As diferenças das agendas de Bolsonaro e Lula
Faltando meses para as eleições, é ingênuo tentar inferir o plano de governo dos dois candidatos favoritos. Mas há algumas pistas do que está sendo debatido nas campanhas
Logo no início do governo Geisel (1974-79), com a primeira crise do petróleo chacoalhando a economia mundial, o então ministro do Planejamento, João Paulo dos Reis Velloso foi designado a produzir o II Plano Nacional de Desenvolvimento, que propunha “cobrir a área de fronteira entre o subdesenvolvimento e o desenvolvimento”, com uma impossível previsão de crescimento do PIB de 10% ao ano. Perguntado sobre o que achava dos planos grandiosos do II PND, o então ministro da Fazenda, Mário Henrique Simonsen, que era genial e genioso em doses iguais, foi irônico: “Não leio ficção”.
A anedota serve para dar a dimensão do desafio que os candidatos a presidente têm ao enunciar seus programas. Se já era quase impossível a um governo com os poderes ditatoriais dos anos 1970 produzir um programa crível de ações, a missão é ainda mais difícil ao Brasil de 2022. A pandemia de Covid-19 e a guerra na Ucrânia provam que qualquer plano feito hoje pode perder o sentido ao longo do próximo mandato.
Com essas ressalvas, aceitei o desafio de tentar produzir um guia básico sobre as intenções das duas candidaturas favoritas nas eleições de outubro. Peço ao leitor gentileza e paciência. Escrever sobre o futuro é caminhar sobre o gelo fino de olhos vendados.
Conversei nas últimas semanas com ministros, ex-ministros, assessores e parlamentares das campanhas do presidente Jair Bolsonaro e do ex-presidente Lula da Silva não para antecipar detalhes dos programas de governo que serão divulgados nos próximos meses, mas para entender as diferenças de compreensão que os dois candidatos têm dos grandes problemas. Faltando meses para as eleições, seria ingênuo tentar inferir detalhes do que será executado em um, dois, três ou quatro anos.
Planos eleitorais, na prática, não foram feitos para serem executados. Tirá-los do papel para a ação depende de circunstâncias políticas e econômicas que muitas vezes estão fora de controle. Fernando Henrique Cardoso genuinamente supunha que teria um segundo mandato de crescimento econômico, enquanto a realidade o transformou por quatro anos em um gerente de crises. Dilma Rousseff sequer terminou o seu mandato da reeleição. Fossem quais fossem as intenções originais de Jair Bolsonaro ao ser eleito, nenhum plano ficaria de pé depois da emergência da Covid-19. Por isso, creio que detalhar a promessa do indicador de dívida pública de 2026 uma futurologia inútil. O importante não é o indicador x ou y de crescimento do PIB ou número de empregos, mas tentar expor como as duas campanhas entendem o País e como essas visões acarretarão decisões distintas quando os problemas forem enfrentados. Espero ter obtido algumas pistas do que está sendo debatido nas campanhas.
Para facilitar a comparação, dividi os projetos por temas que foram debatidos com as duas campanhas.
Relação com o Supremo Tribunal Federal e PGR
O presidente que assumir terá o direito de indicar dois ministros do STF no primeiro ano de governo. Em maio, Ricardo Lewandowski se aposenta. Em outubro, será a vez de Rosa Weber.
Bolsonaro – O STF é considerado no Palácio do Planalto o maior foco de resistência ao governo Bolsonaro. Nomear dois novos aliados ainda é considerado insuficiente para superar o que os bolsonaristas chamam de oposição ativa. A alternativa favorita no governo é que Bolsonaro, uma vez reeleito, envie projeto ampliando a Corte dos atuais 11 membros para 15 integrantes. Neste caso, um Bolsonaro reeleito poderia indicar seis ministros do STF ao longo do mandato que somados aos dois nomeados no primeiro mandato lhe dariam maioria.
Bolsonaro repetiu várias vezes em conversas internas que a nomeação de Augusto Aras como procurador-geral da República foi das suas melhores decisões.
