de defesa e militar deveriam estar inseridas em uma política mais ampla: a política externa.
O documento aponta corretamente que as políticas externa e de defesa são complementares e indissociáveis. “A manutenção da estabilidade regional e a construção de um ambiente internacional mais cooperativo, de grande interesse para o Brasil, serão favorecidas pela ação conjunta dos
dois ministérios. A promoção do interesse nacional, em particular nos temas afetos a desenvolvimento e segurança do País, evidencia a necessidade de fortalecimento dos mecanismos de diálogo entre a Defesa e o Itamaraty no sentido de aproximação de suas inteligências e de um planejamento conjunto.” Esse entrosamento ainda não é bem entendido nem pelo Ministério da Defesa, nem pelo Itamaraty, como demonstrado pelas poucas referências às questões de Defesa na retórica da política externa.
Centro de Defesa e Segurança Nacional
O Livro Branco reconhece que o trabalho e a participação articulada de militares e diplomatas em fóruns multilaterais (diálogos políticos) favorecem a capacidade de as políticas externa e de defesa se anteciparem, de maneira coerente e estratégica, às transformações do sistema internacional e de suas estruturas de governança, além de facilitar a tarefa de defender, no exterior, os interesses brasileiros. No plano regional, especialmente no sul-americano, sublinha o trabalho, a relação entre as políticas externa e de defesa no sentido de fomentar e expandir a integração regional, de maneira a fortalecer a ação sul-americana no cenário internacional. Deve ser, ainda, fator agregador na capacidade de articulação com os governos vizinhos para afastar ameaças à paz e à segurança na região.
O documento menciona diversas vezes a criação de uma carreira civil no Ministério da Defesa, como existe em outros países, mas até agora não se levou adiante essa política, que iria arejar a discussão hoje restrita ao meio militar das três forças, com todas as limitações e os interesses corporativos que acarreta. Analistas civis, por exemplo, seriam um primeiro passo para a desmilitarização dessas discussões. Nessa mesma linha, a criação de um Centro de Defesa e Segurança Nacional, iniciativa do Ministro Raul Jungmann, anunciada recentemente, poderá trazer contribuição importante para o debate sobre os temas de defesa e de segurança nacionais, a começar pela análise da PND e da END.
Pela sua importância, esses documentos deveriam ser elaborados por um Conselho de Alto Nível, integrado pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, por representantes da Câmara dos Deputados e do Senado e por representes do Ministério da Defesa e do Itamaraty. O documento não deveria tratar de outros temas que não seja o lugar do Brasil no mundo e seus objetivos nacionais, no contexto de um projeto de país. O resultado deveria ser amplamente debatido pelo Congresso Nacional – ao contrário do que vem ocorrendo desde 1996, quando foi apresentado pela primeira vez – e por “think tanks” da sociedade civil que fizessem recomendações sobre as prioridades para a Defesa e os meios para alcançá-las.
Presidente e fundador do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE). É presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da FIESP, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Trigo (Abitrigo), presidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional (Cedesen) e fundador da Revista Interesse Nacional. Foi embaixador do Brasil em Londres (1994–99) e em Washington (1999–04). É autor de Dissenso de Washington (Agir), Panorama Visto de Londres (Aduaneiras), América Latina em Perspectiva (Aduaneiras) e O Brasil voltou? (Pioneira), entre outros.
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