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Interesse Nacional
10 janeiro 2024

Cabe na agenda ambiental do governo o mote “o Brasil voltou”?

Não restam dúvidas de que a orientação do governo Lula para o campo ambiental é diametralmente oposta à do governo anterior. Mas, para avançar de forma eficiente, há desafios consideráveis. Reconhecido como uma potência ambiental, o Brasil deve se voltar mais enfaticamente para o futuro e enfrentar pendências na inserção da agenda climática no G20, melhor coordenação da presença brasileira na COP 28, mais inserção nos acordos multilaterais, especialmente UE, com maior efetividade na articulação com o agronegócio

Por Roberto S. Waack e Renata Piazzon*

Assim que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito para o seu terceiro mandato à frente do país, o mote “O Brasil voltou” passou a percorrer boa parte do mundo, em referência à expectativa internacional de retorno da marcante presença do país no cenário global da agenda climática. Ao longo da sua história, o Brasil foi de fato um dos países mais ativos e reconhecidos nos palcos científicos, políticos e da sociedade civil voltados para a produção de informação acadêmica, negociações multilaterais e ativismo social. A relação da agenda climática com a confirmação das bases democráticas, amplamente discutidas nas últimas eleições, estava embutida no mote.

Mas o que significa esse “O Brasil voltou”? Conseguiremos assumir um protagonismo nesta agenda apenas voltando ao que éramos? Como esse “Brasil de volta” vai nos conduzir ao futuro? Em um olhar para este primeiro ano de governo, buscamos discutir os avanços e os desafios do país na condução das pautas socioambientais.

Na seara internacional, além de trazer os temas de meio ambiente, as declarações de Lula neste primeiro ano de governo foram marcadas pelas demandas por uma nova governança global e pelo enfrentamento das desigualdades. Na COP 27, no Egito, antes mesmo de tomar posse, Lula ganhou destaque ao afirmar que o combate à crise climática teria papel central em seu governo, além de pedir ações concretas dos outros países. Na ocasião, o presidente recém-eleito afirmou não haver possibilidade de segurança climática sem Amazônia.

A presença nos fóruns internacionais foi rotina. Na Cúpula dos Líderes do G20, realizada na Índia, Lula prometeu usar a presidência do Brasil no Grupo, em 2024, para criar uma força-tarefa para uma mobilização global contra a mudança do clima. Defendeu ainda o maior uso de fontes de energia renovável e biocombustíveis.

Ao discursar na abertura da Assembleia Geral da ONU, o presidente reforçou a importância do combate à desigualdade social e à fome, relacionando os desafios climáticos ao desenvolvimento sustentável. Na sua abordagem, consolidou a conexão das mudanças climáticas com a justiça social, uma vez que afetam com maior impacto os mais pobres. Na ocasião, pôde destacar a efetiva redução do desmatamento na Amazônia, confirmando as expectativas internacionais de combinação de ambiciosos discursos com resultados efetivos.

Sinalizações internacionais e ações locais

No âmbito nacional, o mote “O Brasil voltou” se confirmou com a (re)nomeação de Marina Silva, respeitada ambientalista, como ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA). A criação do inédito ministério dos Povos Indígenas, com uma mulher indígena à frente da pasta, também foi uma mostra de que o governo daria maior atenção ao reconhecimento dos povos originários como partícipes da agenda ambiental, social, cultural e territorial.

‘Já no seu primeiro dia, o governo fez sinalizações positivas com relação à agenda ambiental, ao assinar decretos que promoveram a restituição dos espaços de representação social’

Já no seu primeiro dia, o governo fez sinalizações positivas com relação à agenda ambiental, ao assinar decretos que promoveram a restituição dos espaços de representação social em colegiados como o Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea) e o Serviço Florestal Brasileiro do Ministério da Agricultura para o MMA. Houve ainda a instituição da Comissão Interministerial Permanente de Prevenção e Controle do Desmatamento, o reestabelecimento do Plano de Ação para a Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal – PPCDAm e Planos de Ação para a Prevenção e Controle do Desmatamento no Cerrado, na Mata Atlântica, na Caatinga, no Pampa e no Pantanal.

