09 janeiro 2019

Conservadores e Liberais

Ideias orientam ações que tanto podem conduzir ao bem coletivo, por mais variadas que sejam as suas significações, quanto podem conduzir à anomia social e, em casos mais graves, a crises institucionais. Decisões políticas estão baseadas em ideias, por mais variáveis que essas sejam. O quadro de ideias que tínhamos até esta última eleição era amplamente dominado pela esquerda, seja em sua vertente dita socialdemocrata, seja em sua vertente petista, que remonta à experiência comunista do século XX, de cunho revolucionário, embora o PT tenha oscilado em assumir explicitamente esta tradição.

Ideias orientam ações que tanto podem conduzir ao bem coletivo, por mais variadas que sejam as suas significações, quanto podem conduzir à anomia social e, em casos mais graves, a crises institucionais. Decisões políticas estão baseadas em ideias, por mais variáveis que essas sejam. O quadro de ideias que tínhamos até esta última eleição era amplamente dominado pela esquerda, seja em sua vertente dita socialdemocrata, seja em sua vertente petista, que remonta à experiência comunista do século XX, de cunho revolucionário, embora o PT tenha oscilado em assumir explicitamente esta tradição. Eram, portanto, essas ideias que norteavam o processo decisório político.
Decisões políticas são tomadas segundo determinados padrões de pensamento que orientam nossas escolhas. Há diagnósticos de situações que seguem determinados critérios e concepções, que selecionam dos fatos aqueles aspectos que ganharão, propriamente, o nome de realidade. Aquilo que consideramos como “realidade” é um recorte que fazemos dos fatos segundo uma abordagem presidida por certas ideias que orientam, então, a nossa escolha. Faz-se então uma espécie de retrato do que é tido por real.  Quanto mais apurado for o recorte que nos dá acesso aos fatos, mais chances se oferecerão a uma decisão exitosa. Ou ainda, quanto mais precisa for a “realidade”, selecionada por assim dizer, mais próxima estará dos fatos retratados. Se um médico não bem fizer o diagnóstico de uma doença, confundindo-se nos sintomas e em certas abordagens, de nenhuma eficácia serão os remédios prescritos.
O quadro eleitoral mudou a face do país. Novos parlamentares, novos governantes. Os padrões que vinham orientando a conduta dos políticos sofreram uma brusca transformação, desde a importância da televisão, que perdeu a sua força em detrimento das redes sociais, até a afirmação do antipetismo como ideia transformadora. A ideologia de esquerda perdeu a sua aderência, abrindo espaço para a emergência de novas forças. Forças essas que começam a preencher o vácuo de ideias deixado pelo PT e por seus partidos e movimentos satélites. Mais particularmente, ainda, não estamos diante de uma mera transição de um governo a outro, mas do surgimento de um outro que expõe uma natureza própria, em muito distinta do anterior. Ou seja, estamos diante não apenas de uma mudança de governo, mas de um exercício de poder de outro tipo.
Agora, nesta última eleição, é como se a máscara do PT tivesse caído, adotando o partido um alinhamento com o “socialismo do século XXI”, para além de sua histórica afinidade política com Cuba. O desprezo pelas regras democráticas e constitucionais, personificado na narrativa do “golpe” e da “perseguição política” de Lula, condenado em quatro instâncias do Judiciário, bem ilustra o desrespeito ao Estado de Direito. É como se a Constituição e a lei a eles não se aplicassem. Mais concretamente, a novidade do “socialismo do século XXI” consiste em sua manipulação das regras democráticas para a abolição mesma da democracia, ou seja, as regras democráticas só servem enquanto instrumentos para a conquista do poder, passando, depois, a serem desrespeitadas. A implantação da ditadura na Venezuela segue exatamente este percurso, levando sua população à miséria e à violência.
Foi isto, precisamente, que o PT procurou fazer ao tentar levar um condenado preso à presidência da República, como se se tratasse de uma ferramenta da “soberania popular”. Talvez o seja, para empregar uma expressão de Talmon[1], a saber, a da democracia totalitária, segundo a qual a dita vontade popular seria ilimitada, cabendo-lhe julgar o justo e o injusto, o bem e o mal, ao arrepio de qualquer norma constitucional. Não haveria nenhuma barreira legal a controlar o seu exercício. Seria ilimitada, por definição arbitrária, e o partido revolucionário seria a sua expressão e liderança. Ele “interpretaria” a soberania popular, via emprego da demagogia. Seria o seu veículo e o seu senhor.
