17 novembro 2017

Carroças com GPS

Um espectro ronda o país – o espectro da mediania. Parcelas crescentes da sociedade e de formadores de opinião conjuram para consolidar a visão de que a oportunidade do desenvolvimento foi postergada. As projeções de crescimento da economia para este ano e para os seguintes são inferiores à média mundial e estão mais distantes ainda do que as de vizinhos como o Paraguai, a Bolívia e o Peru.

Um espectro ronda o país – o espectro da mediania. Parcelas crescentes da sociedade e de formadores de opinião conjuram para consolidar a visão de que a oportunidade do desenvolvimento foi postergada. As projeções de crescimento da economia para este ano e para os seguintes são inferiores à média mundial e estão mais distantes ainda do que as de vizinhos como o Paraguai, a Bolívia e o Peru.
Essas estimativas levam em conta que o ajuste fiscal em curso está bem estruturado e tem os requisitos para evitar uma crise de solvência da dívida pública do Brasil. Caso contrário, poder-se-ia esperar um resultado pior ainda e mais uma década perdida.
Evolui-se aqui, mas a uma velocidade menor que no resto do mundo. O país não se adapta à velocidade necessária. Registram-se avanços em alguns pontos, mas atitudes reacionárias em outros. Há medo de mudanças. Com isso, a defasagem com os demais países aumenta a cada dia que passa. A obsolescência é dissonante com uma característica típica do país: a ginga, o jogo de cintura dos brasileiros. Não surpreende ninguém o desempenho espetacular nesse quesito.
Em concursos de publicidade, em soluções empresariais, em novos produtos e em adaptações a situações difíceis, o Brasil é campeão, não tem rivais. Mas, justamente a característica mais forte é a menos utilizada para promover o crescimento.
O Carnaval é um exemplo emblemático. O espetáculo que se vê nas passarelas é fantástico. É admirado no mundo inteiro; não há outro lugar que consiga apresentar uma combinação de músicas e coreografia tão complexa e linda e aqui ela é superada ano após ano. É fruto do esforço de dezenas de milhares de amadores que dão um show de organização, sincronia e criatividade. É prova irrefutável de que há capacidade de renovação e gerencial no Brasil.
Um país que é literalmente rico por natureza. Tem grandes jazidas, clima tropical, hidrografia abundante, um litoral extenso e piscoso, belezas naturais variadas, uma topografia conveniente, um território continental, uma pirâmide populacional favorável, estabilidade institucional, um povo trabalhador e um empresariado dinâmico, para citar algumas de suas vantagens.
É paradoxal que, com esses atributos, o Brasil tenha um desempenho aquém do esperado. É incompatível com o potencial do país. Algo que preocupa quase todos no país e muitos no exterior.
A razão é o dogmatismo da política econômica. Esta tem alguns méritos, mas também tem falhas. A questão do controle do deficit primário é importante. Entretanto, há mais aspectos que têm que ser analisados. O que aflige mais é que uma mudança de estratégia sequer é cogitada.
A boa condução na economia é sempre uma adaptação às circunstâncias, observando bons princípios, e não uma estratégia rígida defendida com unhas e dentes, que é o que se observa.
Note-se que com a mudança de política econômica em 2016, a melhoria do cenário externo, a safra recorde muito acima das projeções iniciais, a liberação de R$ 40 bilhões dos inativos do FGTS e a aprovação de todas as medidas propostas pelo Executivo, o que se esperava era uma elevação das projeções de crescimento, não uma queda.
A razão do enfraquecimento da retomada do PIB é a obsolescência de suas estratégias. É causada pela sociedade e pelo governo que querem mudar, mudando quase nada. Um exemplo é o debate sobre a TJLP e a TLP. De um lado, os industriais querem mais subsídios num país em crise fiscal, do outro, o governo foca apenas em corrigir essa distorção, e os dois lados apoiam a perpetuação de um sistema financeiro obsoleto e ineficiente.
