10 outubro 2018

Choque Cultural: um Filósofo Desembarca na Corte

Maybury-Lewis meteu-se no Araguaia para estudar os Xavantes. Levi-Strauss, além dos índios, descreveu os intelectuais de São Paulo. Agora é a vez de um intelectual de São Paulo ir à Corte e perpetrar um livro com suas impressões.

Maybury-Lewis meteu-se no Araguaia para estudar os Xavantes. Levi-Strauss, além dos índios, descreveu os intelectuais de São Paulo. Agora é a vez de um intelectual de São Paulo ir à Corte e perpetrar um livro com suas impressões.
Conviveu com a Corte de Brasília por haver sido ministro da Educação, no governo Dilma. É um livro escrito por um intelectual, guindado subitamente a uma posição que não esperava. Levou para lá sua inteligência, sua cultura filosófica e nas humanidades. Mas, embarcou para Brasília ignorante dos bastidores do poder. Independentemente de outros méritos, impõe-se a honestidade e a espontaneidade da sua descrição de como funciona Brasília.
Poucos intelectuais viram ministros. E ainda menos descrevem as surpresas que os esperam. É mais do que surpresa, é um choque cultural. O livro revela a visão de fora, por quem passou a ser de dentro. É muito diferente de um político velho escrevendo as suas memórias. São olhos que veem coisas diferentes.
Para entender as reações de Janine ao que encontra, é preciso delinear seu perfil político. E, como os assuntos tratados são particularmente delicados, o próprio autor da resenha precisa se explicar, pois não há como comentar sem trair suas persuasões. Sou de centro-direita, pendulando entre o liberalismo e os imperativos de equidade. Mas, desalinhado de partidos e palavras de ordem, tendo mais para o herético. Já nos comentários sobre a economia, revelo a minha formação de base, em uma linha bastante clássica.
Janine se reconhece de esquerda, o que quer que isso signifique. Pelo que conheço dele e pelo que escreve, ser de esquerda é colocar em primeiro plano os temas de equidade. Ou para G. Steiner, uma insatisfação crônica com o status quo. O oposto seria um liberal, mais preocupado com liberdades e direitos individuais.
Até aqui, vamos. Mas, ele afirma que sempre votou no PT, embora nunca tenha se filiado. Pergunto, ao depositar o seu voto, qual versão do PT merece a sua lealdade? É o PT USP, íntimo dos grandes temas da social democracia? É o PT com raízes nas Comunidades Eclesiais de Base e na Teologia da Libertação? É o PT que embarca alguns autoproclamados comunistas? É o PT sindicalista, cuja meta é obter vantagens para seus associados?
Arriscaria dizer que seria um PT da clássica linhagem USP – hoje muito desfalcada. Mas, embora faça críticas sérias ao partido e suas gentes, não consegue esconder uma simpatia genérica pelo movimento. Costuma dar-lhe sempre o benefício da dúvida. Mas, cumpre registrar que não é um livro de memórias sectárias, o bem contra o mal. O autor critica ou elogia ambos os lados, sem quaisquer constrangimentos. Em particular, lança muitas farpas contra a falta de realismo da esquerda.
Coragem de descrever peripécias e erros no governo
Ao entrar em matéria, o primeiro comentário que se impõe é a honestidade intelectual e a coragem de descrever suas peripécias no governo, bem como seus erros. E não são poucas as suas dificuldades de mover-se em Brasília. Isto não é uma crítica a ele, mas o resultado de haver chegado sem o mapa da mina.
Uma primeira descoberta: ganhar um ministério é mergulhar em um mundo que alimenta os píncaros da vaidade. Há que cuidar-se para não ficar como outros dignitários que encontrava ao longo do dia.
Outra descoberta, de qualquer ministro, é que não adianta dar uma ordem. Se não repetir, se não cobrar teimosamente, se não acompanhar de perto, nada vai acontecer. Nesse particular, ele dá vários exemplos de ordens ignoradas. As que chegam a ser cumpridas são o resultado de muita insistência.
Pela minha percepção, por haver também frequentado os mesmos corredores, não se trata de a máquina ignorar um ministro intelectual. Por tudo que vi, ministro da Educação não manda. Ou melhor dito, pode mandar, mas ninguém obedece. Talvez em outros ministérios mandem mais.
A narrativa acompanha a sua descoberta dos códigos da burocracia e dos caminhos tortuosos do poder. Chega com um raciocínio lógico e linear. Pessoas no poder são dotadas de razão e agirão em linha com ela. Se é uma boa ideia, mando fazer, será feito. Se demonstro a lógica da proposta, será adotada.
Razão possuem seus interlocutores, mas a agenda é outra. Tateando, vai descobrir que o processo decisório nada tem de transparente ou linear. Não é a avenida iluminada da racionalidade, mas caminhos misteriosos e oblíquos. Quem, senão Janine, contaria melhor estas histórias?
Assumiu o MEC em um péssimo momento, para ele e para a nação. E, como admite, não teria sido convidado em períodos menos conturbados. Herda uma má vontade generalizada contra o governo. Convive com um clima hostil e um grau elevado de entropia na política. É uma armadilha após a outra. Quem se dizia amigo se revela inimigo.
