A Reconstrução do Brasil Depois da Covid-19
As análises e os estudos das principais organizações internacionais e think tanks sinalizam que a pandemia pode estender-se por um período maior do que o antecipado. A vacina contra a Covid-19 está prometendo tardar para ser comercializada.
A recuperação do Brasil não vai ser rápida, nem o país sairá mais forte, como alguns anunciam. Ela vai depender, em especial, de dois fatores: a forma de como a economia global vai voltar a crescer, o tempo que demorará para voltar a um mínimo de normalidade e, em especial, o grau de preparação interna para as medidas que deverão ser tomadas para criar condições de retomada da atividade econômica.
Os efeitos sobre o Brasil hão de perdurar por muito tempo, caso medidas drásticas não forem tomadas. É tempo de repensar nossas vulnerabilidades e aproveitar para passar o Brasil a limpo, de modo a modernizá-lo com menor desigualdade regional e social. E também definir o lugar do Brasil no mundo e sua inserção de forma competitiva nos fluxos dinâmicos do comércio internacional.
O governo criou um grupo de trabalho (GT) para a coordenação de ações estruturantes e estratégicas para recuperação do crescimento e desenvolvimento. O GT, presidido pela Casa Civil, deveria ser o efetivo catalizador dos esforços visando à recuperação da economia e liderar, em nome do presidente da República, a efetiva coordenação entre representantes dos três poderes, dos órgãos reguladores e outros que interferem no processo administrativo. O GT, que deverá apresentar um plano de trabalho em 90 dias, poderá propor ações estruturantes, atos normativos e medidas legislativas para a retomada das atividades afetadas pela Covid-19 em âmbito nacional; articular com estados, municípios, Distrito Federal, empresas públicas e privadas, bem como com entidades sem fins lucrativos, propostas de ações coordenadas para a retomada das atividades em âmbito nacional. O Ministério da Economia começou a traçar cenários e a fazer estimativas para o day after que, espera- se, devam estar articulados com o GT. Em abril, no meio da crise que cercou a saída do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, o governo decidiu lançar, talvez sem preparação adequada, o programa Pró-Brasil para a recuperação da economia baseado apenas em projetos de infraestrutura. Sem indicar as fontes de financiamento, nem assegurar um marco regulatório que confirme a segurança jurídica a investidores externos, a proposta foi criticada pelo ministro da Economia, na famosa reunião ministerial de 22 de abril, e não se sabe seu destino.
As atividades desse grupo deveriam envolver nos próximos três meses os diferentes segmentos da sociedade: governo, Congresso, economistas, empresários, trabalhadores e instituições técnicas especializadas. Será importante conseguir um consenso mínimo para agilizar a implementação de políticas e de medidas essenciais com o objetivo de retomar o crescimento, reduzir o desemprego e aperfeiçoar as funções do Estado, que, em um primeiro momento, tenderá a ocupar um espaço maior. A indústria, a agricultura e os serviços continuarão afetados por muito tempo e dependerão da eficácia das medidas adotadas.
É sintomático – e um desafio para outras forças políticas – que o principal partido de oposição, PT, tenha decidido também engajar-se nessa discussão e dar início à discussão e à formulação de um projeto de retomada econômica, geração de empregos, reconstrução do Estado e da soberania nacional.
Durante a primeira fase, de combate ao vírus e de luta para salvar vidas e melhorar o sistema de saúde, e na segunda fase, de saída do isolamento, governo e Congresso tomaram medidas que terão impacto quando começar a discussão da terceira fase, a da recuperação. Auxílio emergencial para autônomos e informais, crédito e isenções a empresas grandes, médias e pequenas, crédito a microempresas, apoio emergencial aos estados e municípios e em áreas consideradas essenciais, apesar das dificuldades operacionais, criaram condições para reduzir o impacto e evitar que a situação saísse do controle, com um custo que deve passar dos R$600 bilhões. O orçamento de guerra para 2020 deveria absorver os gastos necessários para a saúde e a preservação das empresas e do emprego. O orçamento para 2020-2021 deverá manter os parâmetros legais, inclusive o do teto de gastos, com a flexibilidade permitida para crises como a que estamos atravessando. Não podemos perder tempo com discussões acadêmicas entre fiscalistas e expansionistas relacionadas com o controle ortodoxo dos gastos. A França e a Inglaterra, insuspeitas quanto ao controle de seus déficits fiscais, não hesitaram em abrir os cofres públicos e despejar de helicóptero (para usar expressão de Milton Friedman) recursos financeiros na economia. O governo brasileiro vai ter de injetar os recursos que forem necessários para ativar a economia e criar condições para que o setor privado também invista em projetos para estimular a volta ao crescimento.
A partir das medidas emergenciais já tomadas e das iniciativas para a retomada da economia, o governo, no âmbito do Grupo de Trabalho, não terá alternativa senão temperar as prioridades das políticas liberais do Ministério da Economia com necessidades de base keynesiana para estimular o crescimento e o emprego.