A transversalidade dos temas socioambientais e climáticos nas estruturas da administração federal também evidenciou a priorização da área pelo governo: 16 pastas, além do BNDES, têm pelo menos uma secretaria ou departamento para tratar dessa pauta. Ao lado disso, a retomada do Conselho de Desenvolvimento Econômico Sustentável, que incorporou a sustentabilidade ao nome e reforçou esse direcionamento na gestão do país.

Numa combinação das sinalizações internacionais e ações locais, reestabeleceu-se ainda o simbólico Fundo Amazônia, paralisado desde 2019, com cerca de R$ 3,9 bilhões doados por Noruega e Alemanha. Reino Unido, Alemanha, Estados Unidos, Suíça, Dinamarca e a União Europeia anunciaram doações adicionais que alcançam o montante de R$ 3,4 bilhões. As rotinas de funcionamento do Fundo foram reativadas, ainda que com críticas sobre sua governança e critérios de alocação de recursos. 

Entre os resultados da bem-sucedida campanha “O Brasil voltou” está também a confirmação de Belém como sede da COP 30, em 2025. A articulação geopolítica ambiental teve resultado emblemático, com a realização da Cúpula da Amazônia, no Pará, e vista pela imprensa europeia como um “sucesso diplomático” de Lula. O objetivo foi produzir uma posição de consenso entre os países da Bacia Amazônica a respeito da floresta a ser levada a futuros debates globais.

A Declaração de Belém, com 113 objetivos, aborda as discussões de líderes de oitos países amazônicos que integram a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA). O texto aborda a necessidade de evitar que o bioma chegue ao ponto de não retorno, o lançamento de uma aliança para o combate ao desmatamento e de um centro de combate a crimes e a criação de mecanismos de financiamento ao desenvolvimento sustentável. Considerada por parte da sociedade como excessivamente burocrática, para ambientalistas a decepção da declaração ficou por conta da não defesa explícita do desmatamento zero e da falta de menção à exploração do petróleo na foz do rio Amazonas. Houve notável engajamento da sociedade civil, por meio da promoção dos Diálogos Amazônicos, realizados dias antes da Cúpula, com destaque para o protagonismo dos povos indígenas.

Em linha com a persistente cobrança de que países desenvolvidos cumpram a promessa de destinar ao menos US$ 100 bilhões anuais para financiamento climático internacional e ampliem o fornecimento de recursos para as nações em desenvolvimento, durante a Cúpula os países amazônicos e outras nações com grande estoque de florestas divulgaram ainda o comunicado conjunto “Unidos por nossas florestas”.

O mote “O Brasil voltou” foi efetivamente reforçado pela retomada das ações de Comando e Controle e a maior queda percentual no índice anual de desmatamento em uma década. Dentre as ações estruturantes nesta seara, vale destacar a retomada do PPCDAm, com o objetivo de zerar o desmatamento ilegal até 2030. O plano destaca-se por sua transversalidade, envolvendo 19 ministérios e previsão de melhor articulação com governos estaduais. Além de ações de combate ao desmatamento, o plano prevê a criação de alternativas econômicas para o desenvolvimento com a floresta em pé, bem como de mecanismos financeiros e regulatórios. O governo está elaborando agora o PPCerrado, dentro dos mesmos moldes do PPCDAm, na tentativa de reverter a expressiva perda de cobertura vegetal no bioma.

Plano de mudanças estruturantes e transformações

Do conjunto de ações do governo no campo ambiental, merece destaque o anúncio do Plano de Transformação Ecológica, liderado pelo Ministério da Fazenda. O projeto – que tem por objetivo proporcionar mudanças estruturantes para o desenvolvimento econômico e social do país, com foco na conservação do meio ambiente – está conectado ao Plano de Aceleração do Crescimento (PAC). O Plano de Transformação Ecológica prevê 100 ações que abrangem quase todos os setores da economia, incluindo mercado regulado de carbono e pagamento por serviços ambientais; emissão de títulos soberanos sustentáveis; e a criação de taxonomia sustentável nacional. Outras frentes abarcam políticas relacionadas à transição energética como hidrogênio verde e eólica offshore, bioeconomia e a criação de algum tipo de “selo verde” para a agricultura.