Atualmente, há países, como França, EUA e Japão, que não têm financiamento de bancos estatais e operam com margens (spreads) estreitas, prazos longos, volumes grandes e inadimplência baixa. Aqui é o oposto: o sistema é uma carroça com GPS. Tem tecnologia de ponta e marketing sofisticado e, ao mesmo tempo, arcabouço institucional arcaico e modelos de negócios retrógrados.
A consequência é que mais de 5 milhões de empresas têm anotações de inadimplência. Dessa forma, seu crédito é cortado e limitado às linhas mais caras. Como têm que pagar adiantado por material para produzir e vender, tornam-se inviáveis financeiramente, causando impactos nefastos no emprego.
Há mais carroças com GPS no Brasil. A estrutura tributária é outra. Sofisticada em tecnologia, mas antiquada no design, é complexa e regressiva (cobra proporcionalmente menos das rendas mais altas), tem distorções como a guerra fiscal e tributos em cascata e, mais grave de tudo, as propostas são de mais remendos apenas. Mudar para valer, jamais!
Emprego e políticas competitivas
A carroça mais danosa para o País é a do mercado de trabalho. Atualmente, há 15 milhões de lares, onde todos estão desempregados. É grave. Está sendo tratado como um problema conjuntural, que será resolvido com o tempo, sem notar que há um componente estrutural importante.
A geração de postos de trabalho, numa época de transformações céleres, depende de políticas cada vez mais competitivas. Na média, os países estão ajustando bem suas estratégias às mudanças e o desemprego mundial está caindo desde 2013. Alguns tiveram mais sucesso, como a Alemanha, o Japão e o México, com taxas abaixo de 4%.
Outros, como a Grécia, a África do Sul e o Brasil, ainda não conseguiram reformular adequadamente suas políticas e têm índices de desocupação acima de 10%. O desempenho de cada um, na redução da desocupação, reflete os efeitos das ações adotadas em quatro conjuntos de variáveis interrelacionadas: i. as inovações, ii. a globalização, iii. a elasticidade emprego produto e iv. o crescimento.

  1. Inovações aniquilam postos de trabalho em algumas empresas, mas também aumentam a produtividade do trabalho e criam outros empregos, com perfis diferentes em outros locais. Alguns países se adaptam mais rápido que outros às mudanças e usufruem seus benefícios.

Exemplificando, nos Estados Unidos de 2010 a 2015, o emprego no setor de tecnologia, de acordo com o Federal Reserve Bank of Saint Louis, cresceu 20,3%, e os salários subiram 20,8%. Empresas como Apple, IBM e Google se destacaram, gerando postos de trabalho naquele país.
Há setores no Brasil, como na produção de aviões, que agregam cada vez mais valor, mas, em média, o desempenho é fraco. Os empregos nos setores mais intensivos em tecnologia encolheram nos últimos anos.

  1. A globalização crescente ampliou o mercado e a concorrência para as empresas e os trabalhadores. Os investimentos que geram ocupações são canalizados para os países onde é menos oneroso produzir e empregar, para servirem de plataformas de exportação para o resto do mundo.

Há classificações internacionais que apontam quais são os mais competitivos. Na América Latina, o Brasil está em penúltimo lugar. Induzindo empresas multinacionais e brasileiras a se instalarem em países vizinhos, a empregar lá e vender aqui. Em vez de exportar bens e serviços, o País exporta postos de trabalho.

iii. A elasticidade emprego produto mede a variação no emprego dada a variação no produto. Supondo que o emprego cresça 1% quando o PIB aumenta 5%, seu valor seria 0,2, que é o resultado da divisão de 1% por 5%. Sobre o ponto de vista do emprego, é conveniente que esse coeficiente seja elevado, quando o PIB está se expandindo.
Uma aproximação de seu valor relativo é a eficiência do mercado de trabalho. É medida pelo Fórum Econômico Mundial, onde o Brasil figura na 117ª posição, entre 138 países analisados. Comparativamente, é ineficiente, com restrições que atrapalham a geração de novos postos de trabalho. A reforma trabalhista avançou em alguns aspectos, mas retrocedeu em outros e ignorou inovações que poderiam aumentar ainda mais a elasticidade emprego-produto.