As disputas eleitorais, então, articulavam-se em torno da oposição entre PT e PSDB, como se o destino da sociedade brasileira se reduzisse a optar entre uma social-democracia tucana e um partido que, mascaradamente, dizia seguir a democracia, apesar de algumas tendências suas, genuinamente, sinalizarem para uma forma de social-democracia. Entretanto, esses últimos não prevaleceram. Note-se que os tucanos tiveram o objetivo de trazer para o Brasil a experiência do trabalhismo inglês[2] e a da social-democracia alemã, embora não usufruíssem de nenhuma base sindical, ao contrário de seus congêneres europeus. Suas referências remontariam a Clement Attle, no Reino Unido, ou a Eduard Bernstein e Willy Brant na Alemanha.
PT e tradição marxista
Ocorre que o PT permaneceu arraigado, de uma forma ou de outra, à tradição marxista e à sua vertente católica da Teologia da Libertação, fortemente criticada e condenada, aliás, pelo Papa Bento XVI[3] e, antes, com o ainda Cardeal Ratzinger[4]. Claramente, seus referenciais teóricos não eram os mesmos, apesar de os tucanos alimentarem a esperança de uma eventual aliança entre supostas almas irmãs, que não gozavam entre si de nenhuma fraternidade. Tanto isto é verdade que os petistas sempre consideraram os tucanos como de direita, dizendo com isto que a social-democracia não era uma corrente de esquerda. Os tucanos foram vítimas de sua própria ilusão, reféns de seu autoengano. Diria que, assim como Willy Brant terminou caindo por um obscuro episódio de espionagem orquestrado e manipulado pela ex-Alemanha Oriental, pelos comunistas, os tucanos foram logrados pelos petistas.
Do ponto de vista eleitoral, os valores de esquerda eram considerados como balizas pelos dois contendores, com a pretensão de que seriam, supostamente, valores nacionais, por todos reconhecidos. Ser de direita era uma espécie de nome feio, algo a ser evitado, inclusive, pelos que se reconheciam nesta corrente de pensamento. No seu interior, operava uma espécie de jogral. Os tucanos faziam uma leve inflexão à direita, para capturar os votos dos descontentes com estes ditos valores “comuns”, enquanto os petistas faziam um movimento equivalente em direção ao centro, como na famosa Carta aos Brasileiros de Lula em sua primeira campanha vitoriosa para presidente da República. Assinale-se que este documento não foi jamais reconhecido enquanto documento partidário, não representando, ideologicamente, o partido.
O jogral, durante muitos anos, tornou-se extremamente confortável para os dois atores, como se nenhuma alternativa existisse fora deles. Acomodaram-se nos seus respectivos espectros ideológicos, como se não houvesse qualquer outra forma de vida inteligente. Espelhavam-se um no outro e nada mais viam, recusando-se a ver que a própria sociedade estava mudando, não mais se adequando aos seus padrões mentais. Tão confortáveis se sentiam que passaram a considerar o “politicamente correto”, refúgio de uma esquerda que tinha ficado momentaneamente órfã com a queda do Muro de Berlim, como se fosse algo universal, algo, inclusive, que deveria ser colocado goela abaixo dos que resistiam a fazê-lo. Desprezaram profundamente sentimentos e concepções conservadoras da sociedade. Enquanto “iluminados”, tentaram impor o seu “esclarecimento”.
