03 abril 2020

Agências: Politização, Força do Mercado e Fragilidade do Consumidor

Ao completarem 24 anos de existência em 2020, as agências reguladoras brasileiras intensificam o uso de meios digitais – mais rápidos e mais baratos do que os convencionais – para que empresas e usuários de serviços públicos resolvam seus conflitos de consumo. Companhias que prestam serviços regulados, como energia e telecomunicações, recebem crescentes reclamações de consumidores. Os segmentos de telefonia, internet e TV por assinatura estão entre os mais criticados.
A decisão da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações), uma das 11 agências reguladoras[1] do País, de lançar o seu aplicativo Anatel Consumidor, por meio do qual se pode reclamar contra operadoras e receber retorno em até dez dias corridos, mostra o foco em canais de comunicação direta entre consumidores e empresas para a resolução de conflitos. A ferramenta também permite que o usuário reabra o chamado e avalie o atendimento. Em 2019, até outubro, as empresas de telefonia móvel receberam mais de 1,2 milhão de reclamações. Queixas também se voltam contra prestadores de outros serviços: bancos, financeiras e administradoras de cartão.
Um dado positivo é que os canais de reclamações das agências se somam a outras iniciativas do governo. A plataforma Consumidor.gov [2], por exemplo, criada em 2014, teve a adesão da Anatel e da Anac, que estariam conseguindo taxa de sucesso elevada na resolução de problemas.
Com esse preâmbulo, busco salientar a importância do cidadão na finalidade das agências reguladoras brasileiras, responsáveis por intermediar os interesses entre mercado, governo e consumidores com base em pareceres técnicos.
Nesse contexto, nunca é demais destacar que a concorrência leal e o equilíbrio setorial são meios, não a finalidade das agências. É o consumidor quem deve nortear as ações dessas autarquias especiais de direito público. Em síntese, não deveria haver assimetria entre o vigor do mercado e a fragilidade do consumidor. Isso, porém, acontece, e a principal causa é a politização das agências, o que acarreta perda de prioridade de critérios técnicos na regulação de serviços públicos e, em consequência, enfraquecimento da confiança do cidadão.
O início da regulação e o marco regulatório de 2019
 As agências reguladoras foram criadas em 1996, no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, que implementou um programa de reforma do Estado e de regulação das atividades privatizadas.
O modelo que inspirou as nossas agências foi o dos EUA após o New Deal[3], quando lá foi necessária uma forte regulação estatal para lidar com o liberalismo econômico da época. O Brasil, ao contrário, vinha de uma economia estatizante e precisava regular as novas atividades privadas.
O modelo brasileiro, porém, se afastou daquele que o inspirou, porque aqui o governo federal não abre mão de influir nas agências.
Há muita discussão sobre interferência política nas agências, despreparo dos seus dirigentes, insegurança jurídica para as empresas e piora na prestação de serviços regulados. São muitos os desafios, entre eles o de regular os serviços da 5ª geração da internet e o aumento na produção de energia solar. Neste e nos próximos anos, além do 5G, irá se falar muito de saneamento básico, concorrência no setor de aviação civil e serviços ligados à inteligência artificial.
Debate
Órgãos essenciais que definem regras para a exploração de atividades por empresas privadas em setores que representam cerca de 60% do Produto Interno Bruto (PIB), as agências estão se adequando aos tempos atuais.
Em 2019, houve debates importantes no Legislativo sobre mudanças na lei geral das agências e a sanção pelo presidente Bolsonaro da nova legislação (Lei 13.848). Na ocasião, notou-se preocupação com a necessidade de equilíbrio entre os interesses privados e o cumprimento de obrigações com os consumidores.
Destaco as declarações da senadora Simone Tebet (MDB-MS), presidente da Comissão de Constituição e Justiça. Segundo ela, pela natureza da atividade, a influência das agências reguladoras está em toda parte. Justamente por isso elas devem se dedicar a atender ao interesse coletivo.
“A nossa vida, como ela é, depende de como as agências reguladoras atuam. Elas estão no cotidiano das nossas vidas, nas viagens, nas luzes da nossa casa, nas filas de remédio, no abastecimento do carro, no celular. Controlam a vida, a atividade, os serviços, o consumo dos brasileiros”, diz.
