04 janeiro 2021

Colônia do Sacramento e Buenos Aires: antagonismo e prosperidade

Ao se analisar o processo de consolidação da cidade e do porto de Buenos Aires, não se pode negligenciar o importante papel desempenhado por Colônia do Sacramento, cidadela sob domínio português por quase um século (1680-1777). A disputa pelo estuário do Prata opôs os dois impérios ibéricos por largo tempo, acarretando tanto enfrentamentos bélicos como também o desenvolvimento econômico da fronteira e a atual conformação geopolítica da região, só definida algum tempo após a independência das antigas colônias. A configuração dos limites platinos se arrastou por quatro séculos e adentrou o início do século 20. Essa relação ambígua, ao mesmo tempo hostil e economicamente virtuosa, começa ainda no século 16.
Logo após sua segunda e efetiva fundação em 1580, Buenos Aires manteve com o Rio de Janeiro um comércio intenso, embora oficialmente proibido. Questões hereditárias fizeram com que o rei de Espanha, Felipe II assumisse também o trono de Portugal. É a chamada união ibérica: embora permanecessem os dois impérios com administrações independentes houve um relaxamento das tensões nas fronteiras coloniais.
Neste período (1580-1640), o contato do sudeste brasileiro e mesmo da Bahia com a região do Prata foi intenso. Do Rio de Janeiro partiam barcos carregados de açúcar, aguardente, tabaco e escravos africanos. Retornavam de Buenos Aires com couros dos pampas e moedas de prata de Potosí. Havia mesmo uma comunidade de judeus cristãos novos portugueses em Buenos Aires, dedicados ao comércio, ofícios urbanos e comércio de escravos africanos.
A partir de 1621, com a ascensão do novo favorito do rei, o conde-duque de Olivares, a anteriormente autônoma administração imperial portuguesa passa a sofrer interferências do centralismo de Madri, gerando insatisfações em setores da nobreza e na população em geral. Essa mudança de tom repercutiu no Prata com um maior rigor no controle de mercadorias entradas pelo porto de Buenos Aires, notadamente os escravos africanos. Uma alfândega é criada em Córdoba para impedir o livre trânsito entre Buenos Aires e Potosí.
O fim da união ibérica
Mas, tudo mudaria a partir de 1640. A política centralizadora e autoritária de Olivares aumentou a indignação da população portuguesa, criando um movimento nacionalista que resultou na tomada do poder local pela casa de Bragança: D. João IV assumia o trono de Portugal, em momento de grande fragilidade da Espanha. Como consequência Buenos Aires foi explicitamente impedida de continuar comerciando com o Rio de Janeiro, estimulando o contrabando, mas sem a mesma intensidade do fluxo de trocas anterior. Comerciantes do Rio de Janeiro e de Lisboa ressentiam-se dessa quebra nas transações.
A partir de 1640, o império português viu-se às voltas com poderosos inimigos. Os espanhóis relutavam em reconhecer a restauração bragantina e os holandeses permaneciam em guerra com os portugueses, tanto na Ásia, África e América. A fragilidade do império marítimo era enorme. A união das coroas havia sido prejudicial aos interesses comerciais portugueses. A quebra da antiga aliança de negócios com os holandeses foi devastadora. Além disso ocorreu o crescimento da influência da Inquisição nas últimas décadas do século 16, perseguindo os judeus e os cristãos novos, prejudicando sensivelmente o comércio, o motor da expansão marítima.