Neste meio tempo, valores básicos da sociedade foram literalmente desconsiderados. O Estado passou a não se ocupar da segurança física e patrimonial das pessoas, como se este fosse um assunto social, que seria resolvido “naturalmente” pela melhoria das condições sociais. O resultado foi o crime generalizado, havendo o politicamente correto adotado a posição de defensor dos direitos humanos, aplicados preferencialmente à defesa dos criminosos. No período governamental petista, o direito de propriedade, valor fundamental de uma sociedade livre, foi claramente desrespeitado, principalmente, no campo brasileiro, graças às invasões do MST e congêneres. A esquerda urbana aplaudia. Mais recentemente, o mesmo processo implantou-se nas cidades brasileiras, através de uma outra denominação, MTST, não respeitando tampouco o direito de propriedade nas cidades. Ambos movimentos, de cunho marxista e revolucionário, foram e são fortemente apoiados pelo PT e por outros partidos de esquerda. Apenas para lembrar: o MST é uma criação da Comissão Pastoral da Terra, braço esquerdista da Igreja Católica. Os tucanos, no governo Fernando Henrique, apreciavam estes movimentos de esquerda e criticavam fortemente os “ruralistas”, considerados como “latifundiários”. A afinidade ideológica era explícita.
Cabe aqui um parêntese a propósito da apropriação esquerdista, ideológica, da doutrina dos direitos humanos. Um dos seus pontos históricos mais importantes consiste na luta do célebre físico, Andrei Sakharov, pai da bomba de hidrogênio soviética, pelas liberdades em um regime comunista. Tornou-se ele um símbolo internacional da luta pelos direitos humanos[5]. Segundo ele, a significação desses direitos provinha do combate ao totalitarismo, em sua opressão das liberdades e dos direitos individuais, dentre os quais destacavam-se a liberdade de imprensa, de expressão e de circulação das pessoas. E esta luta, por ser humana, extrapolava os limites territoriais de um Estado determinado, passando a vigorar enquanto princípio válido para todos os Estados e, neste sentido, humanos em sua acepção de universais. Ou seja, estamos diante dos princípios mesmos do liberalismo político em sua formulação dos valores incondicionais oriundos dos direitos individuais, particularmente importantes na luta contra os regimes totalitários. Logo, pode-se dizer que a defesa dos direitos humanos, neste contexto que lhe confere a sua verdadeira significação, provém dos combates pelas liberdades e contra sua opressão e aniquilação totalitárias. Em outros termos, poder-se-ia igualmente dizer que, em termos “ideológicos”, os direitos humanos seriam valores da “direita”, e não da esquerda.
Luta pelos direitos humanos apropriada pela esquerda
Ora, a luta pelos direitos humanos foi apropriada pela esquerda, transferindo-a para uma luta pelas minorias e, mais particularmente, tornou-se um instrumento contra os direitos individuais e a própria democracia, no apoio a “movimentos sociais” de tipo revolucionário, que lutam pelo “socialismo”, forma, hoje, mais palatável para a opinião pública do “comunismo”. Isto é, os defensores dos direitos humanos no Brasil, em boa parte, são os que defendem políticas liberticidas em seus apoios à Venezuela chavista e de Maduro e à ditadura castrista em Cuba. São os mesmos que não respeitam o direito de propriedade nem o Estado Democrático de Direito. São, ainda, os que apregoam o “controle social dos meios de comunicação”, que nada mais é do que uma ferramenta para introduzir a censura e cercear a liberdade de imprensa e de expressão. Tal controle deveria ser mais bem denominado “controle partidário – petista – dos meios de comunicação”. Seria, precisamente, o contrário do que era defendido por Sakharov.
Ocorre que o PT, no governo da República, demonstrou a sua clara natureza não democrática, apelando para o crime e a corrupção enquanto instrumentos de manutenção do poder. Abandonaram a antiga bandeira da “ética na política”, entregando-se de corpo e alma à criminalização da política. O corpo foi o aparelhamento do Estado em toda a sua estrutura; a alma foi a renúncia a qualquer valor de moralidade pública e de apreço pela democracia, pelo Estado Democrático de Direito, como de validade universal. O Estado passou a ser tido por uma espécie de “coisa sua”, tratando os seus opositores como inimigos, potencialmente, portanto, a serem eliminados. Não é mera coincidência que seus opositores foram considerados nas últimas eleições “fascistas”, como se este opróbrio os desconsiderasse moralmente e os inviabilizasse politicamente. É o célebre lema petista do “nós” contra “eles”. Na verdade, tal formulação nada mais expressa do que sua difícil convivência com o outro, não o reconhecendo. Não consegue nem conviver com seus semelhantes, como bem demostraram todas suas jogadas moralmente desprezíveis contra Ciro Gomes e Marina Silva nesta e nas últimas eleições, pois seu único objetivo era hegemônico: impor a sua própria posição.
