As Eleições municipais e o significado para a frente ampla
A conclusão sobre as eleições municipais é que Bolsonaro está derretendo, e o governo continua completamente sem direção na área econômica, saúde e educação. A conta chegou na eleição municipal e os candidatos apoiados pelo presidente tiveram péssimo desempenho. Ele não alavancou candidaturas e algumas que pensavam deslanchar com seu apoio, como Russomano em São Paulo e Crivella no Rio, foram muito mal. Nenhum dos candidatos com nome Bolsonaro – com exceção de seu filho, eleito com a metade da votação anterior – conseguiu se eleger, o que mostra a percepção e resposta do eleitorado aos desmandos do capitão neste primeiro período do seu mandato.
A vitória presidencial de Bolsonaro parece ter sido um acidente histórico, fruto de várias circunstâncias políticas, entre elas a prisão do líder da oposição, Lula, e o imponderável da facada, que impediu a ocorrência de debates nos quais teria ficado mais evidente o despreparo e a desqualificação dele para a Presidência. Acrescente aí um forte voto antipetista, contra a corrupção, a campanha contra políticos e em especial contra a “velha política” somada à catastrófica política econômica de Dilma e sua incapacidade de diálogo com o parlamento. Bolsonaro teve esta percepção e, como resposta a estes anseios, convocou o liberal Guedes e o chefe da Lava Jato Moro. Sua correta interpretação da onda que assolava o país o levou à Presidência.
O que Bolsonaro não se deu conta é que com falação, mentiras, ações excêntricas, negacionismo, brigas e sem resultados econômicos sua reeleição dificilmente ocorrerá. Pode criar marola, indignação, suscitar aplausos nas suas redes digitais, mas já não é suficiente para manter antigos apoiadores e dar vitória aos seus candidatos. Tenta agora recuperação com a descoberta do populismo. A esperteza intuitiva, que o levou a ser presidente, afunda quando não há noção do que seja política com P maiúsculo, o mínimo de estofo intelectual, sabedoria, sensibilidade social e respeito à democracia, às instituições e a partidos, para dirigir o País e responder aos seus graves problemas. Apela para o que sempre soube fazer e que garantia suas reeleições federais: reforçar ações corporativistas (haja vista os aumentos de benefícios e privilégios para os militares e policiais) e criar confusão e ataques quando se vê em apuros diante de denúncias de rachadinhas familiares e cobranças por resultados econômicos.
Redes sociais influenciam, têm relevância e funcionam, mas há limites e este responde diretamente ao sentimento predominante. Não fazem milagre, principalmente se a realidade é avessa ao postado. Não adianta dizer que no Brasil não tem racismo, negar o fogo e desmatamento na Amazônia ou então que a COVID é só uma gripezinha. As pessoas veem os incêndios na TV, escutam análises no rádio e procuram informação em veículos sérios. Nas casas morrem pessoas de verdade, desempregados não veem luz para sair da miséria e a maioria já percebe que ele fala mentiras e asneiras. O que é fatídico para a credibilidade de qualquer um, imagine-se para um presidente.
É interessante notar que a maioria da população percebe ou cansou do exercício da presidência por um governante que não age de forma racional, é desequilibrado emocionalmente e não entende de gestão!
Os mais informados estão indignados com a situação de pária internacional vivida hoje pelo Brasil diante da seriedade da questão ambiental; com a perda de tempo com bobagens e ataques desnecessários; com a falta de rumo no governo; e com o negacionismo que provoca medo em quem respeita a ciência. O ponto de virada foi a postura de descaso frente ao coronavírus, a desumanidade com que lida com a morte e o luto de milhares de famílias, a lentidão e desorganização na distribuição de verbas para Estados e Municípios organizarem a Saúde diante do desafio da pandemia, além do descaso com os milhões de testes perdidos por falta de distribuição. A gota d’água ocorreu perante os desatinos antivacina, que é nossa principal esperança por dias melhores.
Eleitor cuidadoso
Esta eleição foi excelente em vários sentidos, além do aparente derretimento de Bolsonaro nas grandes cidades. Mostrou que o eleitorado ficou cuidadoso nas escolhas, olhou melhor a trajetória “dos novos na política”, reconheceu o trabalho da maioria dos governantes na pandemia e optou pela segurança e credibilidade de quem já fez. Haja vista a votação de Eduardo Paes, no Rio, e Bruno Covas, em São Paulo.