Lula – Há um consenso no Partido dos Trabalhadores que dos maiores erros dos 13 anos de poder foi a indicação republicana de ministros do STF. Os julgamentos do impeachment de Dilma Rousseff, as várias decisões favoráveis às investigações da Operação Lava Jato e a condenação de Lula à prisão são citados como exemplos de que os governos petistas foram ingênuos. Esta conclusão não mudou nem com a anulação do julgamento de Lula e as várias decisões do STF contrariando o governo Bolsonaro. Indicar ministros do STF e um procurador-geral vinculados ao governo será condição inegociável de um novo governo do PT.
Relação com o Congresso
Nos últimos dez anos, o Congresso assumiu um protagonismo inédito. Novas leis restringiram a edição e efetivação das medidas provisórias e as emendas impositivas tornaram os parlamentares mais independentes da troca de favores do Executivo. Parte dessa independência se deve às emendas do relator do Orçamento, uma fórmula para que o Congresso passasse a determinar a execução de emendas do Orçamento sob controle direto dos presidentes da Câmara e do Senado. Batizado de orçamento secreto por terem baixa transparência e nenhuma proporcionalidade no formato de distribuição, as emendas parlamentares somam R$16,5 bilhões neste ano.
Bolsonaro – Será mantida a atual relação de simbiose com o presidente da Câmara, Arthur Lira. No Senado, Bolsonaro tentará pela terceira vez eleger um representante que, dessa vez, não se torne independente depois de empossado.
Lula – O candidato já anunciou que tentará acabar com as emendas de relator do Orçamento. É improvável que consiga, mas o desgaste com deputados será certo.
Se eleito, a coalização em torno de Lula irá se unir em torno de um candidato para enfrentar Arthur Lira. A reeleição de Rodrigo Pacheco, no Senado, é dada como certa.
Militares
Com as Forças Armadas sendo usadas por Bolsonaro para colocar em dúvida a isenção da Justiça Eleitoral, a recomposição do papel dos militares será um desafio delicado em um governo de oposição.
Bolsonaro – Os generais serão o ponto de equilíbrio do governo em relação ao Centrão. O candidato a vice-presidente Braga Neto terá um papel relevante, ao contrário do que ocorreu com Hamilton Mourão.
Lula – Vai retirar os militares das funções civis, incluindo o Ministério da Defesa, mas tentará evitar confrontos. Sairão de cena ideias defendidas pelo PT depois do impeachment, como a mudança do currículo das escolas militares e no método de promoção dos oficiais.
Eixos da Economia
Todas as pesquisas mostram a insatisfação popular com a economia. 60% dos brasileiros acham que o país está no rumo errado e temas como inflação, desemprego e miséria dominam as preocupações dos eleitores. O presidente que assumir em 2023 terá a urgência de gerar mais investimentos.
Bolsonaro – O ministro Paulo Guedes quer lançar um “Plano de Reconstrução Nacional”, um fundo baseado inicialmente nos recursos das vendas participações do BNDES e BNDESPar como a Petrobras, JBS, Marfrig e, depois, em dinheiro vindo de privatizações. Metade dos recursos do Plano iria para o pagamento de dívida pública, um quarto para um Fundo de Erradicação da Pobreza (a ser criado) e um quarto para financiar obras federais.
Lula – O governo vai iniciar com um forte programa de combate à miséria, retomando o nome Bolsa Família e uma espécie de novo PAC, projeto para financiar grandes obras. Os recursos viriam em parte da redução das reservas internacionais, do aumento da dívida pública e de impostos.
Política Fiscal
Bolsonaro – Apesar das estimativas pessimistas, o Ministério da Economia acredita que o déficit primário vai ficar nos mesmos 0,4% de 2021 e dívida pública bruta em torno de 80%, considerada “administrável”.
Lula – O candidato já anunciou repetidas vezes que vai acabar o Teto de Gastos e não enviar novo mecanismo de controle das despesas públicas. Isso significa que um governo teria metas de resultado primário, com projeções de despesas não incluindo os investimentos públicos.
Reforma Tributária
Bolsonaro – O governo defende o projeto que taxa dividendos e lucros de empresas, já aprovado na Câmara. Não há consenso sobre reforma tributária.