Para a senadora, entretanto, “a ação das agências tem privilegiado as vontades do lado mais forte nas relações de serviços e consumos, que é o das empresas”. Alguns exemplos que se encaixam nessa definição, na visão de Tebet, são a permissão concedida para cobrança de bagagens pelas empresas aéreas, a flexibilização do valor de coparticipação nos planos de saúde e a autorização para que companhias elétricas aumentem as faturas acima da inflação. Essas informações constam de material divulgado pela Agência Senado.
Interferência do governo
 Outro ponto importante do debate entre o Executivo e o Legislativo foi a interferência do governo na vida das agências. Isso ficou claro na declaração do presidente Bolsonaro, para quem parlamentares querem transformá-lo em uma “rainha da Inglaterra”, ou seja, tirar sua função de chefe de governo. Simone Tebet rebateu: “Bolsonaro comete um equívoco, já que o texto exige apenas critérios técnicos e comprometimento público, além de impedir que cargos sejam usados para barganhar a aprovação de projetos relevantes para o país”. Vetar o texto, segundo a senadora, iria contra o que Bolsonaro prometeu durante a campanha eleitoral.
“A não ser que o senhor presidente da República tenha uma meia dúzia de compadres para empregar e tenha junto com essa meia dúzia de compadres dívidas de campanha para pagar com os setores fiscalizados pela agência. Somente assim é que ele quer fazer livremente a nomeação, sem o regramento que está estabelecido no projeto de lei”, disse a senadora.
O marco regulatório tem origem no PLS 52/2013, aprovado pelo Senado em maio de 2019. O texto atualiza regras de gestão, organização, processo decisório e controle social das agências; dispõe sobre a indicação de dirigentes; uniformiza o número de diretores, seus prazos de mandato e normas de recondução. Também cria requisitos técnicos a serem cumpridos por todos os indicados aos conselhos diretores.
O presidente Jair Bolsonaro vetou o artigo que previa a escolha de dirigentes por meio de lista tríplice. [4] Para o Planalto, é prerrogativa do Executivo nomear os dirigentes desses órgãos. Esse gesto recebeu desaprovação, assim como a pressão sobre a Aneel para abrir mão da proposta de reduzir incentivos a quem produz energia por meio de painéis solares.
Carlos Ari Sundfeld, especialista em direito da regulação da FGV de São Paulo, é um dos que criticam a politização das agências: “A decisão da Aneel foi tomada com base em estudos e pareceres técnicos. Essa é a forma de trabalho das agências reguladoras”. Tal decisão tinha força para acabar com subsídios a grandes empreendedores, principalmente do agronegócio, que geram excedentes de energia e não pagam impostos na transmissão e na distribuição, diz Sundfeld. “Com a interferência, o presidente mantém o subsídio, o que é uma distorção. Se o país quer incentivar energia solar, que coloque isso no Orçamento”, sugere.
A literatura sobre as agências reguladoras mostra exemplos famosos de interferência de governos. A última e polêmica foi sobre taxação da energia solar[5]. Outra opinião crítica a respeito dessa decisão de Bolsonaro é de Fernando Franco, presidente da Associação Brasileira das Agências de Regulação (Abar).  “A maior autoridade do país não pode contradizer o parecer técnico de uma agência reguladora, como aconteceu com a Aneel, pois passa um recado de que não é positivo”, afirma, reforçando: “O governo precisa confiar nas agências”. Franco defende uma regulação forte diante da política econômica liberal do governo Bolsonaro.
O experiente professor Jerson Kelman, ex-presidente da Aneel e da Agência Nacional de Águas, adverte que as agências reguladoras devem ser instituições do Estado, acima de governos. Ele escreveu em seu livro “Desafios do Regulador”: “Se uma agência fosse uma entidade de governo, haveria o risco de que o interesse de longo prazo dos consumidores viesse a ser sacrificado em favor do interesse de curto prazo do governo de plantão”. [6]
Avanços
Quem pesquisar o tema das agências verá que a legislação atual (Lei 13.848/2019) altera leis de 1997, 1999, 2000, 2001 e 2005. Nessas modificações, tem havido avanços, como “revestir a função normativa da administração de lastro democrático, ao determinar a consulta, ao passo que a Lei 13.655/18, lei geral que é, apenas a faculta, remetendo ao gestor a análise da conveniência da medida no caso concreto”. Essa observação é da advogada Cristiana Fortini, em artigo na Revista Consultor Jurídico de 27 de junho de 2019.