  1. O crescimento do PIB é condição necessária, mas não suficiente, para impulsionar o emprego. Depende de que setores impulsionam o crescimento e de sua intensidade, que está fraca. Será positivo este ano e algo próximo aos 2% nos seguintes. Está aquém das expectativas de um ano atrás, quando a atual equipe econômica assumiu.

O País está superando vagarosamente a crise. O PIB vai crescer este ano, mas pouco. A velocidade de saída da recessão depende da exatidão do diagnóstico e da combinação das medidas adotadas. O ponto central deste artigo é que o diagnóstico da crise está incompleto e, se forem feitas algumas adaptações na política econômica, o Brasil pode voltar a crescer rapidamente.
Leon Tolstoi escreveu que todas as famílias felizes são parecidas; as infelizes são infelizes cada uma a sua maneira. O mesmo vale para crises. A que a economia brasileira atravessou é peculiar. O país está no que é conhecido como um equilíbrio perverso, ou de Nash, onde todos – governo, cidadãos, empresas e setor financeiro – poderiam estar numa posição melhor, se alguns ajustes fossem feitos.
Para resolver uma crise, não há uma receita universal que se aplique a todos os países, nem uma que sirva para um mesmo país todo o tempo. Cada caso é um caso. Na literatura econômica, há vários tipos de crises com magnitudes e velocidades diferentes: cambiais, fiscais, inflacionárias, quebras de safras, de choques de oferta, financeiras e de crédito.
A rapidez e a intensidade da solução dependem de um bom diagnóstico e da aplicação do tratamento adequado.
As estratégias de superação podem ser classificadas em três conjuntos. Um é o da austeridade, foi o que a Grécia adotou a partir de 2008; é a mais comum e a mais demorada e consiste na geração de superavits do setor privado.
Outra maneira de superar crises é chamada de moratória, que pode ser explícita como a Argentina, em 2001, ou através de uma alta brusca da inflação. Tem efeitos positivos no curto prazo, porém deixa sequelas graves, no médio prazo, como pode ser observado no país vizinho.
A terceira forma é a de acertos focados, como fez a Islândia na crise do Lehman Brothers, ou o Brasil com Getúlio Vargas na década de 1930.
Na história econômica brasileira temos o registro de muitas crises, algumas históricas, como a do ouro e a do encilhamento e outras mais recentes, como a da moratória mexicana em 1982 e a do Lehman Brothers em 2008. A questão é que a superação de cada uma delas foi resultado da capacidade do governo em adotar a saída mais adequada para a época.
As velocidades e intensidades das soluções dadas foram diferentes em todos os casos, dependendo das circunstâncias e dos condutores da política econômica do país.
Um exemplo de superação de crise a ser destacado é a do café. Em 24 de outubro de 1929, os Estados Unidos tiveram a queda da bolsa de valores que fez com que o PIB de lá despencasse. Com isso, a demanda de café brasileiro caiu e os preços do produto também.
As exportações em moeda forte caíram de 1929 a 1934, todos os anos. Mas, mesmo assim, já em 1932, o Brasil começou a crescer vigorosamente. A economia tupiniquim se recuperou rapidamente, enquanto o mundo ainda continuava em recessão. Getúlio Vargas escolheu a estratégia de atacar Aspectos Específicos da crise, com a queima de estoques de café, reformas e o desenvolvimento de algumas indústrias.
Crises:  Islândia,  Grécia, Brasil
Note-se que apesar de ter sido a maior crise mundial do século passado, o Brasil a superou mais rapidamente do que a maioria das economias. O mérito de Getúlio na época foi de agir sobre as causas corretas dos problemas, não dos sintomas.
Cada crise é diferente de todas as demais e cada país é único, ou seja, a Islândia, a Grécia e o Brasil são diferentes. Mesmo assim, é oportuno comparar o desempenho das duas economias europeias para saírem da crise.
