31 março 2021

Bolsonaro: armas, ideologia e poder

Ao longo de 28 anos, nos seus seis mandatos como deputado federal, Jair Bolsonaro, tirando uma ou outra insignificante polêmica por desastrosas falas suas, praticamente passou despercebido pela Câmara dos Deputados. Apresentou nessas quase três décadas projetos de pouca repercussão e pouca importância para a população em geral, tendo apenas dois sido aprovados.

Ao longo de 28 anos, nos seus seis mandatos como deputado federal, Jair Bolsonaro, tirando uma ou outra insignificante polêmica por desastrosas falas suas, praticamente passou despercebido pela Câmara dos Deputados. Apresentou nessas quase três décadas projetos de pouca repercussão e pouca importância para a população em geral, tendo apenas dois sido aprovados.
Ao assumir a presidência da República, até em razão de promessas típicas de uma campanha política, algumas movimentações e iniciativas eram absolutamente esperadas, outras eram previstas. No entanto, temos presenciado um número assustadoramente grande de atos praticados por Bolsonaro que julgava-se ser inimagináveis.
A reflexão feita nesse artigo partirá de algo bastante previsível, principalmente se analisado o histórico do capitão Jair Messias Bolsonaro: sua proximidade com e a enorme influência dos quartéis.
Temos hoje no Brasil, proporcionalmente, mais militares como ministros de Estado do que nossa vizinha Venezuela. Além disso, o governo de Bolsonaro possui mais militares entre ministros do que três dos cinco presidentes que governaram o país durante a ditadura militar.
Além do próprio Bolsonaro e do vice-presidente da República Hamilton Mourão, temos ainda dezenas de militares ocupando cargos políticos de extrema importância para o nosso país, e mais ainda para o momento atual.
Temos um militar, supostamente especializado em logística, no comando do ministério da Saúde durante a maior e mais grave pandemia de nossa história recente. Tivemos, há bem pouco tempo, a retirada de um quadro técnico do comando da Petrobras e a passagem do controle dessa essencial empresa brasileira para as mãos de outro militar.
Diversas pesquisas de opinião, feitas recentemente, atestam o prestígio das forças armadas em nosso país. Boa parte de sua legitimidade, inclusive, vem do fato delas não serem um ator essencialmente político. Quando militares passam a fazer parte direta de um governo, é evidente que se politiza essa instituição. Mais do que isso: confundem-se as figuras de militares ativos e da reserva, fazendo com que a relação das forças armadas com o governo federal torne-se cada vez mais delicada e complexa.
Diante, portanto, dessa realidade, é essencial que nós saibamos, ainda que superficialmente, quem são, o que pensam e o que querem para o país esses homens e mulheres que influenciam sobremaneira o clã Bolsonaro.
Guerras e batalhas, ainda que imaginárias
Começaremos pelo óbvio: militares são treinados para guerras e batalhas, nem que sejam elas apenas imaginárias. É essência da força motriz de militares em todo o mundo a existência de um inimigo, a existência de algo, tangível ou não, a enfrentar. Com a posição brasileira de um país pouco beligerante, pouco expressivo na política internacional, essencialmente quando tratamos de disputas dentro da política internacional, os inimigos reais para os militares brasileiros são hoje quase inexistentes. Há, portanto, desde nossa redemocratização, uma constante necessidade de encontrar alguém para se opor, combater, lutar.
Dentro dessa lógica surge com bastante importância o nome do general Sérgio Augusto de Avellar Coutinho. É ele que, nos últimos anos, tem se mostrado, principalmente através de seus livros, um doutrinador de grande importância dentro das Forças Armadas. Em seu pensamento, além de um neoconservadorismo marcante, há elementos que são claramente vistos no dia a dia do governo federal brasileiro.
Vejam que presenciamos uma constante guerra cultural que, por vezes, se mescla com pautas voltadas aos costumes. Temos ainda a constante criação ou sustentação de antigos atores e inimigos a enfrentar. George Soros, o ex-presidente Lula, o Socialismo, as ONGs, os movimentos sociais e o tal Foro de São Paulo, são, dentro dessa doutrina, analogicamente nações que poderiam nos atacar.
O combate a eles – como se houvesse um real perigo nesses personagens – é o que cria uma paranoica persecutória apta a sustentar os ânimos de parte da caserna. O problema se mostra ainda mais grave quando a luta contra este inimigo imaginário ultrapassa os limites dos quartéis e se torna cotidiana em nossa vida política.
O governo Bolsonaro, em muitos aspectos, copiou e continua copiando bastante a administração do hoje ex-presidente Donald Trump; e, como sabemos, quase toda cópia é mal feita.