Acreditar que problemas necessitam somente de determinação para serem superados faz parte do desconhecimento da complexidade que é governar. A vontade de fazer é fundamental, mas a habilidade política conjugada com experiência são ferramentas necessárias. É natural que a juventude tenha aspiração por justiça social e oportunidades, assim como adultos que esperam e exigem um mundo melhor, ou que lhes ampare e lhes dê trabalho para uma qualidade de vida digna e com futuro para que suas famílias tenham esperança.
O grande vencedor da esquerda foi Guilherme Boulos, do PSOL, com expressiva votação, que falou para o coração dos jovens, tocou no desespero dos desempregados e nos sonho dos adultos que almejam uma sociedade com justiça social. Fez discurso carismático de esperança e denúncia das desigualdades, conseguiu ser a grande novidade nesta eleição, o que, no segundo turno, embalou parceria das esquerdas (PCdoB, PDT, Rede e PT). PCdoB não elegeu vereadores, Rede tampouco e PT diminuiu sua bancada e amargou pífio desempenho à prefeitura.
É bom acreditar que um dia todas as mazelas terão solução. Eu optei por acreditar que a eleição municipal em São Paulo seja um farol que aponte para a mudança de rumos no País com propostas realistas, trabalho sério, mesmo que, às vezes, de difícil percepção, devido ao tamanho das dificuldades, com foco em ações e fé, com cada vez maior ousadia no campo social e educacional, assim como pela continuidade da responsabilidade frente à condução da pandemia. Porque do jeito que está o p aís não irá pra frente. Sonhos, temos que tê-los. Mas, embalados pela realidade e experiência, eles caminham mais rápido. Sem investimento na qualidade da educação, forte ação de combate ao racismo estrutural e desigualdade social, o Brasil não crescerá. São 109 milhões (56,10%) de brasileiros que hoje têm seu potencial desperdiçado e sua dignidade humana e direitos fundamentais desrespeitados por racismo e falta de oportunidades.
Não dá para fortalecer, ter democracia consolidada ou crescer economicamente sem um plano de ação concreto, de verdade, para esta mudança se apressar. A pandemia, a visibilidade maior dos assassinatos de negros e a brutal desigualdade social escancarada com o vírus, podem ajudar nesta percepção da necessidade de ações urgentes. São Paulo pode ser um farol de luz nesta direção.
Quem ganhou e quem perdeu? Quem mais perdeu foram Bolsonaro e Lula.
Para conseguir se recuperar, o presidente dependerá, no curto prazo, da boa logística na distribuição da vacina e de um discurso mais razoável. Não acredito que tenha esta capacidade ou continência verbal. A outra possibilidade, a principal, está na recuperação da economia, que pode começar a reagir com a chegada da vacina. Entretanto, muito dependerá da evolução da disputa entre o perdido e verborrágico ministro liberal da economia, Guedes, e do presidente que quer se reeleger a qualquer custo.
Equívocos de Lula
Não podemos subestimar a direita e a extrema-direita que compartilham de muitas das ideias de Bolsonaro. Ele ainda recebe parte do apoio empresarial que o elegeu, alinhavou recente parceria com o Centrão que lhe garantiu a impossibilidade de o presidente do Congresso, Rodrigo Maia, pôr os mais de 50 pedidos de impeachment para tramitar.
Não podemos nos enganar que, nestes últimos dois anos, ficou claro o conservadorismo de uma parcela da população brasileira que aplaude o que chamamos de retrocesso civilizatório, assim como os que têm aspirações antidemocráticas e autoritárias. Houve avanço expressivo de partidos que apoiam o presidente. Se vão continuar a apoiá-lo ou não, dependerá da economia e sua contenção nos desatinos.