O choque nos dois países foi forte, mas enquanto a Grécia adotou a austeridade para superar os problemas, a Islândia escolheu fazer acertos específicos. Os resultados mostram que a solução helênica deixa a desejar quando comparada com a islandesa.
Num primeiro momento, a crise bateu mais forte na Islândia, onde o PIB caiu mais que na Grécia, porém a recuperação foi mais rápida na Islândia, que no terceiro ano já estava no azul, enquanto que o país helênico só mostrou um número positivo, e mais fraco, no dobro do tempo.
Após sete anos, o PIB da Grécia é 26% inferior ao do início da crise, enquanto o da Islândia é 5% superior. Outros indicadores mostram o desempenho melhor da estratégia islandesa.
A Islândia também mostra uma melhora considerável no índice investimento/PIB que é uma variável chave para projetar o desenvolvimento de um país. A taxa grega era superior à islandesa no começo da crise, mas após dois anos, a vantagem foi invertida e, no ano passado, a taxa helênica era quase a metade da de seis anos antes, enquanto a da Islândia aumentou.
A queda no PIB da Islândia foi maior que o da Grécia, mostrando como o choque foi mais forte lá. Todavia, a partir do segundo ano, o desempenho islandês foi superior ao grego todos os anos. As projeções para os próximos cinco anos feitas pelo FMI mostram um desempenho parecido.
É fato que o nível da dívida da Islândia era 43,8% mais baixo que o da grega, todavia, depois de seis anos, a dívida helênica aumentou 50,2% (mesmo com os abatimentos conseguidos) e a islandesa caiu 15,3%; a diferença entre as duas aumentou para 109,3%. Portanto, uma variedade de desempenho considerável. Todavia, o indicador que mais se destaca é o do desemprego.
Enquanto na Grécia o desemprego está em 25,0% da População em Idade Ativa (PIA), na Islândia esse número é seis vezes menor e está em 4,0%.
A Grécia está no caminho de reduzir a dívida e o desemprego e aumentar o investimento e o crescimento, mas indiscutivelmente numa velocidade muito inferior à da Islândia.
É fato, são duas situações distintas, mas a grande diferença é que enquanto um país apenas reagiu à crise e adotou a estratégia da austeridade, o outro escolheu a de aspectos específicos e teve um desempenho melhor. O ponto a destacar é que o Brasil hoje, se adotar as medidas propostas, pode melhorar rapidamente seu desempenho.
A crise que o Brasil está acabando de atravessar é a maior da qual se tem registro; atualmente, o País tem 5 milhões de empresas inadimplentes, 60 milhões de cidadãos com registros negativos no Serasa,   12 milhões de desempregados e milhares de fábricas, comércios e serviços fechados.
A questão mais importante é identificar o tipo de crise que o país está experimentando, para aplicar o tratamento adequado. É quase consenso entre os analistas que é a dinâmica fiscal que gera falta de confiança e que deve ser enfrentada.
O que este documento aponta é um diagnóstico diferente da maioria e mostra que a crise foi causada por outros dois conjuntos de fatores, um estrutural e outro conjuntural.
Embora a dívida pública seja um problema que deve ser enfrentado, não é o maior responsável pela recessão que o país atravessa. Note-se que apesar do crescimento da dívida, o governo está pagando e honrando seus compromissos e o risco país está caindo, e não subindo.
O EMBI+, que mede o risco Brasil, está bem abaixo que o de um ano atrás. O investimento externo, que correspondia a 3% do PIB antes da crise, atualmente, supera os 4%, corroborando que o estado brasileiro é considerado solvente.
Entretanto, o governo está diagnosticando a crise como se fosse estritamente fiscal, e não o é. O fato é que a dívida do governo começou a crescer após o início da crise, ou seja, é consequência e não causa dos problemas (embora deva ser enfrentada).
A dívida pública só começou a aumentar rapidamente após o segundo trimestre de 2014, que foi o início da crise. Até esse momento, apresentava uma trajetória estável.