Um dos elementos muito marcantes da política atual americana, e essa característica foi mais marcante ainda no governo Trump, é a necessidade de se estar constantemente em campanha. Mesmo depois de eleito, Bolsonaro também continuou em campanha. Falas polêmicas sobre temas polêmicos são frequentemente objeto de intensa discussão em nosso país. Várias crises do governo atual derivaram dessas falas do nosso presidente.
Alguns cogitam serem elas uma espécie de cortina de fumaça. Não me alheio a essa posição. Para fazer uma cortina de fumaça, assim como em grandes batalhas é necessário inteligência, técnica e estratégia, elementos esses que fazem falta no atual governo. Portanto, quando o presidente, no meio de uma guerra contra o coronavírus, manifesta-se sobre aborto, sobre a ideologia de gênero nas escolas, sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo ou sobre armas, está ele, na verdade, mantendo a chama de sua militância acesa.
Pai e filhos movidos a campanhas
Bolsonaro, seus filhos e colaboradores próximos estão sempre em campanha e a forma de fazer isso é justamente mantendo polêmicos temas de uma pauta bastante conservadora sempre em discussão. É isso que seus apoiadores gostam, é disso que a militância gosta e sabe falar.
Uma das pautas de sua eterna campanha, e essa para fins desta reflexão é de longe a mais importante, diz respeito à relação do governo federal com as armas e com as polícias.
Sob o pueril argumento de que o cidadão de bem precisa se defender e de que as armas teriam como justificativa a defesa da vida e da propriedade, Bolsonaro nunca escondeu que, se eleito, implementaria políticas e promulgaria leis para facilitar que a população civil se armasse. O que vemos hoje na prática, no entanto, é muito mais do que isso.
Compreende-se na lógica armamentista desburocratizar o acesso às armas, mas não há justificativa alguma, principalmente tomando como base os argumentos daqueles que querem se armar, a política de dificultar o rastreamento e a fiscalização dessas armas. Se as armas são de fato para serem usadas por cidadãos de bem para protegerem seu patrimônio e sua vida, qual mal em serem elas fiscalizadas e controladas? Mais ainda, partindo da sabidamente mentirosa premissa de que armas servem exclusivamente para defesa, qual a razão de se permitir que cada membro de uma família tenha até seis armas e centenas, em determinados casos milhares, de projéteis à sua disposição? Com a mais recente alteração na lei, abre-se a possibilidade de em cada família e em cada lar brasileiro se montar um pequeno arsenal. Seria isso de fato apenas para defesa? Ou queremos acreditar agora nas palavras de um dos filhos do presidente que, por vezes, justifica esse altíssimo número de armas para aqueles praticantes de tiro esportivo ou de caça autorizada?
Ainda sobre as portarias que tratam do acesso às armas, importante mencionar que houve decisão judicial – até a data da elaboração desse texto as decisões não haviam sido reformadas – anulando a parte específica que previa um aumento na quantidade de munição possível de ser comprada. Mais grave do que isso, no entanto, foi a informação de que antes mesmo da publicação das portarias, uma nota produzida pela Assessoria de Apoio para Assuntos Jurídicos do Estado-Maior do Exército afirmou que elas poderão “ter como consequência uma fragilização para a segurança pública e para a política de Estado que foi inaugurada pelo Estatuto do Desarmamento, de controlar ou limitar a disseminação de armas de fogo no país”. Ou seja, o próprio exército reconhece o perigo e as consequências de se armar indiscriminadamente a população.
Ruptura institucional
Se nossos problemas se limitassem à questão das armas, já teríamos um problema bastante grave para lidar, mas não. Alguns acontecimentos, fatos e medidas tomadas pelo Governo Federal vão se interligando e nos levando à conclusão – e é aonde esse artigo pretende chegar – de que podemos estar prestes a vivenciar uma grave e perigosa ruptura institucional.
Por um lado, então, Bolsonaro, concretizando sua promessa de campanha, arma a população. Em outro campo, não tão distante desse, mas muito próximo aos quartéis, o Governo desde o primeiro dia de sua posse vem implementando uma política com inúmeras benesses e facilidades aos militares e mais especificamente às polícias.
Bolsonaro tentou em seu pacote anticrime – e continua tentando – modificar o Código Penal para nele incluir uma modalidade de excludente de licitude que poderá dificultar muito, quando não causar evidente impunidade, para policiais que matam em serviço. Bolsonaro também oferece afagos financeiros, tanto a militares quanto a policiais, sempre os colocando numa posição extremamente confortável no momento de se discutir reajustes salariais, por exemplo.