Descobre também que a verdade não é praticada com frequência ou fervor na capital da República. Lembra o comentário de Millôr Fernandes de que “político é um sujeito que convence todo mundo a fazer uma coisa da qual não tem a menor convicção”. Não obstante, acha que, em tempos de crise, a verdade ainda é a melhor estratégia. Segundo ele, sua franqueza sempre desanuviou o clima.
Janine é benquisto e muito bem recebido pelas duas casas legislativas. Mas, daí a aprovarem o que ele precisa é outra história. Os reitores sabem que não há a mínima chance de conseguirem mais dinheiro. Mas, vão lá bradar por mais fundos, envenenando o diálogo. Uma observação sempre repetida é que em Brasília só se pensa em dinheiro. Todos são assim. E como os orçamentos já estavam exauridos ao tomar posse, é um diálogo de surdos.
A greve das universidades, que espoca logo ao tomar posse, é totalmente injustificada. De fato, apesar da crise, os aumentos foram substanciais e acima das outras categorias. Como é possível não entender isso? Essa é uma das suas perplexidades mais constantes. Para o ser racional que ele é, entender a irracionalidade é custoso. Mas, no fundo, não é irracionalidade, mas a cozinha do poder, trazendo outras razões, como conveniência política e interesses pessoais. O encanto do livro são estas pequenas e penosas descobertas.
Os dois mundos da esquerda
Quando auscultamos a esquerda brasileira, podemos detectar dois mundos diferentes. Há uma esquerda que é zangadamente contra avaliação, contra meritocracia, contra vantagens para quem se sai melhor e contra a cobrança de mensalidades. E, mais importante ainda, contra a ideia de eficiência, qual seja, obter mais resultados com os mesmos recursos. Há também a outra esquerda que aceita isso tudo e aplica na prática. Nesta categoria, citaria Fernando Haddad e Jorge Viana (quando era governador). E também nesta segunda linha está o nosso ministro da Educação. Em vários momentos, ele se queixa da falta de percepção para o fato singular de que, em um momento de penúria, obter mais resultados com os mesmos recursos é o melhor que se pode fazer.
Ao ler a descrição do que tentava fazer, podemos reconstruir a sua agenda no MEC. Com toda franqueza, da minha perspectiva, era uma agenda de temas menores.
O país não consegue alfabetizar em quatro anos, a evasão se acelera a partir de certa idade, a indisciplina e a violência na escola atingiram níveis alarmantes, as famílias, quando existem, não fazem a sua parte e as faculdades de educação são catastróficas. E por aí afora.
Não obstante, gastou enorme energia metendo-se em disputas sobre gênero, orientação sexual e raça. E, como admite, com poucos resultados.
Acreditou que tablets poderiam ter grande impacto no ensino e tentou fazer uma imponente iniciativa nessa linha. Por tudo que sei, jamais houve um programa bem-sucedido que fosse alavancado por tecnologia.
Apesar de entender suas limitações, mostrou certa fé no Plano Nacional da Educação. De minha parte, considero um péssimo documento: disperso, sem prioridades, despreocupado com custos e qualidade e tendo como grand finale a miragem de gastar 10% do PIB com educação.
Julgo também que acreditou demais nos parâmetros curriculares. Na época, pediu-me que os lesse e comentasse com franqueza. Não tive coragem, pois achei extensos demais, vagos, grandiloquentes, difíceis de entender e oferecendo poucas orientações claras para o ensino.
Na discussão da proposta de lei da “escola sem partido”, seus comentários são oblíquos e evasivos. Sua crítica à proposta é apoiada na ideia de liberdade. Onde iríamos parar, diante de uma tal legislação? Pessoalmente, julgo dificílimo formular uma lei que dê os resultados desejados. Mas, não é surpresa para ninguém o alto grau de doutrinação marxista ou o que lá seja nas nossas escolas. Pelo menos na minha cabeça, o problema existe. Não obstante, um libertário contumaz como Stuart Mills, propunha uma severa limitação ao que se pode ou deve dizer aos jovens, pois não têm ainda a capacidade de julgamento.
Comentários sobre Dilma são preciosos
O livro narra conversas com Lula e Dilma, das quais ele sai convencido de que ambos dão imensa prioridade à educação. Sou cético.
Ao contrário de muitos ministros que aterrissaram jejunos de conhecimentos sobre educação, Janine chega com visões essencialmente corretas. Mas, não é um estudioso ou pesquisador desses assuntos. Não conhece os resultados das boas pesquisas e os meandros da implementação.
Embora proponha uma narrativa das suas aventuras na educação, acaba se detendo longamente na Presidência. Seus comentários sobre Dilma são preciosos, embora a este escriba pareçam exsudar demasiada benevolência.
No lado positivo, relata longas conversas sobre os livros que ela leu ou estava lendo. Pelos títulos, encontra as suas leituras de muito bom nível. Leu livros sérios e é capaz de destacar neles aspectos relevantes. Vindo de quem veio, trata-se de um depoimento de peso, negando a percepção comum de que ela não lê e não se interessa por livros.