Lula tem se equivocado e omitido desde a saída da prisão e não conseguiu recuperar a formidável liderança que exerceu. Com a eleição municipal, a esquerda ganhou novo líder, Boulos, graças à desistência de Haddad em disputar a prefeitura. Mais uma estratégia equivocada de Lula, que não fez força alguma, muito pelo contrário, para estimular a candidatura. É difícil saber as reais razões pelas quais Haddad não brigou para entrar na disputa. Foi grande erro. Teria ido, com certeza, para o 2º turno e criado musculatura que o tornaria mais independente de Lula e muito mais próximo da candidatura presidencial do que hoje se encontra. Lula foi mal pois, apesar de o PT continuar a ter hegemonia de ser o partido mais votado no campo da esquerda, não venceu em nenhuma capital. Será difícil ter candidato nacional forte, especialmente no Sudeste, como Boulos se mostrou na eleição paulistana.
Os decanos das lideranças petistas que disputaram em São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro foram fragorosamente derrotados. Assim como os candidatos dos governadores petistas. O PT terá que investir pesado em novos quadros, o que não acontece da noite para o dia. Em São Paulo, dos 645 municípios, o partido só conquistou prefeituras de Araraquara e Matão.
Fortes lideranças, Emídio de Souza e Luiz Marinho, perderam em Osasco e São Bernardo. O ex-prefeito José de Filippi venceu Diadema e também em Mauá. Elói Pietá perdeu em Guarulhos. Marília Arraes perdeu em Recife para seu primo João Campos numa batalha de sangue para todo lado. A disputa foi de tal ordem que a aliança PSB e PT poderá estar trincada para 22.
A esquerda encolheu pois governará 11,34 milhões de pessoas e das 94 maiores cidades só venceu em quatro. O PT deverá se repensar profundamente e apelos para renovação de lideranças já acontecem. Não é à toa que, no dia seguinte à eleição, o senador Jacques Wagner se colocou na disputa presidencial, pedindo ao “irmão Lula” para se afastar. Entretanto, parece que ceder a cabeça de chapa não está ainda no jogo. A ver.
Em resumo, os ganhadores foram:
- Os moderados, principalmente DEM, PSDB e MDB, vencedores nos centros urbanos. Juntos governarão 45 milhões de pessoas, metade do eleitorado brasileiro;
- Os muitos hostilizados como da “velha política” na eleição anterior, os que têm experiência;
- Os prefeitos que foram bem avaliados na condução da pandemia;
A perspectiva que a esquerda é capaz de se unir;- Os indenitários que fizeram bonito;
- A nova expressão política chamada de “coletivo” e que pode vir a ser a semente de algo novo na construção de partidos mais democráticos.
Outra novidade importante na eleição municipal foi a maior representação da diversidade nas candidaturas e eleitos. Mandatos coletivos, quando um é eleito e o mandato é exercido em grupo, que passaram de 13 para 2.257. Entre os que se declararam pardos, o avanço foi de 24,4% para 31%, e, entre os que se declararam pretos, foi de 1,7% para 2,4%. Nos 58 mil vereadores eleitos, negros e pardos não chegaram a 50%, mesmo sendo sua representação no Brasil de 55,8%. Os brancos foram maioria, apesar de não terem sido a maioria de candidatos. Esta situação pode mudar nas próximas eleições, dependendo de ações para diminuição do racismo estrutural.
O crescimento das mulheres para prefeituras foi frustrante. Crescemos 0,5%, de 11,6% para 12,1% no total dos 5.567 municípios. Para vereadoras foram eleitas 16% de vereadoras do total de eleitos. Sinto que ainda não achamos o caminho. Este é um desafio a ser enfrentado e reestudado. O número apresentado é ridículo, além de não corresponder aos estímulos de cotas e recursos alocados, pois somos 51,7% do eleitorado. Os partidos e as mulheres vão ter que se debruçar em busca de novas fórmulas, algumas já tramitando no Congresso. Nesta eleição entrou, pela primeira vez, o recurso para negros. Este parece que ficou meio perdido. Transexuais, gays, lésbicas e travestis foram uma oxigenação bem-vinda neste mundo de preconceitos. Os indígenas aumentaram um pequeno espaço.
