08 janeiro 2020

Anos 2020, Antecedentes e Agendas

A agenda desta reflexão é conduzida por uma pauta central: o tempo. Fui convidado a pensar sobre as perspectivas político-econômicas para 2020, considerando-se os acontecimentos recentes e fatos decisivos do próximo ano.
Para Santo Agostinho, nas suas Confissões, “talvez fosse próprio dizer que os tempos são três: presente das coisas passadas, presente das presentes, presente das futuras. Existem, pois, estes três tempos na minha mente que não vejo em outra parte: lembrança presente das coisas passadas, visão presente das coisas presentes e esperança presente das coisas futuras”.

A agenda desta reflexão é conduzida por uma pauta central: o tempo. Fui convidado a pensar sobre as perspectivas político-econômicas para 2020, considerando-se os acontecimentos recentes e fatos decisivos do próximo ano.
Para Santo Agostinho, nas suas Confissões, “talvez fosse próprio dizer que os tempos são três: presente das coisas passadas, presente das presentes, presente das futuras. Existem, pois, estes três tempos na minha mente que não vejo em outra parte: lembrança presente das coisas passadas, visão presente das coisas presentes e esperança presente das coisas futuras”.
Antecedentes presentes
Primeiramente, é preciso deixar claro que alguns traços que nos trouxeram até aqui não são de um governo ou de um período pequeno de tempo. Têm a ver com a nossa história. A baixa mobilidade social e a desigualdade, marcas perversas no presente, remontam a uma sociedade constituída sobre o escravagismo.
Vivemos num País que sustenta uma distância abissal entre quem tem acesso à instrução e aos bens e serviços do progresso e aqueles empobrecidos que quase nada têm para subsistir. E para agravar essa calamidade, a possibilidade de um brasileiro que nasce numa família pobre ascender a uma outra posição socioeconômica é quase nula, nas condições estruturais que temos vigentes hoje.
Isso tem muito a ver com a estrutura de Estado que vem sendo historicamente montada. Para não nos afastarmos tanto na linha do tempo, basta olharmos para o getulismo, a ditadura militar e a Constituinte e perceberemos o vulto fortalecido de um Estado concentrador de renda e de oportunidades, promotor de desigualdades.
Nesse modelo injusto de organização da estrutura governativa, sustentam-se desde a oferta precária da educação básica, passando pela constituição de insustentáveis sistemas tributário e previdenciário, até a manutenção de inconcebíveis privilégios nas corporações de Estado.
A minha visão é que chegamos ao final desse ciclo. Estamos num fim melancólico produzido por absoluta crise de sustentabilidade fiscal. Não há recursos públicos suficientes para financiar essa estrutura governativa, cara, injusta e ineficiente.
Essa terrível combinação estrutural, de uma máquina de governo de mecanismos produtores de desigualdades e privilégios, somou-se a uma série de fatores, e o que tivemos foi um processo eleitoral em 2018 esvaziado do estrito senso político.
O Brasil, depois de um ciclo de potente crescimento, originado lá no Plano Real e turbinado pelo boom das commodities, entrou numa grave recessão. Com o equivocado manejo da política econômica aprofundando a crise de 2008/2009, vivemos uma brutal crise no emprego e na geração de renda, incrementando a tragédia nacional de desigualdade e empobrecimento das camadas historicamente marginalizadas da população.
Some-se a essa cena o déficit de lideranças políticas que vem assolando o País já há algum tempo. Há um vácuo crescente de líderes que pensem, formulem e inspirem a modernização do Brasil em termos contemporâneos nos aspectos políticos, econômicos e socioculturais.
Deve-se também inserir nesse rol de complexidades o fato, vivido planetariamente, de crise da democracia liberal, em tempos de alta conectividade digital em rede.  Como bem formulado por Manuel Castells, “na raiz da crise de legitimidade política está a crise financeira, transformada em crise econômica e do emprego, que explodiu nos Estados Unidos e na Europa no outono de 2008”.
Como diz o pensador, essa crise política é global, mas ela também tem suas colorações nacionais. A brasileira, por exemplo, se agravou assustadoramente por uma série de equívocos na gestão de políticas econômicas, em ambiente atravessado por práticas de corrupção endêmicas. Esse conjunto explosivo nos jogou no fosso da mais grave recessão econômica de nossa história e só fez ampliar o descrédito da política.
Nesse turbilhão de fatores desconcertantes da vida nacional, tivemos um processo eleitoral que não debateu o País, suas questões e suas oportunidades. Em vez de política genuína, tivemos embates de extremismos com conteúdos desimportantes à cidadania e ao desenvolvimento, dinamizados por redes sociais alimentadas por fake news, ódio e intolerância.
Olhar para frente é pesar e pensar tudo isso na balança e no livro histórico de uma nação, cujo povo merece muito mais do que tem vivido, em séculos. É buscarmos eleições em 2020 dignas de serem chamadas de democrático-republicanas, centradas que devem ser em ideias e em meios de se fazer prevalecer o bem-estar e os interesses comuns, em ambiente de liberdade, igualdade e fraternidade.