Como se imaginaria, ele confirma, mais de uma vez, as celebradas grosserias e destemperos da presidente. Nem perdoa e nem acha engraçadinhas. Mas, considera o assunto como menor.
Em contraste, julga que contribuiu para o fim sombrio do governo a sua arrogância e incapacidade de comunicação com o público e com os figurantes críticos de Brasília. Repetidas vezes são mencionadas situações em que uma aresta foi criada ou não foi aparada pela incapacidade da presidente de conversar corretamente com alguém – ou com a sociedade. Não duvido que tenha sido assim mesmo. Mas, como diz, entre a verba e o verbo, a primeira foi mais decisiva no desfecho.
No substancial espaço devotado à Presidência e suas crises, julgo estarem aí os pontos mais conflitantes com minhas percepções. Simplifico a sua interpretação: sem dinheiro e com péssima comunicação, o inevitável aconteceu. Isso tudo, agravado por uma oposição feroz. A meu ver, não está errado, mas omite outros aspectos até mais decisivos.
Não se pode subestimar a crise econômica, resultado de uma das gestões mais desastradas que se conhece em nossa história. Novamente citando Millôr Fernandes, “nunca se gastou tanto talento e dinheiro para levar o país à bancarrota”. Como justificar que, em meio a uma crise mundial e uma retração doméstica, persiste uma expansão irresponsável e totalmente atabalhoada dos gastos? Nas vésperas das eleições, ela sabia da profundidade da crise e mentiu? Ou o que é pior, não via a crise, demonstrando um erro gravíssimo de julgamento?
Mas, diz Janine: “não questiono se suas políticas agravaram a crise”. Essa frase é quase um resumo da embocadura política do livro. É verdade que não endossa asneiras, mas passa batido em alguns dos aspectos mais desastrados da Presidência.
Os desacertos com Joaquim Levy não são a guerra dos guarda-livros contra os anjos do bem. Simplesmente, as finanças haviam se tornado caóticas e era inevitável o amargor dos remédios propostos. Nisso, Janine fica em cima do muro. Mas, corretamente denuncia a sabotagem perpetrada pela oposição, inflando ainda mais os gastos.
Nesta época, pipocam notícias acerca do petrolão e outros escândalos. As falhas éticas do governo são fortes responsáveis pelo seu desgaste, tenha a presidente ou não se beneficiado pessoalmente. A denúncia do maior caso de corrupção jamais registrado no país não pode deixar de ter impacto na opinião pública. De fato, no curso do impeachment, quase dois terços dos brasileiros eram a favor dele. Sendo assim, não podemos acusar os políticos da oposição de se valerem deste desgaste. Tampouco, altera o quadro se formos psicanalisar os votos do legislativo. Denúncias de corrupção trazem uma degradação da imagem do governo que nada tinha a ver com as crises e os imbróglios dos gabinetes. Eis outro assunto ausente.
Atitude generosa para com a presidente
No que me diz respeito, a parte mais vulnerável do livro é a discussão das políticas econômicas, uma área que não está listada entre as suas competências.
Persiste em minha cabeça o grande mistério da sua atitude sempre generosa para com a presidente – em que pesem muitas críticas.  O episódio do lançamento do Pátria Educadora é revelador. O programa é concebido, escrito e lançado por Mangabeira Unger. Participei do evento de lançamento e estranhei a ausência do MEC. Ali mesmo, prenunciei o seu fracasso. De fato, Janine toma conhecimento do assunto pelos jornais. No mínimo, é uma desconsideração – mas ele a releva. Sem tirar o mérito de muitas ideias da proposta, é de profunda ingenuidade achar que o MEC vai comprar um programa feito alhures, imposto de forma truculenta e que anda na contramão dos instintos e cacoetes da casa. Não seria perfilhado nem no regime militar. É inexplicável não criticar a compreensão primária da presidente acerca de como burocracias compram ou não compram ideias.
Antes que o próprio soubesse do fato, alguém leu sua exoneração na internet e ligou para ele. Foi muito mais tarde que recebeu uma chamada do Palácio. É difícil entender a cabeça de uma pessoa que dirige um ministério, é dispensada de uma maneira particularmente descortês e ainda tem palavras gentis para com a autora da grosseria. Revela uma ordem superior de generosidade filosófica.
Grande parte das minhas críticas refletem discrepâncias nas nossas visões de mundo. Não é o certo versus o errado, mas visões diferentes do mesmo problema. Contudo, nosso dissenso não reduz minha admiração pelo livro e pelo autor. Seu maior interesse é a descrição de como funcionam a política e as decisões em Brasília. E no caso, são percepções de primeira mão, narradas por um intelectual honesto, corajoso e de sólida reputação. Deixa a Corte com suas competências gerenciais chamuscadas, mas com sua honra e seriedade consolidadas.w

Economista pela Universidade Federal de Minas Gerais, mestre pela Universidade de Yale e doutor pela Universidade Vanderbilt, ambas nos EUA. Pesquisador em Educação

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