O cenário muda com a atual eleição. A polarização PSDB/PT desaparece, esse último partido ainda conseguindo chegar ao segundo turno. Note-se, aqui, que tal “feito” se deve à região Nordeste e aos setores de baixa renda e escolaridade; ou seja, os “progressistas” estão enraizados nos setores menos escolarizados e de renda até um salário mínimo. Os “esclarecidos” apoiam-se nos menos “esclarecidos” da população brasileira, os que penam em sua labuta pela sobrevivência e nem conseguem ler adequadamente. Os setores verdadeiramente esclarecidos da sociedade brasileira abandonaram os seus líderes iluminados, com as ressalvas de sempre de artistas que só a eles representam.
No primeiro turno, tivemos a novidade do deputado Jair Bolsonaro, que defendeu ideias conservadoras, e do empresário João Amoedo, que se reivindicou de ideias liberais, embora esse último tenha evitado se comprometer com temas controversos de costumes como o do aborto. Contudo, o que importa aqui ressaltar é que valores conservadores e liberais passaram a ser representados eleitoralmente, expondo um cenário diante do qual tanto os tucanos quanto os petistas ficaram desorientados. Os tucanos afundaram enquanto os petistas sobreviventes apegaram-se a uma narrativa inverossímil, procurando desresponsabilizar-se de seu imenso fracasso na gestão da coisa pública, com enorme desequilíbrio fiscal, PIB de crescimento negativo, inflação fugindo do controle e juros nas alturas. A corrupção tomou conta da política.
A direita mostrou uma diversidade própria, seja em relação aos costumes e aos valores morais e religiosos, seja em relação à economia. Note-se que estamos utilizando as noções de conservadores e liberais em sua acepção inglesa, a la Hayek, e não americana, em seu significado local de social-democracia. Ora, a campanha finalmente vitoriosa de Jair Bolsonaro ancorou-se no antipetismo, enquanto defendendo “não valores” contrários à vida social e política, como a corrupção e a imoralidade pública, introduzindo os seu próprios valores ancorados nos costumes, na moral e na religião, como os da luta contra o aborto, a defesa da família, o direito à posse de armas, o combate à ideologia de gênero nas escolas, entre outros. Ao lutar contra a criminalidade generalizada e pelo direito à autodefesa e à segurança pública, resgatou valores e princípios que fazem parte, conforme ensinava Hobbes, da própria constituição do Estado. Acrescente-se, ainda, que a montagem do novo governo já mostrou a sua afirmação de princípios liberais, concernentes à economia de mercado, a menor intervenção estatal, a privatizações e ao controle social da moeda via Banco Central independente. Entendeu o novo presidente que sua tarefa consiste na síntese entre valores liberais e conservadores, na acepção própria que lhes está conferindo.
Esta síntese entre valores conservadores e liberais não é estranha ao próprio pensamento conservador, pois o próprio Burke adotava, em economia, as posições de Adam Smith[6]. Conservadores em relação à tradição e às regras institucionais existentes podem perfeitamente conviver com uma economia de mercado livre e concorrencial, baseada no cumprimento dos contratos e na segurança jurídica. Contradições podem surgir entre conservadores e liberais, mais explicitamente, quando esses últimos trazem suas posições para os costumes, defendendo, por exemplo, o direito ao aborto, o casamento homossexual e a ideologia de gênero, enquanto manifestações mais amplas da liberdade, porém apenas coincidindo politicamente com as posições de esquerda, que recusam, precisamente, o sentido amplo da liberdade, mormente em suas acepções políticas e econômicas.
O pensamento conservador, por sua vez, pode ser igualmente dito em diferentes acepções.
