20 dezembro 2021

Análise sobre a regulação da Inteligência Artificial no Brasil

O advogado Marcelo Tostes escreve que quando o assunto é “inteligência artificial”, o futuro nunca esteve tão perto. “Em essência, busca-se a tecnologia cognitiva para solucionar problemas que até hoje não puderam ser resolvidos pela mente humana, ou para potencializar o alcance de soluções que hoje têm escopo limitado”. Dito isso, ele defende que a promoção da confiança é a chave para compreender o papel do Direito no desenvolvimento de inteligência artificial: “A dimensão regulatória do Direito pode atuar tanto na promoção do mencionado potencial benéfico, quanto na limitação dos riscos associados às novas tecnologias”. A premissa da regulação, entretanto, deve ter caráter transversal, diverso e internacional da tecnologia.

Quando o assunto é inteligência artificial, o futuro nunca esteve tão perto. Para partir do conceito da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o termo “sistema de inteligência artificial” pode ser entendido como um sistema baseado em máquina, projetado para operar com vários níveis de autonomia, que pode, para um determinado conjunto de objetivos definidos pelo ser humano, fazer previsões, recomendações ou tomar decisões que influenciam ambientes reais ou virtuais. Em essência, busca-se a tecnologia cognitiva para solucionar problemas que até hoje não puderam ser resolvidos pela mente humana, ou para potencializar o alcance de soluções que hoje têm um escopo limitado.

Esse fenômeno não é difícil de perceber, embora as máquinas definitivamente não sejam aquilo que foi imaginado nas mais utópicas ou distópicas ficções científicas. A facilidade com a qual essas tecnologias foram implementadas na vivência diária não deixa transparecer, porém, a enorme complexidade atrelada ao seu desenvolvimento, funcionamento e constante revisão.

IA: revolucionando procedimentos e produtos

Os impactos das tecnologias cognitivas já estão presentes na Administração Pública, concretizando o postulado constitucional da eficiência. Segundo o Conselho Nacional de Justiça, atualmente há 64 projetos de inteligência artificial em funcionamento ou implementação em 47 tribunais do País. A Câmara dos Deputados conta, por exemplo, com o sistema Ulysses para gestão e automatização de atividades administrativas. A própria plataforma gov.com, do Governo Federal, já utiliza inteligência artificial para identificar quais serviços serão de maior interesse do cidadão.

Noutro giro, a utilização mais comum em empresas é a automatização de procedimentos, já que se apresenta como uma forma de alocar o tempo dos funcionários e gestores para atividades com maior valor agregado. Uma pesquisa conduzida pela Harvard Business Review demonstrou que 54% do tempo dos gerentes de empresas era ocupado com atividades de controle e coordenação administrativas e somente 10% em análise de soluções estratégicas e inovação no setor. Um gerente auxiliado por um sistema de inteligência artificial, que execute o serviço de controle e coordenação administrativa, terá maior tempo à sua disposição para empregar sua experiência e maturidade na estruturação e integração estratégica do seu setor.

A automatização é o exemplo mais simples, e talvez por isso mais democrático, do uso de inteligência artificial para promover maior eficiência no back office. Porém, em alguns setores específicos da economia já fica claro que a integração de tecnologias cognitivas ao produto ou serviço prestado se tornou premissa para disputar o mercado. É o caso, por exemplo, do setor financeiro: inteligência artificial já tem sido utilizada para seleção, alocação e gestão de ativos e pode, recorrendo à tecnologia do machine learning, identificar padrões nas condições de mercado e executar operações sem intervenção humana.

A inteligência artificial também está alcançando setores que, tradicionalmente, são pouco digitais, mas que têm enorme impacto no PIB nacional. No setor agrícola, por exemplo, o uso de tecnologia cognitiva é a próxima etapa da Revolução Verde: permite gerir as lavouras com extrema precisão, com máquinas coletando dados sobre quantidade de luz, umidade, dióxido de carbono e temperatura e, a partir desses dados, tomar decisões não só sobre a quantidade, mas também sobre a forma e modo de alocação dos insumos. A implementação de soluções de inteligência artificial nessa área pode impulsionar ainda mais o protagonismo brasileiro no cenário das commodities agrícolas.

Nas entidades privadas ou públicas, nas operações de back office ou no produto final, em setores altamente digitalizados ou em setores ainda muito tradicionais, o sucesso e eficiência de governos, empresas e negócios certamente passará pelo uso de tecnologias cognitivas.