Agendas 

Reformas – Nessa impositiva caminhada de reinvenção democrático-republicana nacional, precisamos fazer avançar as reformas estruturantes do Estado brasileiro. É preciso reconstruir nossa máquina governativa, em todos os seus estratos.
É preciso mudar a vocação de nosso Estado, fazendo de suas principais potencialidades não a promoção de privilégios e desigualdades, mas a indução de prosperidade para todos.
Precisamos que a reforma vá além de ajustes no mapa de arrecadações e responsabilidades governativas. Historicamente, temos um Estado ineficiente para comprar, contratar e remunerar. Assim, precisamos modernizar as máquinas de governo, dando-lhes capacidade de resposta, possibilitando-lhes agilidade nas entregas e fixando custos compatíveis com a realidade brasileira.
Nessa jornada também é preciso digitalizar os governos, seja para promover o reencontro do modus operandi das institucionalidades com o modus vivendi da sociedade, seja para infundir qualidade, eficiência e resolutividade às máquinas públicas, seja para conectar os governos ao mundo contemporâneo em que o universo da produção já opera há muito.
Bioeconomia – Temos grande força produtiva vinda do campo e de laboratórios de ponta, ao mesmo tempo em que estima-se que o País possua cerca de 12% da disponibilidade de água doce do planeta e tem 67% do território coberto por vegetação nativa. É inegável que o Brasil tem um potencial ambiental enorme e não pode desperdiçá-lo. Se se tiver um olhar estratégico para o tema, esta será uma agenda na qual o Brasil será protagonista.
A floresta em pé tem muito valor, inclusive para girar a economia. As florestas são responsáveis por remover e estocar carbono, além de conservar solo e água. Servem de habitat para a biodiversidade. Tudo isso contribui para um regime de chuvas e clima mais estáveis. As florestas mantêm a fertilidade do solo, evitam pragas e doenças, dentre outros aspectos que impactam as atividades de uso da terra, como o agronegócio.
Este é o momento de setores que trabalham de maneira moderna, com recursos próprios e alinhados ao conceito de bioeconomia. Por exemplo, a indústria de árvores cultivadas para fins industriais, um setor nacional competitivo e integrado às cadeias globais, tem investimentos de R$ 32 bilhões previstos até 2023. Esse setor, aliás, é crucial para a entrega de produtos renováveis, biodegradáveis e contribui com o Brasil nas metas do Acordo de Paris e dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODSs) da Agenda 2030 da ONU, por trabalhar com cuidado em cada etapa do processo, sempre mitigando a emissão de CO2.
Isto é fundamental para uma economia de baixo carbono. O mercado de carbono, inclusive, com uma política clara e bem definida, pode estimular o setor produtivo e, principalmente, os pequenos produtores a atuar como indutores da economia de baixa emissão de CO2 e pode ajudar o País a conquistar a liderança neste quesito também. Devido a isso, o Artigo 6 do Acordo de Paris, muito discutido na COP25, ganhou tanta importância, pois regulamenta internacionalmente o mercado de carbono.
Até mesmo setores fundamentais, como o energético, devem fazer mais pelo meio ambiente neste cenário econômico moderno. Atualmente, grande parte da geração de energia ainda é proveniente de fontes não renováveis. Precisamos mudar este panorama. As energias solar e eólica estão no centro desta transformação, mas serão necessários mais esforços. Esses sistemas já demonstraram sua capacidade e eficiência. Juntos, representaram 10,2% da geração de energia elétrica no Brasil em 2018. Para ir além, é necessário olhar alternativas complementares. Resíduos florestais, carvão vegetal, entre outros produtos e subprodutos de florestas cultivadas para fins industriais, aparecem como fontes confiáveis, pois são de origem correta e possibilitam provisionamento de volume e despacho de matéria-prima.
Os desafios são grandes, mas as oportunidades são diversas. É importante que esta seja a visão para todos os serviços. É o momento de o País deixar de lamentar pelos erros passados e trabalhar para se desenvolver.
Nosso atraso em infraestrutura é grande. Rodovias, portos e aeroportos mal-cuidados, além das ferrovias que foram abandonadas há décadas são grandes exemplos. Também vale lembrar que estamos defasados na transmissão de dados, e o saneamento, um direito básico, não atende a todos os brasileiros. Não temos mais tempo a perder e precisamos avançar. O poder de investimento público é baixo? A iniciativa privada deve ser acionada para parcerias que possibilitarão desenvolvimento.  Cabe ao Estado garantir uma regulamentação clara e segurança jurídica.