A autoridade estatal
A primeira que nos interessa caracterizar diz respeito ao exercício da autoridade estatal, ou seja, à conservação da ordem institucional e constitucional vigente, tal como esta concepção se encontra particularmente presente no estamento militar, avesso que é à desordem, à anomia e ao descontrole da violência. Huntington bem formula este ponto: “O homem da ética militar é por essência o homem de Hobbes”[7]. Ora, tal formulação é particularmente esclarecedora não apenas em relação à ética militar, mas à sua visão de mundo e de orientação na vida pública. Segundo essa, o ser humano é propenso ao egoísmo, ao conflito e à violência, devendo, pois, ser regulado e controlado por um Estado forte. Não se trata apenas do que isto significa no caso específico da guerra, em que tal formulação encontra toda a sua pertinência, mas do modo mediante o qual a vida política é concebida, com destaque sendo dado, então, ao conceito de autoridade política. A forte presença de militares no governo Bolsonaro, em postos chaves, bem mostra a sua preocupação central com o restabelecimento da autoridade estatal no país.
A questão pertinente será, então, não somente a de como a democracia é vista a partir de um determinado conjunto de regras, mas também a de se esse conjunto é de natureza a preservar o Estado e a conservar a sua autoridade. A ordem social e política não nasce de uma suposta “boa” natureza humana, que seria capaz de produzir de uma forma espontânea o “bom” ordenamento social, mas de como um ser humano belicoso, voltado predominantemente para a sua satisfação própria, vem a ser controlado por um conjunto de regras imposto por um Estado, que nasce com a disposição central de assumir o controle da violência, regrando-a em seu emprego. A mentalidade militar, assim como a conservadora, parte de um pessimismo em relação à natureza humana, nada predispondo, conceitualmente, ao otimismo. Dito ainda de outra maneira, a mentalidade militar seria de “direita” ao enfatizar o ordenamento público e o exercício da autoridade, não tolerando a desordem e as irrupções de violência.
Os valores. A segunda acepção do pensamento conservador que nos interessa ressaltar concerne aos valores: valores morais, da tradição, da família e da religião. Cada uma destas acepções veicula significados históricos específicos que dizem respeito às diferentes histórias de cada país. Se tradições, por exemplo, são diferentes, o mesmo se pode dizer dos seus valores correspondentes. Ora, isto igualmente vale para os valores morais, familiares e religiosos, bastando observar a própria diversidade das religiões, cada uma delas com suas histórias particulares, veiculando diferentes normas, regras e liturgias. Neste nosso último processo eleitoral, constatou-se o forte componente político dos valores em geral, com especial predominância aos relativos aos costumes, à moralidade pública e à família. Os evangélicos, em particular, fizeram valer o seu voto, escolhendo um candidato, no caso, Jair Bolsonaro, que correspondesse a esta sua concepção. Insurgiram-se contra a influência da ideologia de gênero nas escolas, contra o aborto em função de sua ideia própria de vida intrauterina e contra a criminalidade indiscriminada, propugnando, ainda, pelo direito à legítima defesa. Quisera aqui frisar que, embora se possa caracterizar esta pauta normativa como antipetista, contra o politicamente correto, ela possui uma significação claramente positiva de afirmação de valores, e não somente negativa em relação à outra posição.
Observe-se que a pauta conservadora se contrapõe aqui à pauta liberal. Liberais, normalmente, pelo menos em uma de suas acepções, propugnam pela relatividade dos valores, não aceitando que lhes seja conferida uma validade absoluta, tanto no nível religioso quanto no nível da tradição. A própria significação liberal nasce do rompimento com poderes arbitrários e/ou absolutistas, o que significa dizer que não admite sua base de sustentação em valores de tipo religioso, por exemplo. Lutou, isto sim, pela mais completa separação entre o Estado e a Igreja, não aceitando, de forma alguma, a ingerência desta última nos assuntos públicos. Sustenta ainda ela, no nível do comportamento individual, em que as pessoas têm o direito de perseguir os seus próprios interesses particulares, segundo regras aceitas por todos, de modo que o desejo de cada um possa adequar-se aos desejos dos outros. Não parte ela, ainda, da concepção de que os homens são pecadores e, portanto, devem abdicar dos desejos materiais, da concupiscência, nem consideram tampouco que o lucro seja algo a ser condenado. Condenação do lucro que, aliás, encontramos tanto em correntes conservadoras quanto de esquerda.