Confiança e IA: qual é o papel do Direito?

O sociólogo Niklas Luhmann explica que a confiança é um vetor de redução de complexidade social na medida em que possibilita e torna atrativas hipóteses que, sem confiança, não seriam nem consideradas. Em essência, confiar é se portar como se o futuro fosse certo, o que só é possível num contexto de familiaridade. Para além da familiaridade, alguns outros pontos têm sido descritos como fundamentais na promoção do uso confiável, consciente e competitivo da tecnologia no caso da inteligência artificial, como transparência, privacidade e proteção de dados, respeito aos direitos humanos e aos valores democráticos.

A promoção da confiança é chave para compreender o papel do Direito no desenvolvimento de inteligência artificial. Já ressaltou a OCDE, na recomendação publicada em 2019, que a confiabilidade dos sistemas será essencial para a difusão da adoção de soluções de inteligência artificial, e que um debate público informado é necessário para “capturar o potencial benéfico da tecnologia, enquanto se limita os riscos a ela associados”.

A dimensão regulatória do Direito pode atuar tanto na promoção do mencionado potencial benéfico, quanto na limitação dos riscos associados às novas tecnologias. É preciso, no entanto, que se tenha clareza quanto ao papel e às possibilidades do Direito como instrumento de regulação. Considerando o cenário de rápido desenvolvimento digital, é essencial que se mantenha uma estrutura regulatória que preserve os incentivos econômicos para a inovação. O que se busca do Direito é a garantia de um marco comum de parâmetros e princípios a partir da qual se desenvolverá e aplicará a tecnologia cognitiva. Em essência, uma base que promova a confiança dos desenvolvedores e investidores, assim como dos usuários e da população em geral na inteligência artificial.

A experiência regulatória internacional

Os Estados Unidos lançaram, em 2018, um relatório sobre o futuro da inteligência artificial e a estratégia para desenvolvimento do setor, especialmente no que tange ao financiamento público. Há algumas iniciativas legislativas tramitando no Congresso Nacional, voltadas especificamente para nomeação de comitês com competência para produzir relatórios sobre os impactos da inteligência artificial em setores variados. Apesar da ausência de regulação vinculante de caráter geral, alguns estados americanos já aprovaram legislação sobre aplicação de inteligência artificial em contextos que têm sido objeto de intenso debate público, como o caso dos carros autônomos.

Desde 2017, a União Europeia também trabalha uma série de iniciativas para o desenvolvimento de uma estratégia de promoção de inteligência artificial. A General Data Protection Regulation foi um marco relevante na medida para temática que, ainda que não tenha normas específicas sobre inteligência artificial, contém disposições que diretamente afetaram essa indústria, cujo modelo de negócios é inteiramente baseado em dados. Normas setoriais importantes, que regulam especificamente o uso de sistemas de inteligência artificial, também foram aprovadas no Bloco, como a EU Markets in Financial Institutions Directive n. 2. A União Europeia se distinguiu no cenário regulatório global ao apresentar, em 2021, o Artificial Intelligence Act, que constituiria a primeira norma geral vinculante sobre o tema.

Na linha da experiência internacional, enunciam-se no Brasil as primeiras estruturas regulatórias não vinculantes por via de políticas nacionais de promoção do desenvolvimento e utilização de inteligência artificial. No final de 2019, teve início a construção da Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial – Ebia, que viria a ser publicada em 2021. Entre outros, a Ebia traça cinco linhas gerais para a temática: crescimento inclusivo, desenvolvimento sustentável e bem-estar; valores centrados no ser humano e na equidade; transparência e explicabilidade; robustez, segurança e proteção; e responsabilização.

A aprovação da Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD, coloca o Brasil na condição de debater, no nível legislativo, a temática da inteligência artificial. Isso porque as tecnologias cognitivas tomam decisões com suporte nos dados que coletam do ambiente e são treinadas para tomar essas decisões a partir de testes em bases de dados. Tudo gira, então, em torno dos dados. Assim, a princípio, o Brasil estaria preparado para iniciar o debate sobre a regulação da Inteligência Artificial.

Porém, é necessário ir além, para endereçar desafios particulares às tecnologias cognitivas, como por exemplo, a segurança digital, a discriminação por algoritmos enviesados, os parâmetros éticos para o funcionamento da tecnologia, as possíveis influências no mercado de trabalho e ainda a responsabilidade civil em caso de danos causados por máquinas dotadas de cognição.