O governo vai além, quando nos indultos presidenciais, que praticamente foram abolidos na atual gestão, as garantias são apenas previstas para essas categorias.
Os indultos somados às bonificações financeiras mostram um evidente interesse de aproximação da presidência com esses atores da sociedade. Isso, de certa forma, seria normal dado o histórico de Bolsonaro. Polícias são e compõem, evidentemente, sua base de apoio, e é natural que queira ele delas se aproximar cada vez mais. O grave, ou atípico, é quando esta aproximação passa longe de uma simples afinidade. Realmente grave é quando percebemos que o presidente se aproxima com a intenção de ter controle.
A previsão constitucional que dispõe sobre a segurança pública em nosso país é bastante clara: cabe aos estados e aos seus respectivos governadores as diretrizes e o comando nessa área. Consequência lógica disso é que cabe aos governos estaduais o controle de suas polícias. Forças de segurança pública estaduais são executoras de uma política pública de segurança determinada por aqueles que mais próximos estão dos problemas a se enfrentar.
Em razão de sua proporção continental, o Brasil é um país com características completamente diferentes, e isso inclui o campo da criminalidade e da segurança pública. Natural, então, que governadores tenham total autonomia para gerir seus estados conforme melhor entenderem. Essa autonomia representa em nosso sistema constitucional um dos mais importantes alicerces do modelo institucional da Federação. Nosso pacto federativo, mais do que uma previsão expressa da Constituição, é essencial para garantir o funcionamento das instituições republicanas.
Por outro lado, é evidente que deve o governo federal propor, criar e discutir uma política nacional de segurança pública. Mais do que isso, há previsões legais expressas da participação direta de forças federais em casos bastante específicos, como em intervenções da Força Nacional de Segurança ou uso de militares em momentos cujos critérios devem ser rigorosamente observados.
Para que fique claro: é importante e até esperado que haja uma união de forças, estratégias e conhecimentos, voltados ao combate à criminalidade e à implementação de medidas que, nacionalmente, possam melhorar essa área tão sensível. O que difere bastante de qualquer medida que, sob o pretexto de se combater o crime pretenda, na verdade, aumentar o controle do governo federal sobre quem de fato executa uma política de segurança pública, ou seja, as polícias.
Poucas vezes na história do nosso país uma possível ruptura institucional foi tão publicamente antecipada.
Metralhadora de bravatas
Entre os mais céticos, há aqueles que sustentam a possibilidade de Bolsonaro e seu entrono mais próximo ser uma espécie de metralhadora de bravatas. As constantes ameaças de desobediência – em caso de uma derrota nas urnas em 2022, poderíamos ter no Brasil cenas bem piores do que as tristes vistas no capitólio americano – seriam apenas falas impensadas de um presidente conhecido por seus frequentes arroubos.
Não me filio a essa ingênua conclusão.
O governo federal tem desde o dia de sua posse implementado uma série de medidas e apresentado projetos de lei que facilitariam a concretização de seu plano de poder.
Dizer, como o presidente fez, que quer armar a população para se proteger de governadores seria apenas uma bravata típica de campanha, se não fosse pelo fato de que efetivamente há uma série de medidas concretas, tomadas pelo governo, para armar a população e permitir que, em cada casa, em cada família, tenhamos a possibilidade de ter um pequeno exército.
Dizer que ONGs são responsáveis pelo desmatamento e que movimentos sociais são, na verdade, um instrumento para a implementação de um regime socialista no Brasil, pode ser uma bravata. Colocar um ministro da Justiça a serviço de um presidente, no seu ímpeto de perseguir lideranças sociais com a instauração de inquéritos policiais que se utilizam da Lei de Segurança Nacional para investigar cidadãos, é completamente diferente.
Agradar as polícias aumentando salários ou concedendo indultos era mais do que esperado no governo Bolsonaro, era evidente. Tentar medidas para controlá-las, não.
As falas estão aí e as medidas necessárias para que essas falas sejam colocadas em prática também. Só não vê quem não quer.


Augusto de Arruda Botelho é advogado criminalista, mestrando em Direito Penal Econômico pela Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas. Especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra e especialista em Direito Penal pela Universidade de Salamanca. Ex-Presidente e conselheiro do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa). Conselheiro da Human Rights Watch.

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