Na fase de reconstrução, alguns pressupostos deverão ser observados para permitir um amplo programa de obras públicas, de investimentos em inovação por parte das empresas, de redução das desigualdades, com a manutenção do equilíbrio federativo:
- realismo na necessidade de utilização de recursos públicos sem dogmas ortodoxos, como admitiu o ministro da Economia ao mencionar a possibilidade de ampliar a base monetária com a impressão de dinheiro;
- austeridade fiscal em todos os níveis – federal, estadual e municipal;
- aumento inicial da participação do Estado como indutor da atividade econômica, com maior eficiência e transparência;
- crescente participação do setor privado na economia;
- manutenção do auxílio financeiro aos mais pobres (renda mínima).
O Executivo – levando-se em conta o pacto federativo – tem um compromisso inadiável com a aprovação e execução de reformas (sobretudo a tributária e a administrativa) e medidas regulatórias, simplificação e desburocratização para aumentar a competitividade da economia, tornar mais ágeis as agências reguladoras e tornar efetivas as prometidas desestatizações e vendas de centenas de empresas estatais, paraestatais e concessões de serviços públicos.
Em vista do impacto negativo da crise sobre a economia em todos os países e a fragilidade do setor privado, será inevitável o crescimento do papel do Estado como indutor do investimento público e privado. A exemplo do que ocorre nos EUA e na Europa, o governo central deverá aumentar seu gasto para estimular a recuperação da economia com impacto fiscal inevitável pela flexibilização de medidas de contenção fiscal, mas com políticas para o controle das contas públicas de médio prazo (âncora fiscal). No caso do Brasil, à luz das políticas liberais do governo, a ênfase está colocada na importância da participação do setor privado na fase de recuperação. O envolvimento do setor privado e de organismos financeiros internacionais como o Brics, o Banco da CAF (Banco de Desenvolvimento da América Latina), o BID e o Banco Mundial, contudo, não será automático e dependerá de condições mínimas de segurança jurídica para o investimento, de prioridade em relação a projetos de concessão e obras públicas e de sinalização clara de transparência no trato com o governo.
Será indispensável um trabalho conjunto e coordenado com o Congresso para avançar nas medidas legislativas essenciais para criar condições para atrair investimentos do setor privado interno e externo e gerar empregos. O papel do Congresso – Câmara de Deputados e Senado – será crucial no exame e na discussão de agenda de modernização do país. A gravidade da crise, que afetou a todos, exigirá agilidade e rapidez dos legisladores para que se avance nos projetos até o final do ano. Com a tendência a maior informalidade e pobreza na saída da pandemia, será inevitável, na área social, discutir como tornar permanente o programa de auxílio emergencial para dar proteção a quase 80 milhões de beneficiários ou outras medidas, como uma renda mínima para todas as crianças. A gravidade da crise, que afetou a todos, exigirá menos atritos entre os poderes e mais agilidade e rapidez dos legisladores para discutir essas agendas ainda este ano.
Vulnerabilidades
Será importante, igualmente, que o Grupo de Trabalho leve em conta as vulnerabilidades que se tornaram mais evidentes com a crise pandêmica.
A desigualdade social se tornou o “óbvio ululante”, no dizer de Nelson Rodrigues, pelos problemas de saúde, saneamento, habitação, educação e renda. A questão começou a ser atacada com o programa Bolsa Família e agora com uma renda mínima (R$600), que tenderá a ser estendida. Um programa de parceria público-privada nas outras áreas poderia começar a focalizar esse grande atraso na sociedade brasileira.
A questão da fiscalização sobre os serviços públicos, em obras públicas e requisitos sanitários e fitossanitários, em especial, deveria merecer especial atenção para melhorar a eficiência governamental em todos os níveis – federal, estadual e municipal, para dar segurança às empresas e à população.
A segurança alimentar deveria ser priorizada para superar a dependência externa de um produto estratégico por afetar a mesa de todos os brasileiros, que têm no pão e nas massas sua alimentação básica. O trigo, matéria-prima para a produção da farinha, é o único grão que não é produzido para atender plenamente ao consumo doméstico. Sessenta por cento do trigo consumido no Brasil é importado. Desse total, 85% vem de um único fornecedor, a Argentina. Impõe-se o exame de uma política nacional para o trigo que estimule a produção interna, diversificando as áreas plantadas e as variedades de sementes.
A percepção externa sobre o Brasil está afastando o país de importantes discussões nas áreas de saúde e meio ambiente. Como resultado de políticas internas nessas e em outras áreas, o soft power nacional está sendo afetado, e atitudes negativas poderão ser tomadas contrárias a nossos interesses, como poderá acontecer na ratificação de acordos comerciais. Urge levar isso em conta.
Desafios externos
O Brasil terá finalmente de superar os desafios externos no momento da recuperação do crescimento, pois nenhum país é uma ilha. A fronteira entre as políticas econômico-financeiras e comerciais globais e as políticas econômicas internas dos países desapareceu e os formuladores de políticas no Brasil não podem deixar de levar isso em conta.