Note-se que o aumento da dívida/PIB é consequência da crise, um sintoma, não é a causa dela. Os gastos começaram a crescer como uma reação equivocada a ela e as receitas a cair por conta dela. Até 2013, inclusive, receitas menos despesas apresentavam um saldo positivo, portanto, contribuíam para reduzir o coeficiente de endividamento do governo, e não para aumentá-lo.
A rápida expansão da dívida pública é resultado da combinação de quatro elementos: o gasto público e os juros, que aumentam a razão, e a receita do governo e a expansão do PIB, que a reduzem.
O gasto do governo, que é o foco principal da política econômica, não é a causa principal nem da crise, nem do rápido crescimento da razão dívida pública/PIB.
Em números redondos, desde o primeiro trimestre de 2014 até julho último, a razão aumentou 22%, que está decomposto da seguinte forma: 7% pela queda do PIB, o denominador da fração, 3% pela queda de receita, 4% por conta do aumento de gastos e os 8% restantes causados pelos juros reais de carregamento da dívida.
A estratégia de controlar gastos tem que ser mantida, mas complementada com medidas adicionais. Há duas causas para o desempenho pífio das contas públicas, uma é a dinâmica do sistema financeiro. É um processo em que o encolhimento e o encarecimento da oferta de crédito se refletem em menos estoques, emprego e atividade. A segunda causa é estrutural – o esgotamento do modelo econômico.
A queda nas concessões tem início em 2014, quando começou a crise. Por conta do enxugamento do crédito, muitas empresas solventes, por problemas de liquidez e ou do alto custo do crédito se tornaram insolventes.
Há uma desalavancagem de empresas e famílias que querem diminuir seu endividamento, pagando mais à vista e, por outro lado, o uso maior do rotativo mostra que é o último recurso antes de se tornarem inadimplentes e que é escolhido por falta de oferta de outras linhas de crédito.
O saldo total que cresce com a taxa de juros e as concessões e cai com as amortizações, e a inadimplência está caindo em valores nominais. Outros indicadores, como a relação crédito/PIB também está diminuindo, apesar de que, comparativamente a outros países, está na metade do potencial.
Inadimplência assustadora
Os números apresentados pelo Banco Central do Brasil mostram que o aumento de margens começou a subir antes da crise, como antecipação de problemas das instituições financeiras para manterem sua rentabilidade. Todavia, no conjunto, agravaram as dificuldades. Taxas mais altas aumentam a rentabilidade no curto prazo e a inadimplência no médio prazo.
Os números da inadimplência são assustadores. Com o nome “sujo”, empresas e famílias têm seu acesso ao crédito comercial dificultado ou totalmente negado. Dessa forma, obrigando uma redução de estoques compulsória.
O aumento da inadimplência começou antes da crise. Nos quatro anos anteriores ao início da crise, quando a economia cresceu 17%, a inadimplência subiu para o setor bancário em 116% e para o setor não bancário (cartões e comércios), 64%.
Após o início da crise, agravou-se ainda mais, mas a relação causa efeito é da intermediação para a atividade econômica, e não no sentido contrário. Os números de recuperações judiciais requeridas apontam que começaram a subir antes da crise, é causa dela, e seu agravamento, consequência. É um redemoinho perverso que urge parar.
Se for considerado que a maioria das empresas que entram em recuperação judicial acaba, mais cedo ou mais tarde, falindo, as sequelas dos problemas financeiros são permanentes.
As causas da crise de crédito podem ser explicadas por um conjunto de quatro fatores que se sobrepõem. O primeiro é um choque de oferta. As incertezas políticas e a operação Lava Jato deterioraram a qualidade de crédito de um conjunto considerável de empresas, em especial a cadeia Petrobras, que consiste de cerca de 20 mil empresas fornecedoras, e as grandes construtoras, responsáveis por 5% do PIB. Agravando o quadro, estão as incertezas no processo que dificultam a avaliação da qualidade de crédito das operações desses segmentos.