Muitos mercadores de origem judaica mudaram-se para Londres e Amsterdam, levando consigo conhecimentos comerciais e náuticos. Várias praças comerciais importantes foram perdidas no Oceano Índico, na África e na América. As brasileiras, Bahia e Pernambuco, foram recuperadas, com decisiva participação de brancos, mestiços, indígenas e negros. E Angola foi retomada a partir de uma armada formada no Rio de Janeiro pelo governador Salvador Correia de Sá, envolvido no tráfico negreiro, em 1643. No entanto, São Jorge da Mina, Malaca, Ceilão e Ormuz foram definitivamente perdidos
Em meados do século 17, o império português estava vulnerável e descapitalizado. Sem o ouro da Mina, da feitoria de Antuérpia e da prata de Buenos Aires, coube a Portugal atravessar uma terrível crise de liquidez monetária. Para piorar a situação o preço do açúcar e do tabaco, então as principais fontes de arrecadação do império, começaram a cair a partir de 1670, quando aparece em larga escala a produção de ambos os produtos no Caribe.
É dentro desse contexto de saudosismo das trocas platinas que o império português decidiu fundar uma cidade defronte a Buenos Aires, na margem oposta do rio da Prata, local atualmente em território uruguaio. Esta é a origem de Colônia do Sacramento, atrevida cidadela que procurava restabelecer o fluxo de comércio com a América espanhola, sensivelmente prejudicado.  Além disso, a presença portuguesa no rio da Prata era uma obsessão estratégica desde o início do século 16.
As primeiras cogitações apontavam para Maldonado, ao norte do estuário, já na orla marítima. Estava mais próximo de Laguna, Paranaguá, Santos e Rio, portos que poderiam atender com facilidade a um eventual socorro à nova cidadela. Em 1677, uma bula papal criava o Bispado do Rio de Janeiro, definindo sua jurisdição no território compreendido entre o Espírito Santo e o rio da Prata (“usque ad Flumen de Plata”). Passa então a ser pensada a construção de uma fortificação na ilha de São Gabriel, próxima à península que futuramente abrigaria efetivamente a praça-forte de Colônia do Sacramento. Ao mesmo tempo, a Coroa concedia a João Correia de Sá, filho de Salvador, a capitania de Santa Catarina.
Nesta época Buenos Aires era um pequeno porto com cerca de 8.000 habitantes, atrofiado pelo centralismo de Lima, a qual monopolizava a rota de Sevilha por Portobello e sediava a aduana da prata de Potosí. Nas pastagens próximas ao porto estancieiros campeavam o gado selvagem descendente das criações da primeira fundação, ainda remanescente. Os comerciantes, por seu lado, fugindo ao controle e monopólio do norte, que impunha uma cadeia de revendas de Lima a Buenos Aires com preços cumulativos, praticavam o contrabando com portugueses, ingleses, holandeses e franceses.
Expedição com brasileiros
Em maio de 1679 chegava ao Rio o experiente militar D. Manoel Lobo, herói português das campanhas contra os espanhóis na península ibérica.  E prontamente já começou a organizar a expedição, contando com os cariocas e os paulistas. Em janeiro de 1680 desembarcou perto da ilha de São Gabriel e começou a construção da fortaleza. Muito incomodado, o governador de Buenos Aires, José de Garro, iniciou os preparativos para um ataque, após algumas advertências. Muito aquém do planejamento e esmero construtivo praticado pelos portugueses nos séculos 15 e 16 na África e na Ásia, a pequena cidadela seria ocupada e arrasada pelos hispânicos, auxiliados por 3.000 índios guaranis das missões jesuíticas. Manuel Lobo foi preso e levado a Buenos Aires, enfermo. Dois anos após, a península seria devolvida aos portugueses como consequência de um tratado de paz na Europa.
A fortaleza foi refundada em 1682. Manuel Lobo faleceu antes dessa reintegração. As condições eram difíceis e a convivência complicada. Dentro da cidade fortificada habitavam soldados, prostitutas, comerciantes, famílias de colonos, religiosos e escravos africanos. Na última década do século 17, o porto de Colônia e seu entorno teve uma fase próspera iniciada com a administração de dom Francisco Naper de Lencastre (1689-99), com a criação de estâncias para abrigar o gado selvagem recolhido nas imediações, fruto da soltura de animais propositalmente soltos pelos espanhóis no atual território uruguaio, com anuência dos indígenas charruas, senhores daqueles campos.