Educação – Quando se fala em emancipação cidadã e desenvolvimento social e econômico efetivo, há duas palavras que são absolutamente relevantes e que, indiscutivelmente, se complementam, fazendo parte uma do universo da outra. São elas Educação e Oportunidade.
As palavras do ex-presidente norte-americano Abraham Lincoln acerca do que deve ser um governo são exatas para classificar o sentido político da palavra oportunidade. Disse Lincoln que o objetivo essencial do governo é “elevar a condição dos homens […] para permitir um começo a todos e uma chance justa na corrida da vida”.
Nosso Mario Quintana, que vinculou o conceito de democracia à garantia de acesso igualitário às oportunidades, poetizou: “Democracia? É dar a todos o mesmo ponto de partida. Quanto ao ponto de chegada, isso depende de cada um”.
O que garante “um começo a todos e uma chance justa na corrida da vida”, assim como permite “dar a todos o mesmo ponto de partida” é precisamente a educação.
Esta é a janela de oportunidade que se abre para um horizonte de emancipação humana. Do ponto de vista coletivo, é um dos principais requisitos para a construção de um Brasil mais justo e igualitário.
Outro fator ligado à educação que merece ser ressaltado é o valor que ela tem num modo de produção baseado no saber. No capitalismo atual, todas as atividades dependem de informação, tecnologias e conhecimento para se tornarem competitivas e qualificadas.
Se, no passado, a instrução era importante para vencer a ignorância, hoje, a formação atualizada e acessível a todos é desafio para a garantia da igualdade de oportunidades. Além disso, combinada com investimentos em ciência e tecnologia, é fator decisivo para a competitividade econômica.
Entre os imensos desafios do País nessa área, podemos listar déficits nas políticas educacionais de aprendizagem, nas estratégias de gestão, tanto institucional quanto escolar, e também na articulação entre os entes federados.
É preciso garantir acesso, permanência e aprendizagem a todas as crianças e jovens brasileiros, de modo a que os estudantes tenham idade compatível com as séries da educação básica correspondentes às suas faixas etárias.
É preciso valorizar os professores, que são “os atores mais importantes na promoção de uma educação de qualidade”, como bem indica o Movimento Todos pela Educação, que me inspira nessa agenda.
Precisamos melhorar a infraestrutura educacional, investir em uma escola de educação integral em tempo integral.
Falando nisso, precisamos efetivar um Sistema Nacional de Educação, pensando uma governança federativa, repensando os mecanismos de financiamento da área, e também prevendo articulação intersetorial com outras áreas e políticas ligadas à infância, adolescência e juventude.
A valorização da educação e o investimento na sua promoção devem compor um mantra de nossa cidadania. Pois é por meio da educação de base humanística que aprendemos e fortalecemos ideias e valores, como liberdade, igualdade, compaixão, diversidade, justiça, tolerância, democracia e laicidade.
Que, como nação, sejamos capazes de garantir às atuais e próximas gerações de brasileiros a possibilidade de sonhar, projetar e realizar uma vida digna para si e suas comunidades.  Que sejamos capazes de educar e capacitar os nossos jovens ao protagonismo do seu futuro – do nosso futuro.