Outro conjunto é um equilíbrio perverso de mercado. Uma questão central na teoria econômica, desde sua origem, é o preço e a quantidade de equilíbrio nos mercados em geral, incluindo o do dinheiro. São resultados das ações das ofertas e das demandas que interagem apresentando resul¬tados muito distintos, dependendo das características específicas do produto negociado, das condições tecnológicas, do acesso, da informação, da tributação, da regulamentação, dos parti¬cipantes, da localização e da interdependência entre elas.
Existem infinidades de estruturas de concorrência, e elas variam no tempo. A concorrência por si só não garante a eficiência, pelo contrário pode levar a equilíbrios perversos. Há falhas causadas por regulamentação inadequada, restrições tecnológicas, informação imperfeita, barreiras à entrada e condições econômicas que, em determinados contextos, oneram injustamente muitos, em benefício de poucos.
Não existe “livre concorrência” absoluta. A existência de direitos e obrigações para serem negociados depende de sua definição como tal pela sociedade e de como é protegida por leis. Boas regras bem cumpridas é que fazem bons mercados e são específicas para cada situação.
Existem armadilhas, resultados de comportamentos que levam a resultados perversos, em que lucros econômicos imediatos limitam resultados sustentáveis. A extração de madeira e as queimadas na Amazônia dão lucro a poucos por um curto período em detrimento de um desenvolvimento sustentado da região.
A pesca predatória é outro exemplo, em que os próprios pescadores são os mais prejudicados. Ações imediatistas que levam a perdas maiores ao longo do tempo para todos. O papel dos participantes desses mercados e de seus reguladores é destruir essas armadilhas com normas e incentivos que levem a melhores resultados.
Nos dois casos citados acima, a solução é regulamentar a exploração com práticas sustentáveis, proibindo queimadas, preservando certas áreas e proibindo pesca em determinados locais ou épocas. As restrições limitam algumas práticas gerando grandes benefícios a toda a sociedade por muito tempo. Já existem, mas falta fiscalizar.
No setor financeiro existem armadilhas com efeitos perversos para os bancos e a sociedade que podem ser desmontadas com os incentivos adequados. Corridas bancárias e bolhas especulativas são as mais mencionadas na literatura, entretanto, existem outras no SFN, como a crise de crédito que o País está experimentando.
A crise atual foi causada por colocar cada vez mais empresas e cidadãos na armadilha da dívida. A tentativa de cada banco melhorar sua posição no curto prazo piora a do conjunto.
A armadilha da dívida é uma situação em que novos financiamentos são necessários para quitar os existentes, a dinâmica torna-se perversa, com os credores exigindo mais garantias, oferecendo menos ou nenhuma linha e cobrando taxas cada vez mais altas.
Há uma destruição de riqueza. A intermediação financeira e a economia são prejudicadas e apenas alguns agentes têm lucros no curto prazo.
A armadilha pode ocorrer por fatores imprevistos, como um acidente, ou vendas aquém do projetado e até irresponsabilidade dos tomadores. Todavia, a dinâmica do setor bancário agrava o problema e em boa parte das situações de inadimplência ele é o responsável. Acontece por conta de um comportamento que faz sentido para cada instituição individualmente, mas que prejudica o conjunto.
A prescrição é clara: complicações têm que ser antecipadas e rapidamente enfrentadas. Ao primeiro sinal de deterioração na solvência de um tomador, deve-se cobrar o que é possível, reduzir seus limites de crédito, elevar as taxas e aumentar as garantias. Com isso, a instituição individual que for mais rápida consegue tirar (extrair) o máximo possível e minimizar suas perdas.
O ponto é que, em determinadas circunstâncias, esse princípio gera resultados perversos. Em situações de deterioração da confiança, a atuação de cada banco, tentando melhorar a sua condição, piora a do conjunto. Como todos cortam simultaneamente as linhas de crédito, há um enxugamento no mercado, e tomadores solventes, sem a redução da oferta de recursos, ficam inadimplentes por um problema de liquidez. O temor coletivo da piora da capacidade de pagamento de devedores é uma profecia que se autorrealiza.