Os partidos há muito estão com dificuldade de se conectar com o eleitor. Acredito que o êxito das candidaturas “mandato coletivo” podem ser algo novo nascendo. As poucas que já existem não deram confusão e parecem funcionar bem, propiciando o nascimento de outras candidaturas dentro do primeiro mandato eleito coletivamente. Podem se tornar nova maneira de concorrer e têm aberto espaço para candidaturas sem recursos. Tenho certeza que os partidos vão ter que mudar sua forma de organização. O mundo digital desorganizou o conhecido e a juventude está experimentando outras formas de inserção. Novos e outros caminhos serão experimentados.
Boa notícia é a maior participação dos negros e negras nestas eleições. Há um aumento da percepção da existência de um racismo estrutural em virtude da repercussão gigantesca de assassinatos negros aqui e no exterior. Aguarda-se uma reação de governos, empresas e políticos, assim como da sociedade civil, que podem gerar ações concretas na diminuição do preconceito e na eleição de mais negros.
O mundo melhora paulatinamente. Nesta eleição paulistana tivemos dois candidatos de matizes diferentes, ambos defensores da democracia. Por uma série de contingências e um candidato com temperança e qualidades políticas pessoais, o centro venceu em São Paulo. Venceu também no Brasil todo. Bruno Covas, no discurso do dia da vitória resumiu bem o dia seguinte: “as urnas falaram e eu saberei ouvir o recado.”.
Para a eleição de 22, o lugar da candidatura de direita mais extrema já está ocupado por Bolsonaro. Pode ser com mais ou menos musculatura, mas não vejo concorrentes nesta área. A esquerda está se sentindo mais forte com a força que as várias siglas, juntas, demonstraram em São Paulo e também porque grande parte dos movimentos de combate ao retrocesso civilizatório – o grande número de artistas, a juventude que está mais partícipe e os movimentos identitários –, simpatizam com ela. Será ruim se a esquerda se isolar. Teremos duas frentes extremas novamente.
Frente democrática e ampla
A turma considerada da “velha políticaˮ se anima com o resultado moderado da recente eleição e poderá tentar se reinventar na nova demanda de uma apresentação de centro-direita. Não irá longe. Creio que os políticos que são a favor da democracia, e não compartilham os extremos, terão que se reinventar e, provavelmente, dar as mãos em algum momento. Está aí a inexorabilidade da formação da frente ampla, já compreendida pelos dois grandes vencedores desta eleição: Bruno Covas e Eduardo Paes. Ambos com tarimba e habilidades suficientes para entender a direção das mensagens enviadas pelos eleitores e liderarem esse processo.
A frente ampla deverá ser o polo e a união das forças vencedoras de centro, DEM, PSDB e PMDB com o apoio de liberais e progressistas na composição. Assim será construída uma frente com aqueles que forem defensores intransigentes da democracia, que acreditem no papel de destaque que o Brasil precisa voltar a ter na defesa do meio ambiente, nas mudanças com responsabilidade fiscal e que sejam capazes de elaborar as diretrizes de programa de governo com respostas que possam fazer diferença no combate à escancarada desigualdade social e ao racismo estrutural. Estes propósitos se entrelaçam e permitirão que trilhemos a revolução que o Brasil necessita e anseia. E, na verdade, é o que a maioria da sociedade gostaria: mudanças profundas sem radicalismos. É sonho? É possível e temos líderes para tanto.
O mundo está mudando. O partido democrata nos EUA mostrou magistralmente como quando a esquerda, de Bernie Sanders, uniu-se com o centro de Biden, elegeram um centrista que, agora eleito, mostra, com sua vice e secretariado já escolhido, que entendeu as mudanças que serão necessárias para corresponder ao voto de confiança de seu eleitorado. A exitosa frente ampla democrata mostrou que é possível ter o bom senso de não optar por desejos e ações perdedoras diante de uma situação dramática. Biden uniu o seu país em torno das mudanças necessárias frente ao drama do continuísmo do atraso, truculência e negacionismo.
A frente ampla, no Brasil, que terá como espinha dorsal o centro, agregando e unindo os liberais-democratas aos progressistas, será um novo farol para essa busca que já dura cinco séculos.
Marta Suplicy é política, psicanalista e sexóloga. Foi prefeita de São Paulo, deputada federal, ministra de Estado nas pastas do Turismo e da Cultura nos governos de Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff e senadora da República pelo Estado de São Paulo.
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