2020 – Ainda que de maneira tímida, a economia deve continuar sua retomada, porém ainda muito dependente das reformas estruturantes pelas quais o Brasil está passando. Por isso, existe a necessidade de desenvolver parceria com o setor privado, de modo a estimular investimentos, geração de emprego e renda, desta maneira reativando o dinamismo econômico em nossa sociedade.
Adicionam-se a isso as eleições municipais que terão uma nova regra com o fim das coligações proporcionais, o que, na prática, significa que será levada em conta a votação de cada legenda.
Vejo uma excelente oportunidade para aprofundar o debate de questões locais, como mobilidade urbana, modernização e conectividade das cidades e, até mesmo, regularização fundiária, tema central para legalizar propriedades em comunidades e melhorar a vida de moradores das favelas. E todo este pacote servirá de insumo para se refletir sobre temas de impacto nacional, como segurança, educação e saúde para os cidadãos de todo o Brasil.
Reinventar a política – Os tempos próximos e futuros requerem dos agentes políticos formular um renovado modus operandi. Estamos lidando com a estrutura do ultrapassado. Ao mesmo tempo, somos demandados a construir o novo que não se sabe o que será. De toda sorte, há questões bastante evidentes e impositivas sobre as quais pensar.
Uma delas é que a política precisa ser feita em dois ambientes diversos, ainda que absolutamente interligados: o presencial e o midiático/virtual. Nas palavras de Castells: “Na prática, só existe a política que se manifesta no mundo midiático multimodal que se configurou nas últimas décadas”.
Fernando Henrique Cardoso diz: “O desafio está justamente em encontrar – ou inventar – as formas mais propícias à reconexão entre ‘o mundo da vida e da sociedade’e o ‘mundo das instituições e do Estado’”.
Mas, nesse mundo de transições turbulentas, é preciso ter claro que não se pode desprezar a importância das institucionalidades e dos valores civilizatórios. A democracia não é um instrumento, mas um valor a sustentar e orientar o imprescindível fazer político. A dignidade humana não pode jamais ser relativizada. O primado da razão e das ciências não pode ser abandonado em função de dogmas e carismas.
Diante da “ruptura da relação institucional entre governantes e governados”, Castells alerta sobre algo gravíssimo, avisa que a democracia liberal está deixando de existir “no único lugar em que pode perdurar: a mente dos cidadãos”.
Isso equivale dizer que o nosso investimento no revigoramento da política e no reencontro do fazer político com a sociedade passa, sim, pela reconstrução dos laços de interação e diálogo com os cidadãos e pela atualização das instituições, mas depende fundamentalmente também do nosso investimento na educação para a vida política e seus valores civilizatórios.
Não há receita para que sigamos nesse caminho. Mas, não há outro rumo a se tomar se quisermos fazer ecoar novamente, aqui e mundo afora, a legitimidade da ação política e se quisermos promover o reencontro dos cidadãos com a vida político-institucional –  uma das mais preciosas conquistas e, ao mesmo tempo, garantias da humanidade.


Economista, presidente-executivo da Indústria Brasileira de Árvores (Ibá) e membro do Conselho Consultivo do RenovaBR. Foi governador do Espírito Santo entre 2003-2010 e 2015–2018.

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