Gerido pelo BNDES, o Fundo Clima é peça central no plano para financiar investimentos para transformar a matriz energética, mas também recuperar áreas degradadas, incentivar a indústria verde e apoiar o desenvolvimento urbano resiliente e sustentável. O fundo conta com uma carteira de R$ 2,3 bilhões e a expectativa é capitalizá-lo com cerca de R$ 10 bilhões por ano.

Outro exemplo da transversalidade da pauta ambiental está na discussão sobre rastreabilidade de produtos do agronegócio, evoluindo no âmbito do MAPA. O tema tem ganhado destaque com os compromissos assumidos por empresas do setor para desvincular seus produtos do desmatamento. O movimento, de certa forma, é uma reação às iniciativas internacionais, como a Lei antidesmatamento da União Europeia, que estabelece barreiras na importação de commodities e seus produtos vinculados a desmatamento e degradação florestal.

E, em mais um sinal de que agenda ambiental e agronegócio estão cada vez mais próximos, o Plano Safra, principal política de incentivo à atividade agrícola, terá, para o período de 2023/24, valor recorde e trouxe mecanismos para promover atributos socioambientais e impedir concessão de crédito a quem comete ilegalidades.

Desafios consideráveis pela frente

Não restam dúvidas de que a orientação do governo Lula para o campo ambiental é diametralmente oposta à do governo anterior. Mas, para avançar de forma eficiente, há desafios consideráveis.

A política nacional, por exemplo, impôs dificuldades de convivência com um parlamento conservador e, ainda no primeiro semestre do governo, o Congresso alterou a estrutura da administração pública, provocando rearranjos fortemente criticados pelos movimentos ambientalistas. A gestão do CAR (Cadastro Ambiental Rural), que havia originalmente retornado para o MMA, foi para a pasta do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos. Os sistemas de saneamento básico, resíduos sólidos e recursos hídricos, foram do MMA para o Ministério das Cidades. A Agência Nacional de Águas foi para o Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional. A demarcação de terras indígenas ficou com o Ministério da Justiça e Segurança Pública.

Dentro do próprio governo, embora a difusão dos temas ambientais nos diversos ministérios e instituições seja bem-vinda e imprescindível, a coordenação da agenda climática é ainda confusa, com muitas sobreposições e pouco alinhamento entre as pastas.

A liderança na condução de temas como regulamentação do mercado de carbono, em trâmite no Congresso, é outro exemplo. A regulação cria o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE), mas carrega polêmica ao deixar explícito que o setor produtivo primário da agropecuária fica fora das novas regras.

O caso da exploração de petróleo na Margem Equatorial também gerou debates acalorados e ainda carece de orientação técnica e política. O Ibama negou pedido da Petrobras por uma licença de perfuração exploratória na foz do rio Amazonas. O pedido foi indeferido por apresentar alto grau de ameaça à biodiversidade local e não contar com um plano de contingência adequado, além da ausência de avaliação de impacto em Terras Indígenas. A decisão provocou controvérsias na base aliada do governo nos estados do Amapá e Pará. 

As controvérsias também tocaram a relação com a pauta indígena, apesar do apoio demonstrado pelo Executivo. É preciso reconhecer a enfática ação de controle do garimpo ilegal nas terras Yanomami. No entanto, após quatro anos paralisada, a demarcação de terras indígenas foi retomada num ritmo aquém das expectativas, com a homologação de oito terras indígenas. Os desafios incluem ações judiciais e precariedade do processo demarcatório.

Outro assunto pleno de ruídos e embates foi o marco temporal para a demarcação de terras indígenas. O Congresso acelerou a tramitação do Projeto de Lei que trata do reconhecimento, demarcação, uso e gestão de terras indígenas, apesar do Supremo Tribunal Federal ter declarado a tese inconstitucional. O presidente sancionou a lei, com vetos relevantes, seguindo o entendimento do STF, o que favoreceu os pleitos dos povos indígenas, mas manteve a reação contrária de parte do agronegócio.