No Brasil, em particular, algo que ficou particularmente claro na escolha dos novos ministros da Educação e das Relações Exteriores, ganha um complicador particular, na medida em que a defesa dos valores vem acoplada a uma concepção conspiratória do mundo, que seria controlado e manipulado pelos agentes do globalismo e do “marxismo cultural”. Uma coisa é a defesa dos valores, outra diferente é submetê-los a um grande esquema conspiratório mundial, que teria centros decisórios. O mundo estaria submetido a uma luta de tipo maniqueísta, com as forças do “mal” procurando controlar as consciências individuais e, em particular, os agentes políticos. Ou seja, o mundo estaria submetido a uma finalidade voluntarista de alguns poucos centros de poder, que expandiria os seus tentáculos sobre todos os Estados. Trata-se de um conservadorismo de tipo religioso, misturado com um embasamento de tipo político, fundado, por sua vez, em uma doutrina conspiratória internacional. Haveria uma manipulação global de instauração do comunismo, com o apoio de forças econômicas capitalistas, liberais nesta acepção. Neste sentido, torna-se também antiliberal ao se posicionar contra a globalização como se fizesse parte de uma conspiração de esquerda, enquanto, para os liberais, o livre comércio é um valor inegociável. Já o grande liberal francês, Benjamin Constant, dizia que o livre comércio e o seu desenvolvimento tornariam a guerra algo desnecessário, inútil em certo sentido.
A questão torna-se ainda mais complexa quando são aplicados estes valores conservadores, os tradicionais e, mais especificamente, os conspiratórios, à educação e às relações exteriores. Na primeira, torna-se evidente a sua ineficiência, pois não se pode reduzir a educação a uma pauta normativa de valores, por mais que tenham pertinência, dada a introdução do marxismo e do politicamente correto enquanto doutrinas educacionais e, mesmo, universitárias. A falsificação da história brasileira encontrou ainda um terreno particularmente fértil, com a ideologização de textos didáticos ou das provas do Enem. Não foram poucos os estudantes que tiveram de responder errado a perguntas históricas e sociais para acertarem na aprovação dos exames. Na verdade, tinham de acertar segundo a ideologia dos seus professores, ao arrepio da realidade. Contudo, a questão educacional e universitária é muito mais ampla, envolvendo uma educação voltada para o mercado de trabalho, para o sucesso profissional, conforme os interesses particulares de cada um. A política de ensino não pode ficar restrita a uma disputa de valores conservadores contra liberais ou contra a esquerda, pois o país tem urgências científicas, tecnológicas, sociais, de produtividade e de crescimento muito mais prementes. Teorias conspiratórias são aqui, especialmente, de nenhuma utilidade, valor esse, aliás, liberal.
Dificuldade maior nas relações exteriores
No que diz respeito às relações exteriores, a dificuldade aumenta ainda mais. O seu domínio é o dos interesses particulares de cada Estado, segundo as projeções geopolíticas de cada um, seguindo suas próprias concepções de poder no cenário mundial. Hegel[8] já dizia que cada Estado se encontra em um “estado de natureza” em relação aos demais, afirmando seus interesses específicos e estando, sempre, preparado para o conflito e, no limite, para a guerra, embora privilegie os meios diplomáticos do diálogo e da negociação. Diplomacia de um lado, força militar de outra. O espaço para a afirmação de valores é por demais restrito, sobretudo se se pautar por valores universais e abstratos, mormente ainda se embasados em uma cruzada religiosa pelo mundo. A diplomacia deve estar a serviço dos interesses particulares de cada Estado, posicionando-se, assim, no tabuleiro internacional, e não se submeter à suposta fraternidade de esquerda, nem tampouco a uma mensagem de tipo religioso, que deveria afirmar-se segundo os valores tidos por ocidentais.