Os problemas nos subprimes nos Estados Unidos, circunscrito a um segmento do mercado imobiliário, se propagaram a todo o sistema bancário; houve um aperto em todas as carteiras de financiamentos. Limites foram reduzidos, empréstimos deixaram de ser rolados e os critérios de concessão ficaram mais rígidos. A expansão do crédito, que foi um dos motores de expansão da economia norte-americana, se transformou em seu freio. O círculo virtuoso tornou-se vicioso, com a crise de confiança.
Há situações em que alguns emprestadores mudam intempestivamente as condições dos contratos de financiamento para obter lucros maiores no curto prazo e, com isso, ou impõem uma perda de capital ao tomador, ou o sufocam financeiramente. Projetos pessoais ou empresariais que são viáveis a uma dada taxa de juros deixam de sê-lo a custos maiores ou quando a liquidez do sistema desaparece.
O problema é agravado pela fragmentação dos relacionamentos. Boa parte dos agentes tem conta em mais de um banco e possui mais de um cartão de crédito, com limites de crédito que fazem sentido financeiro separadamente, mas em conjunto não.
Quando um cliente começa a aumentar o uso de alguns limites, todos os bancos começam a atuar de maneira a empurrar o cliente para a armadilha, com taxas mais altas e prazos mais curtos.
A dinâmica do sistema precisa ser vista como presente e futuro, a situação do crédito não é uma relação de equilíbrio. As pessoas olham somente para o curto prazo, as instituições também tendem a se comportar da mesma maneira: otimizar o ganho presente sem avaliar que no longo prazo a demanda irá cair em função da incapacidade de pagamento.
São situações de deterioração da confiança, como a atual, em que a atuação de cada banco, tentando melhorar a sua condição, piora a do conjunto repetido. Como muitos elevam os critérios de concessão, há um enxugamento no mercado, e tomadores solventes, sem a redução da oferta de recursos, ficam inadimplentes por um problema de liquidez.
O terceiro fator causador da crise de crédito é a diluição de dívidas. O processo é resultado da fragmentação do sistema e da dinâmica da crise, o conjunto de financiamentos apresentou uma deterioração de sua qualidade sistêmica.
Como tomadores têm múltiplos relacionamentos financeiros, quando sentem dificuldades em obter recursos em um tomador, recorrem a outro que empresta em condições piores. Com isso, a qualidade de crédito de toda sua dívida piora.
Usando a analogia da pesca. Não é necessário que todos os pescadores pratiquem a atividade de forma predatória; basta que alguns assim o façam, para que todo o conjunto seja prejudicado.
No crédito, todo o conjunto é prejudicado se uma parte dos ofertantes de financiamentos impuser condições draconianas aos tomadores, pois pioram a qualidade do todo.
A obsolescência é o quarto fator da crise de crédito. A inadequação institucional da intermediação financeira é a raiz mais importante dos problemas. É uma carroça. É praticamente a mesma da época da inflação alta, com prazos curtos, múltiplos indexadores, moeda remunerada, tributação ruim, compulsórios draconianos e uma regulação inadequada.
Até hoje, múltiplos indexadores
Há exatos 25 anos, tanto a taxa Selic como o CDI superaram os 1.000% ao ano, o que era necessário na época para preservar a moeda nacional. Todavia, passado um quarto de século, permanece a mesma estrutura operacional com múltiplos indexadores, moeda remunerada no curto prazo e oferta instável de crédito. Fazia sentido na época, em que a dívida pública era, literalmente, rolada diariamente através do over, em razão do deficit público elevado e da baixa classificação de risco do país, que tornavam a escassez de poupanças crônica e crítica.
A captação de poupança no sistema financeiro tinha que oferecer condições muito favoráveis para atrair os recursos excedentes do público. São outros tempos agora, entretanto, o padrão de originação perdura. Ilustrando, a maioria dos depósitos bancários de PF e PJ tem cláusula de resgate antecipado, pode ser sacada imediatamente de uma hora para a outra; assim como quase a totalidade é pós-fixado.