Mas, novos confrontos na Europa entre os impérios ibéricos criaram condições para um novo cerco por parte de forças de Buenos Aires. Os reforços de Lencastre na muralha foram insuficientes com o novo ataque ocorrido em 1705, com outra ocupação e destruição pelos espanhóis e guaranis, mais uma vez como sequela de hostilidades na Europa. O Tratado de Utrecht, assinado na Europa somente em 1715, após a guerra de sucessão espanhola, estabeleceu novamente a devolução de Colônia a Portugal, com apoio da Inglaterra às pretensões portuguesas. O brilhante embaixador português D. Luís da Cunha mantinha ótimas relações com os ingleses, sendo amigo pessoal do monarca britânico. A situação econômica do império português melhorara substancialmente com a descoberta de ouro no Brasil e sua crescente produção. O Rio de Janeiro firmava-se como o grande porto brasileiro. A principal joia da coroa passava a ser o Brasil, enquanto decrescia o comércio com a África e a Ásia.
Começa em 1716, uma nova fase de Colônia, com outra reconstrução organizada a partir do Rio de Janeiro, ao qual era subordinada administrativamente. De 1715 a 1735, houve um período de prosperidade, com formação de boas estâncias na área envoltória. Em 1735/36, Colônia sofreu outro cerco, mas desta vez conseguiu resistir. Como consequência desse bloqueio passava a existir uma mudança importante na estratégia de ocupação do sul pelos portugueses. Em 1737, ocorre a fundação de uma fortaleza e de um povoado que dará origem à cidade portuária de Rio Grande, bem ao norte de Maldonado, na confluência das lagoas Mirim e dos Patos com o oceano. O panorama geopolítico havia mudado muito com o ouro de Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás. Regiões anteriormente desconhecidas e sem a presença de europeus no centro-oeste eram definitivamente ocupadas pelos paulistas e portugueses, antes dos hispânicos.
A partir de então, o porto de Rio Grande passa a ser priorizado como ponto de apoio estratégico para a colonização portuguesa do sul, papel antes desempenhado por Colônia. Sobretudo como garantia da defesa das tropas de Viamão para Minas Gerais. Afinal, desde 1730 havia sido melhorado o caminho terrestre dos pampas para as Minas Gerais, que passa a receber vacas, cavalos e muares em estado selvagem vindos do sul, passando por Sorocaba e São Paulo.
E daí em diante Colônia ficou restrita mais aos muros da cidade e de algumas estâncias na península, pois a ocupação dos campos da banda oriental do rio Uruguai tornara-se perigosa, com frequentes pilhagens por parte dos espanhóis. E, além do mais, o gado selvagem já era escasso nas proximidades e ainda farto no atual território do Rio Grande do Sul. Mas, mesmo assim, a atividade comercial com Buenos Aires continuou intensa, ocorrendo o abastecimento tanto pelo porto, como também por terra, complementado com transações com os charruas.
Enquanto não se definiam as fronteiras na banda oriental, Portugal tomava iniciativas para consolidar a ocupação da área mais próxima ao litoral, ao norte de Rio Grande, assentando colonos açorianos em Santa Catarina (1748) e no rio Guaíba (1752 – Porto dos Casais, que dará origem à atual Porto Alegre). Colônia passa então a ser vista muito mais como uma peça no tabuleiro a ser sacrificada em troca de territórios. Sua fase pioneira de integração com o Prata sucumbia a novas realidades que alteravam as prioridades portuguesas para a região e mesmo sua importância relativa no comércio com Buenos Aires a partir de 1748, quando começam a ser autorizadas progressivamente comunicações marítimas diretas com Cádiz, Barcelona e La Coruña. Mas, ainda restava o interesse portenho pelos produtos tropicais brasileiros e os escravos africanos.