Metternich[9], o célebre chanceler, em seu trabalho de defesa dos interesses do império austro-húngaro, pautava a sua conduta diplomática pela conservação do atual estado de coisas. Isto porque o seu próprio Estado estava na iminência de sofrer abalos ou, mesmo, de ser dissolvido devido, interiormente, ao fato de ser constituído por diferentes nacionalidades que, então, no cenário mundial, procuravam afirmar-se politicamente, com o intuito de se tornarem Estados. Numa fina ourivesaria, procurava conservar o seu status quo interno e externo, em um contexto internacional de extrema turbulência. Em particular, a França, portadora dos novos princípios revolucionários, era uma ameaça, o que o fez trabalhar junto a Napoleão através do arranjo de um casamento dinástico, visando conter os ímpetos do novo imperador. Procurou impor a sua própria pauta conservadora, sabedor de que não tinha força para impor a sua vontade militarmente. As suas negociações faziam-se tanto com os revolucionários quanto com os profundamente religiosos, como o tzar da Rússia, homem particularmente devoto. Para ele, o fundamental consistia na conservação das instituições austríacas, colocando a sua imensa habilidade diplomática na preservação do status quo.
Talmon observa, a propósito de outro chanceler da época, Castlereagh, colega de Metternich, em uma formulação sua relativa à Santa Aliança, que a Inglaterra não deveria dar um cheque em branco às outras potências, o que serviria de cobertura para reprimir qualquer insurreição revolucionária. Embora profundamente conservador, não partiria em uma cruzada contra os revolucionários franceses, pois, para ele, interessava sobretudo o equilíbrio mundial, que favorecia os interesses particulares de seu próprio Estado. De acordo com o pragmatismo inglês, a política exterior deveria sempre pesar as circunstâncias e as condições particulares, cada fato merecendo um cuidado e um tratamento específicos[10]. O terreno da política e, mais particularmente, o das relações exteriores, não é o de declarações abstratas, por mais tentadoras que possam ser do ponto de vista moral e, mesmo, religioso. O terreno da política é o do choque, do conflito e da luta, muitas vezes caracterizado por embates entre direitos divergentes ou opostos proclamados pelas partes contendoras, exigindo, por isto mesmo, um profundo conhecimento das circunstâncias, de suas peculiaridades, assim como das especificidades de cada uma destas reivindicações de “direitos”. Neste sentido, ela visa ao compromisso entre os direitos conflitantes.
Eis o desafio hoje enfrentado pelo país, com posições conservadoras e liberais surgindo enquanto condutoras das ações públicas e de seus processos decisórios, em um novo governo que apresenta uma outra natureza política. De seu sucesso ou fracasso, depende que o país recaia ou não na velha oposição entre direita e esquerda, cujos termos seriam ditados por essa última. Houve, do ponto de vista político e, particularmente, das ideias uma mudança de paradigma. Quem não atentar para esta profunda transformação corre o risco da desorientação política, social e econômica. Seria como um médico errando no diagnóstico!
[1]
Talmon, Jacob L. Les origines de la démocratie totalitaire. Paris, Calman Lévy, 1966,
[2]
O antigo PTB, muito antes do PSDB, tinha suas referências ideológicas no trabalhismo inglês.
[3]
Benoit XVI. Jésus de Nazareth: De l’entrée de Jérusalem à la Ressurection. Paris, Editions du Rocher, 2011.
[4]
Instructions on Certain Aspects of the “Theology of Liberation”. Joseph Cardinal Ratzinger. Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, 1984, aprovada pelo Papa João Paulo II, que ordenou a sua publicação. 1984

[5]
Talmon, Jacob L. Mission and Testimony. Brighton, Chicago, Toronto. Sussex Academic Press, 2015.
[6]
Kirk, Russel. The Conservative Mind. BN Publishing, 2008. P. 19.
[7]
Huntington, Samuel P. O Soldado e o Estado. Rio de Janeiro, Biblioteca do Exército, 2016, p. 86.
[8]
Hegel, G. W. Princípios da Filosofia do Direito. Tradução de Paulo Meneses, Agemir Bavaresco, Alfredo Moraes, Danilo Vaz, Greice Ane Barbieri e Paulo Roberto Konzen. Unisinos, Loyola e Unicap, 2010.
[9]
Kissinger, Henry. A World Restored. Metternich, Castlereagh and the Problems of Peace, 1812-1822. London, Phoenix, 2000.
[10] Talmon, Mission, p. 337.


Graduado em Filosofia na Universidade Nacional Autônoma do México, doutor pela Universidade de Paris I e pós-doutor na École Normale Supérieure de Fontenay-St.Cloud. É professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

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