Foi aprovado na Câmara dos Deputados, em 2021, o Projeto de Lei 21/2020, que propõe a criação de uma base legislativa geral e vinculante para regular os sistemas de inteligência artificial no País. O debate segue agora no Senado, e a aprovação de uma legislação nesses moldes seria um feito inédito no globo, que vê os debates ainda em nível de proposição legislativa, como no caso da União Europeia. Em linhas gerais, o projeto e seus apensos abordam os principais pontos necessários à regulação inicial da Inteligência Artificial. É necessário introduzir conceitos e atores, atribuir-lhes direitos e deveres, e orientá-los concretamente com uma principiologia específica. Por fim, é importante estabelecer parâmetros para responsabilização e diretrizes de atuação do poder público. Porém, é necessário ainda ressaltar alguns pontos.

Tendo em vista o que tem sido debatido na União Europeia, é importante adotar uma estratégia regulatória orientada pelo risco, distinguindo o que será considerado aceitável do que será considerado inaceitável, ou ainda de alto risco. Essa categorização parte da premissa de que a proteção deve ser diretamente proporcional ao risco gerado pela tecnologia cognitiva. O tópico tangencia também o debate sobre o nível de controle humano que se exigirá de sistemas mais ou menos complexos, com maior ou menor grau de interferência em questões sensíveis. É muito claro, por exemplo, que o filtro de spam do e-mail oferece reduzido risco e, em geral, não envolve questões sensíveis. É diferente, por exemplo, dos riscos envolvidos em um sistema de decisão automatizada sobre benefícios previdenciários. Apesar de todos esses exemplos envolverem inteligência artificial, as normas a eles aplicáveis não precisam ser as mesmas.

Conclusão

A premissa da regulação deve sempre ser o caráter transversal, diverso e internacional da tecnologia. É inviável pretender uma regulação central, particular e fixa para cada uma das milhares de possíveis aplicações. Cabe ao poder público estabelecer um marco, principiológico e compreensivo, a partir do qual poderão ser desenvolvidas normas setoriais flexíveis, com a participação de agentes privados e representantes da sociedade civil, adaptadas às distintas áreas de aplicação na medida em que forem se aprimorando as soluções tecnológicas. Ao fazê-lo, assumirá, de forma consistente, a vanguarda da regulação de inteligência artificial, impulsionando o cenário nacional de desenvolvimento e aplicação de tecnologias cognitivas.


Referências:

CÂMARA DOS DEPUTADOS. Consultoria Legislativa da Câmara utiliza inteligência artificial para agilizar trabalhos. Câmara dos Deputados: institucional. Disponível em: https://www.camara.leg.br/assessoria-de-imprensa/568452-consultoria-legislativa-da-camara-utiliza-inteligencia-artificial-para-agilizar-trabalhos/. Acesso em 29 nov. 2021.

KOLBJORNSRUD, Vegard; AMICO, Richard; THOMAS, Robert J. How Artificial Intelligence will Redefine Management. 02 nov. 2016. Disponível em:
https://hbr.org/2016/11/how-artificial-intelligence-will-redefine-management. Acesso em 29 nov. 2021.

LUHMANN, Niklas. Trust and power. Londres: Pitman Press, 1985, p. 20.
ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO. Artificial intelligence, machine learning and big data in finance. Opportunities, challenges and implications for Policy Makers. 2021, p. 16 e ss. Disponível em: https://www.oecd.org/finance/artificial-intelligence-machine-learning-big-data-in-finance.htm. Acesso em 29 nov. 2021.

ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO. Recomendação do Conselho sobre Inteligência Artificial. OCDE/LEGAL/0449, adotada em 21 de maio de 2019. Disponível em: < https://legalinstruments.oecd.org/en/instruments/OECD-LEGAL-0449>. Acesso em 29 nov. 2021.

SEPRO. Gov.br agora recomenda conteúdo aos usuários. SEPRO. Disponível em:
https://www.serpro.gov.br/menu/noticias/noticias-2021/gov-br-recomenda. Acesso em 29 nov. 2021.


É sócio fundador do Marcelo Tostes Advogados. Graduado em Direito pela PUC Minas, atua como palestrante em áreas do Direito, Inovações e Soluções tecnológicas para o jurídico e Liderança

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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