Charruas e minuanos
Em relação de Buenos Aires com Colônia oscilou muito com o tempo. Os momentos de paz predominaram, refletindo a hegemonia dos comerciantes em detrimento dos proprietários de terras em Buenos Aires O bom relacionamento dos portugueses com os charruas e minuanos, aos quais vendiam tabaco e aguardente de cana de açúcar do Brasil e em contrapartida conseguiam o acesso ao gado selvagem, irritava profundamente os estancieiros portenhos. Mas, era mesmo decisiva na questão da paz a participação dos governadores espanhóis. Os corruptos, aos olhos da coroa espanhola, ou pragmáticos, ao olhos dos portenhos, aceitavam as benesses do contrabando e faziam vistas grossas para o comércio – sempre proibido por Madri.
Em menos de um século, Colônia seria conquistada 3 vezes por tropas reunidas em Buenos Aires e destruída por duas vezes. Apesar dessas interrupções dramáticas na presença portuguesa, ressonância de hostilidades entre os reinos ibéricos na Europa, existiu um comércio intenso, permitido ou não, entre Buenos Aires e Colônia do Sacramento, durante mais de 80 anos. Esse intercâmbio teve repercussões vantajosas para os dois lados ao se atenderem necessidades recíprocas.
Colônia do Sacramento proporcionou a formação de algumas fortunas no Rio de Janeiro, engordou os ganhos de destacados comerciantes lisboetas e incentivou a ocupação dos territórios do sul brasileiro. Todos os grandes comerciantes de Colônia mantinham boas relações em Buenos Aires. Ao mesmo tempo, a existência de Colônia contribuiu decisivamente para a formação de uma identidade local aos portenhos e aos moradores de Córdoba, Tucumán, Santa Fé e Corrientes, a qual seria o embrião de um sentimento local platino. A presença portuguesa tão próxima a Buenos Aires fez aumentar sua importância estratégica relativa no império espanhol como centro do poder militar na região. Em 1680, quando foi fundada Colônia do Sacramento, Buenos Aires tinha cerca de 8.000 habitantes, vivendo precariamente. Um ano após a posse definitiva de Colônia pela Espanha, o censo de 1778 apontou 24.000 habitantes, o triplo, quase um século depois.
Em 1748 começa a haver um relaxamento do monopólio comercial e aduaneiro de Lima com a autorização de 15 viagens anuais diretas de Buenos Aires aos portos de Cádiz, Barcelona e La Coruña. Os portos de Callao (Lima), na América do Sul, como Cádiz (Sevilha) na Espanha, perdiam seus privilégios de exclusividade. Apenas três anos após serão 170 registros de permissão por ano. Mesmo assim, o comércio com Colônia permanecia, sobretudo pelo interesse dos portenhos no suprimento dos produtos tropicais brasileiros que os portos espanhóis não podiam atender.
Desde a primeira administração de Pedro de Cevallos, iniciada em 1756, a cidade passou a cuidar da limpeza das ruas, que foram elevadas para permitir o escoamento de águas pluviais pelas valetas laterais. Novos caminhos e ruas foram abertos. Era então uma cidade razoavelmente equipada de serviços que começava a se preocupar com posturas municipais para adequar convenientemente a ocupação de um espaço territorial urbano em contínua expansão. Décadas depois, no início do século 19 serão 40.000 moradores. Cevallos foi o agente político e militar consolidador da hegemonia portenha na região, culminando na escolha da cidade para sediar o Vice-Reinado do Prata, independentemente de Lima em 1776. Com a Lei de Livre Comércio, ele resgata ao porto sua verdadeira identidade, liberando-o plenamente para sua vocação comercial, com repercussão na sua importância política.

JOSÉ ALFREDO VIDIGAL PONTES é historiador e jornalista. Autor dos livros: A política do café com leite: mito ou história? e Revolução de 1932: o caráter nacional de um movimento democrático

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