Outro aspecto positivo da Lei 13.848/2019, segundo ela, é a obrigatoriedade de consulta pública, prévia à tomada de decisão pela criação ou alteração de atos normativos de interesse geral. Com isso, “adiciona-se importante passo no sentido da permeabilidade estatal”. Fortini também nota que “há, sem dúvidas, com a publicação da nova lei, a pretensão de tornar as agências reguladoras entes permeáveis à participação externa, com a consagração de mecanismos próprios a este fim, como as consultas e audiências públicas, além da maior transparência e publicidade de seus atos. “De um lado, expõe-se as agências aos reclames dos agentes privados, consumidores e usuários. De outro, enrijece-se sua autonomia funcional e financeira para que as autarquias não sejam premidas por pressões políticas ou setoriais”, destaca a advogada.
Conclusão
Vários doutrinadores entendem que o consumidor é a peça chave para o bom desempenho do órgão regulador e que a missão das agências reguladoras não é apenas regular e fiscalizar o mercado, mas sim, atuar de modo eficaz para a defesa e proteção do usuário.
De acordo com o professor da FGV-SP, Carlos Ari Sunfeld, um dos objetivos relevantes das agências reguladoras é definir as obrigações dos prestadores de serviços em relação aos consumidores. Para ele, é difícil concretizar tal tarefa devido à “grande margem de deliberação e tensões”. Ele entende que tais agências, muitas vezes, decidem de forma contrária à defesa dos consumidores.[7]
A Constituição de 1988, conhecida como a “Constituição Cidadã”, sempre é mencionada quando o assunto é direitos dos consumidores. A carta magna determina, no parágrafo terceiro do artigo 37, que “a lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta (…)”. A Constituição dispõe que a participação popular será refletida nas reclamações referentes aos serviços públicos em geral, na qualidade dos serviços, no acesso dos usuários a registros administrativos e em informações sobre a administração pública, em especial quando se refere às agências reguladoras.[8]
É sempre importante lembrar essa determinação constitucional no debate sobre as agências. O jurista Joaquim Falcão é um dos especialistas atentos à importância do respeito aos consumidores. “É insuficiente a participação deles nas audiências e nas consultas públicas”, diz. Falcão enxerga um caminho para o fortalecimento dos usuários. Ele considera que a união entre a opinião pública e a mídia exerce um poder muito mais forte do que uma audiência pública. “A divulgação  que os meios de comunicação fazem da insatisfação dos consumidores, os rankings de empresas mais reclamadas, os baixos índices de resolução de reclamações, o uso de sites para divulgar más práticas de consumo, tudo isso, somado à pressão da própria opinião pública, tem maior impacto e efetividade nas decisões tomadas pelas agências e no comportamento das empresas”.[9]
Nesse contexto, merecem ser valorizados o serviço público gratuito consumidor.gov.br, canal utilizado por agências como Anac e Anatel para reduzir conflitos entre empresas e consumidores, bem como o aplicativo Anatel Consumidor.
São Paulo, 08/03/2020.


Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações, Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), Ancine (Agência Nacional do Cinema), Anac (Agência Nacional de Aviação Civil), Antaq (Agência Nacional de Transportes Aquaviários), ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres), ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis), Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), ANA (Agência Nacional de Águas) e ANM (Agência Nacional de Mineração).
[1]
O que é Consumidor.gov.br? O Consumidor.gov.br é um serviço público e gratuito que permite a interlocução direta entre consumidores e empresas para solução alternativa de conflitos de consumo pela internet. Não constitui um procedimento administrativo e não se confunde com o atendimento tradicional prestado pelos Órgãos de Defesa do Consumidor. Sendo assim, a utilização desse serviço pelos consumidores se dá sem prejuízo ao atendimento realizado pelos canais tradicionais de atendimento do Estado providos pelos Procons Estaduais e Municipais, Defensorias Públicas, Ministério Público e Juizados Especiais Cíveis.