Analisado sob a ótica da dinâmica bancária faz sentido emprestar por prazos curtos. São intermediários, portanto.Se a captação é por prazos curtos e remuneração alta, também têm que emprestar com vencimentos de igual duração e taxas elevadas. Os bancos trabalham “casados”, captando uma moeda líquida e com preço variável e emprestando os recursos da mesma forma com uma margem. É um sistema que opera com baixos riscos de mercado, que se adapta rapidamente aos humores da economia e da volatilidade, dando solidez ao SFN.
Do ponto de vista dos depositantes no Brasil, é o melhor dos mundos, uma moeda remunerada com liquidez imediata e sem risco de taxa, mas para os bancos é uma matéria-prima cara que exige um caixa alto para fazer frente a saques inesperados e limita os prazos de aplicação.
Além do custo alto e dos prazos curtos, há outro problema grave: é que a moeda remunerada faz com que o efeito sobre a renda da política monetária seja perverso. Quando aumenta a taxa básica, eleva a renda dos aplicadores, e o incentivo a consumir sobe ao invés de diminuir. Isso é parte da explicação de a taxa de juros neutra no Brasil ser mais alta do que na maioria dos países.
Há também outro problema que é a injustiça do sistema de tributações de aplicações. A quase totalidade dos países isenta ou subsidia empréstimos. O Brasil atua no sentido oposto: em vez de tributar quem tem disponibilidades abundantes, o governo tira recursos dos tomadores de crédito que necessitam deles para fazer frente a dificuldades temporárias de caixa, para antecipar decisões de consumo ou para investir e é penalizado. Um despautério.
Enquanto o rendimento do trabalho tem uma alíquota máxima de 27,5%, o resultado de investimentos no mercado financeiro tem uma carga de impostos menor, Em alguns casos, não paga um centavo pelos juros recebidos.
Urge mudar o paradigma do SFN. O Brasil tem um sistema bancário sofisticado e seu desempenho é primoroso em vários aspectos, todavia é medíocre em outros. Atualmente, apresenta três problemas relacionados entre si: queda de rentabilidade, esgotamento precoce de sua capacidade de crescer e falta de legitimidade.
É possível mudar, ter mais crédito, mais barato e bancos mais rentáveis e com legitimidade. Ilustrando o ponto, no Chile, há dez bancos que operam lá e aqui, com rentabilidade semelhante e taxas sete vezes menores.
Trocar as  carroças  pode implicar  resultados  surpreendentes
A mudança é demorada e a agenda inclui: redefinições do papel dos bancos estatais, do cadastro, do câmbio, da certificação, da concorrência, da desfragmentação dos relacionamentos, do entulho inflacionário, da inclusão, da indexação, da legitimação dos bancos, de manter a marcação original, de metas, de potência da política monetária, da precificação de operações, da proteção ao consumidor, do redesconto, da regulação, da responsabilização, de subsídios cruzados, de tabelamentos e de transparência, para citar alguns.
O PIB do Brasil, nas últimas décadas, tem crescido a taxas inferiores às do resto do mundo. Urge começar a pensar no Brasil do futuro e começar a mudar. Fazer o que as economias que estão crescendo a taxas elevadas e com inclusão fazem.
O que fazer? Começar a trocar as carroças do crédito, da tributação, do mercado de câmbio, das agências reguladoras, da burocracia, dos cartórios, das concessões, da corrupção, do custo Brasil, das estatais, da estrutura fiscal, da inserção externa, das privatizações, dos privilégios, da saúde, da segurança, da transparência, do judiciário, da administração do estado, do funcionalismo público, da educação por veículos mais eficientes. Com algumas substituições apenas, podemos ter resultados surpreendentes.


Roberto Luis Troster é sócio da Troster & Associados, economista (prêmio Gastão Vidigal), doutor em economia pela Universidade de São Paulo e pós-graduado em banking pela Stonier School of Banking. Foi economista chefe da Febraban e da ABBC. Lecionou na USP e PUC-SP e é autor de livros e artigos. É consultor de empresas, governos e instituições financeiras, nacionais e internacionais, incluindo o Banco Mundial e o FMI. Email: robertotroster@uol.com.br

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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