Lula – Tentará aprovar o projeto Appy da Reforma Tributária, que unifica o ICMS em um novo imposto de valor agregado. Vão apoiar a cobrança de impostos sobre dividendos e lucros, além de taxar heranças.
Política Social
Bolsonaro – Vai manter o Auxílio Brasil, podendo decretar o reajuste anual pela inflação. O Auxílio seria sustentado extra orçamento pelo dinheiro da venda de estatais.
Lula – Os petistas querem acabar com a fila de mais de 1 milhão de famílias do Auxílio Brasil e retornar a busca ativa de novos beneficiários. Isso pode ampliar o programa de 17 milhões para 20 milhões de famílias em meses. O Auxílio Brasil voltará a ser chamado de Bolsa Família e serão retomadas as condicionantes de as famílias só receberem se mantiverem filhos na escola e com vacinação em dia.
Privatizações
Bolsonaro – Tentará vender a Petrobras ou ao menos ceder o controle da companhia para investidores privados. Serão retomados os planos de privatização dos Correios.
Lula – Não haverá venda de estatais. Se até a posse a Eletrobras for vendida, o governo vai tentar recuperar o controle.
Relações Exteriores
Bolsonaro – Manter a política de baixo perfil do atual chanceler Carlos França e aguardar uma eventual volta de Donald Trump à presidência dos EUA.
Lula – A noção geral é a volta do multilateralismo dos anos PT, ressaltando a aproximação com os vizinhos sul-americanos. Haverá defesa da ampliação do Brics para equilibrar o poder chinês, mantendo o discurso Sul-Sul do início do século.
A agenda ambiental será um ponto em comum com a diplomacia americana.
Meio Ambiente
Bolsonaro – Se reeleito, Bolsonaro terá o aval para aprovar no Congresso e executar o plano de concessão de áreas de garimpo em terras indígenas e de redução de exigências ambientais em obras de infraestrutura. O atual plano de asfixia dos órgãos ambientais será acelerado.
Lula – A gestão será de confronto com fazendeiros, madeireiros, garimpeiros e grileiros na Amazônia Legal. Haverá recomposição dos poderes dos órgãos ambientais e incentivo às operações policiais logo no início do mandato.
Comunicação
A renovação da concessão da TV Globo vence em 15 de outubro, entre o primeiro e o segundo turno. O presidente e o Ministério das Comunicações devem dar uma indicação sobre a renovação da outorga, mas a posição final é do Congresso Nacional.
Bolsonaro – O presidente, pessoalmente, quer impedir a renovação da concessão da Globo, mas avalia que o projeto não tem maioria no Congresso. Um projeto alternativo do Ministério das Comunicações é o de acabar com o monopólio nacional de concessões de rádio TV, autorizando que investidores estrangeiros possam ter o controle de licenças. O setor de telecomunicações é um dos últimos monopólios de investidores nacionais definidos na Constituição.
Lula – A prioridade será revisar o Marco Civil da Internet para punir criminalmente a distribuição de notícias difamatórias e ampliar as restrições das grandes plataformas – Google, Meta e Twitter.
O projeto de regulamentação dos meios de comunicação, inspirado na Ley de Medios do governo Kirchner, ficou em segundo plano com a saída do ex-ministro Franklin Martins da coordenação da campanha lulista.
No clássico aforismo de Ivan Lessa “de 15 em 15 anos, o Brasil esquece o que aconteceu nos últimos 15 anos”. Mas não é só. De quatro em quatro anos, o país enxerga nas eleições presidenciais uma bifurcação histórica onde uma decisão a favor de x ou y pode levar o Brasil para o abismo ou a um nirvana, dependendo da opção política. O ano de 2022 será de mais uma eleição assim. Os corações e mentes já estão divididos e, assim como aconteceu nos Estados Unidos depois da eleição de 2020, dificilmente haverá uma recomposição. O País terá de se acostumar a tempos polarizados.
THOMAS TRAUMANN é jornalista, mestre em Ciência Política e consultor de risco político. Foi ministro de Comunicação Social (2014) e é autor de “O Pior Emprego do Mundo”, sobre ministros da Fazenda
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