A principal inovação do Consumidor.gov.br está em possibilitar um contato direto entre consumidores e empresas, em um ambiente totalmente público e transparente, dispensada a intervenção do Poder Público na tratativa individual.
Os dados das reclamações registradas no Consumidor.gov.br alimentam uma base de dados pública, com informações sobre as empresas que obtiveram os melhores índices de solução e satisfação no tratamento das reclamações, sobre aquelas que responderam as demandas nos menores prazos, entre outras informações. O desempenho das empresas participantes pode ser monitorado a partir do link Indicadores.
Por meio da aba Relato do Consumidor, é possível ler o conteúdo das reclamações, respostas das empresas e comentário final dos consumidores, sendo, inclusive, possível realizar pesquisas por: palavras-chave, segmento de mercado, fornecedor, dados geográficos, área, assunto, problema, período, classificação (resolvida / não resolvida/ não avaliada) e/ou nota de satisfação, entre outros filtros.
E, clicando em Dados Abertos, é possível obter os dados atualizados que alimentam os indicadores da plataforma, em formato aberto, o que permite a qualquer interessado promover a elaboração de inúmeras análises e cruzamentos eventualmente não contemplados pelas consultas disponíveis na plataforma.
O Consumidor.gov.br fornece informações essenciais à elaboração e execução de políticas públicas de defesa dos consumidores, bem como incentiva a competitividade no mercado pela melhoria da qualidade de produtos, serviços e do atendimento ao consumidor. Esse serviço é monitorado pela Secretaria Nacional do Consumidor – Senacon – do Ministério da Justiça, Procons, Defensorias Públicas, Ministérios Públicos, Agências Reguladoras, entre outros órgãos, e também por toda a sociedade. 
[1]
O New Deal (Novo Trato ou Novo Pacto) foi um conjunto de medidas econômicas e sociais para resolver a Crise de 1929 (superprodução e especulação financeira) nos EUA. O plano visava à recuperação da economia, principalmente por meio do aumento de investimentos, empregos e consumo.
[1]
A nova lei também criou um novo instrumento, denominado Análise de Impacto Regulatório (AIR), exigível quando houver a adoção ou propostas de alteração de atos normativos de interesse geral dos agentes econômicos, consumidores ou usuários dos serviços prestados. Com a implementação da AIR, as demandas regulatórias serão identificadas e analisadas, buscando o entendimento entre as causas e consequências dos problemas, considerando um maior número de soluções para a demanda, sem olvidar os impactos das decisões consideradas viáveis. Trata-se de importante provisão, pois a AIR já era adotada por algumas agências, como a Anvisa, mas não de forma homogênea e sistematizada. https://www.ricardoalexandre.com.br/breves-comentarios-da-lei-13-848-2019-lei-geral-das-agencias-reguladoras-parte-1/, acesso em 11/02/2020.
[1]
O presidente Jair Bolsonaro publicou um vídeo na noite do dia 5 de janeiro sobre sua posição contrária à taxação da energia solar. Segundo ele, “no que depender da Presidência da República, não haverá taxação da energia solar e ponto final”.
[1]
Jerson Kelman. Desafios do Regulador. Synergia Editora, RJ. 2009.
[1]
Disponível em: https://jhulykbjos.jusbrasil.com.br/artigos/726883762/agencias-reguladoras-e-sua-importancia-para-o-consumidor, acesso em 04/03/2020.
[1]
Disponível em: https://jhulykbjos.jusbrasil.com.br/artigos/726883762/agencias-reguladoras-e-sua-importancia-para-o-consumidor, acesso em 04/03/2020.
[1]
Raymundo Magliano Filho, Um Caminho para o Brasil – A Reciprocidade entre Sociedade Civil e Instituições, São Paulo, editora contexto, 2017.   

Maria Helena Tachinardi é jornalista, editora da Revista Interesse Nacional.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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