Aliás, é evidente que o embate e contradições entre a pauta ambiental e a do agronegócio não foi equacionado neste primeiro ano de governo. O agronegócio continua sendo associado ao desmatamento, não havendo contundência por parte do governo de sinalização de que o setor é extremamente heterogêneo e que a maior parte das conversões de florestas ocorrem em situações ilegais associadas a questões fundiárias e ao crime, distantes do setor profissionalizado. Ao mesmo tempo em que esta indústria endereça um tema caro ao governo, que é o da segurança alimentar, é provavelmente a que mais sofrerá com as mudanças climáticas. É em cenários como este que é notada a ausência de política específica para adaptação aos desastres climáticos, que terão impacto não só na produção de alimentos, mas na estrutura das cidades e no dia a dia de populações cada vez mais expostas a secas severas ou chuvas torrenciais acima das médias históricas. Em geral, observa-se no país reações a crises agudas, sem indicação de planejamento para enfrentamento do desafio de forma estruturante.

Retomada da agenda da restauração florestal

O Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima (PNA), criado em 2016, nunca foi implementado. A maioria dos municípios brasileiros não tem políticas para minimizar esses impactos. Embora incipiente, foi anunciada a elaboração de Estratégia Nacional de Adaptação, a ser gerida pelo Comitê Interministerial de Mudança do Clima e que, de alguma forma, vai tangenciar o Plano de Transformação Ecológica. Nele, como já mencionado, o tema da infraestrutura e adaptação à mudança do clima englobará ações como obras públicas para reduzir desastres naturais, resiliência nas grandes obras de infraestrutura do país, programas específicos para municípios vulneráveis e estratégias para segurança e resiliência da agropecuária, energia e saneamento.

Ainda no campo dos anúncios, foi retomada a agenda de restauração florestal e concessões públicas, embora com poucos avanços normativos e condições para investimentos privados. Apesar da agenda da restauração florestal estar ganhando destaque, houve poucos avanços em questões como pesquisa e desenvolvimento para o cultivo de espécies nativas, regulamentações para P&D e para operações em escala. Programas como o Planaveg dão ideia do que precisa ser feito, mas não como fazer. As concessões de terras públicas ainda não se consolidaram, permanecendo como um dos desafios à questão da responsabilidade jurídica de concedente e concessionário.

O rol de desafios inclui o tema do saneamento básico. Embora o país tenha aprovado no governo anterior o Novo Marco Legal do Saneamento Básico, houve poucos avanços para universalizar o acesso à água potável e esgotamento sanitário. Houve desaceleração nos processos de privatizacão provocada por decretos presidenciais que alteram o marco, embora expectativas recaiam sobre o novo PAC.

O Brasil reconhecidamente é uma potência ambiental (desde que controle o desmatamento ilegal). Talvez, para eliminar a ambiguidade do mote “O Brasil voltou”, relacionando-o ao passado, o país devesse voltar-se mais enfaticamente para o futuro. Ficaram pendentes maior veemência na inserção da agenda climática no G20, melhor coordenação da presença brasileira na COP 28, mais inserção nos acordos multilaterais, especialmente UE, com maior efetividade na articulação com o agronegócio. Agendas integradas e estruturantes no campo ambiental são o nome do jogo contemporâneo. O Plano de Transformação Ecológica poderá abrigar grande parte desta pauta, associando-a à manutenção da boa tendência de controle de desmatamento. A urgência climática demanda claramente um Brasil de volta, mas compactuado com o futuro. Não foram poucas as sinalizações positivas deste primeiro ano, mas desafios relevantes permanecem pulsando.  


*Roberto S. Waack é biólogo, mestre pela USP e membro dos conselhos de Administração da Marfrig, da Wise Plásticos e do Instituto Arapyau. É cofundador da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, de Uma Concertação pela Amazônia, e membro do Comitê Estratégico do Science Panel for the Amazon.

Renata Piazzon é advogada e mestre em direito ambiental, diretora geral do Instituto Arapyau, cofacilitadora da Coalisão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, integrante do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social Sustentável e conselheira do GIF.E


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