A recessão global vai ser profunda e demorada. As projeções dos principais organismos internacionais (FMI, OCDE, OMC) são muito preocupantes. Nos próximos meses e anos, o mundo estará em recessão ou, na pior das hipóteses, em depressão. Em 2020, o FMI projeta forte queda do crescimento da China, 6%, nos EUA, 7%, na Alemanha, 7%, no Japão, 5% e no Brasil, entre 7% e 10%. Em 2021, dependendo da duração da pandemia, a projeção continuará a ser muito negativa. Segundo o Banco Mundial, as economias de baixa renda e dos mercados emergentes deverão continuar debilitados até cinco anos apos o início da pandemia e as medidas de confinamento associadas à doença. As consequências sobre a economia e o comércio internacional poderão ser devastadoras, com grave queda do crescimento e do desemprego global. Com isso, os efeitos da pandemia poderão ser mais duradouros e severos do que o esperado e acarretarão forte impacto no Brasil.
Nas discussões sobre as perspectivas do Brasil no médio e longo prazos, deve-se levar em conta que somos uma das dez maiores economias do mundo em termos de Produto Nacional Bruto, com o quinto território e a sexta população global.
A abertura da economia, por meio da negociação de acordos comerciais, como os negociados com a União Europeia e a Área de Livre Comércio da Europa (EFTA) deveria ser acompanhada de políticas para a reindustrialização, com medidas concretas de apoio à inovação e à tecnologia. A licitação da tecnologia 5G ainda em 2020 deverá acelerar a modernização da indústria brasileira para aproximá-la do estado da arte (4.0), hoje privilégio de menos de 2% das empresas. Por outro lado, com isso, desaparecerão empregos e novos surgirão, o que vai demandar uma ação governo-setor privado para requalificação de mão de obra.
Para não dificultar a expansão do comércio de alimentos no agronegócio, ajustes na política de meio ambiente, com medidas e ações concretas para preservar a floresta amazônica, deverão ser implementadas para evitar o risco de não ratificação desses acordos comerciais por parlamentos cada vez mais influenciados por partidos verdes contrários à aprovação de acordos com o Brasil. O plano de recuperação da União Europeia, depois da Covid-19, inclui uma política industrial e uma política ambiental (European Green Deal), que, entre outras medidas, prevê punição para empresas que importarem produtos provenientes de áreas de desmatamento florestal.
A tendência ao protecionismo deveria ser evitada internamente e combatida externamente em paralelo à implementação de uma agenda de competitividade para melhorar a performance no exterior dos produtos brasileiros, em especial os industriais.
O Brasil, no esforço de recuperação, deve procurar aproveitar as oportunidades que vão se abrir, como por exemplo, na exportação de alimentos de maior valor agregado, na inserção nas cadeias de valor agregado em vista da busca de descentralização da produção quase monopolística da China, em equipamentos médicos e produtos farmacêuticos. Impõe-se definir, acima de preconceitos ideológicos, uma estratégia de política externa e de comércio exterior com a China, segunda economia e maior importador do mundo, sem tomar partido na “guerra fria tecnológica” em curso com os EUA.
A base industrial existente no Brasil, a mais diversificada no hemisfério Sul, poderia se beneficiar de um esforço coordenado entre governo-instituições financeiras-empresas privadas para abrir mercados com objetivo de ampliar o suprimento a outros países.
Conclusão
A ausência de liderança e de uma clara visão estratégica de médio e longo prazos, levando em conta os desafios internos e externos para a condução do processo de recuperação do país, podem impedir que medidas duras sejam tomadas para fazer o Brasil superar o impacto da crise. Não existe vácuo em política. Alguém terá de ocupar esse espaço.
Será importante conseguir um consenso mínimo para agilizar a implementação de políticas e de medidas essenciais com o objetivo de retomar o crescimento, reduzir o desemprego e aperfeiçoar as funções do Estado. Não se pode esperar uma adesão de todos ao programa do governo que vier a ser aprovado, pela radicalização das posições em vista da divisão política existente hoje. Apesar disso, o interesse nacional, acima de partidos e ideologias, com visão de médio e longo prazos, deveria ser a tônica das discussões.
Caso a situação política não permita o avanço dessa agenda, a alternativa será o aprofundamento da crise econômica, política e social com a paralisia do governo federal e dos estados e municípios, com alto custo para a população.
Nada é mais difícil de executar, mais duvidoso de ter êxito ou mais perigoso de manejar do que dar início a uma nova ordem de coisas, já ensinava Maquiavel. Essa lição de realismo deveria ser seguida hoje pelos formuladores de políticas em Brasília.
Presidente e fundador do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE). É presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da FIESP, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Trigo (Abitrigo), presidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional (Cedesen) e fundador da Revista Interesse Nacional. Foi embaixador do Brasil em Londres (1994–99) e em Washington (1999–04). É autor de Dissenso de Washington (Agir), Panorama Visto de Londres (Aduaneiras), América Latina em Perspectiva (Aduaneiras) e O Brasil voltou? (Pioneira), entre outros.
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