10 maio 2018

Crenças, Instituições e as Reformas 
do Estado no Brasil

  1. Introdução

O título da obra-prima de Adam Smith, Uma Investigação sobre a Natureza e Causas da Riqueza das Nações, retrata o que tem sido desde então a mais importante pergunta para as Ciências Econômicas. Àquela época – 1776 –, o país mais rico do mundo tinha uma renda média somente quatro vezes maior do que a do país mais pobre. Desde então, esta variabilidade de performance econômica aumentou dramaticamente, no que veio a ser conhecido como a Grande Divergência, na qual um pequeno grupo de aproximadamente 30 países atingiu altos níveis de renda, desenvolvimento e qualidade de vida, enquanto a maioria de países ficou presa em níveis significativamente inferiores, com pouca transição entre os grupos nos últimos 100 anos. Hoje, o país mais rico do mundo – Luxemburgo – tem um PIB per capita quase 500 vezes maior do que o país mais pobre – Sudão do Sul (dados do FMI para 2017). Entender o surgimento e a persistência de tão grande variabilidade de desempenho econômico tem sido um dos maiores desafios para as Ciências Sociais.
Para a teoria econômica tradicional, este padrão divergente de desenvolvimento é particularmente vexatório, pois ela prevê, ao contrário, que forças econômicas deveriam levar a uma eventual convergência dos países mais pobres para o nível dos países mais ricos. Como há abundância de capital nos países mais ricos e escassez nos mais pobres, as taxas de juro – que remuneram o capital – deveriam subir nestes últimos e cair nos primeiros, levando o capital a fluir para os países mais pobres, onde se torna investimento, que por sua vez gera crescimento, fechando o hiato. Além disto, os países mais pobres têm a “vantagem do segundo movedor”, pela qual podem absorver tecnologia e métodos produzidos pelos países mais adiantados, pulando, assim, etapas. A ausência de convergência nos últimos dois séculos sugere que outras forças divergentes ainda mais fortes devem existir.
Grandes esforços têm sido despendidos para determinar que forças seriam estas e como elas poderiam ser combatidas. Boa parte do debate tem tomado a forma da busca de um ingrediente essencial que estaria presente nos países avançados e carente nos países pobres. Diferentes escolas de pensamento ao longo das últimas décadas têm proposto diferentes determinantes fundamentais do crescimento econômico, que, uma vez identificado, poderia ser suprido, reduzindo as disparidades entre países. Entre os determinantes propostos, encontram-se capital, poupança, tecnologia, capital humano, geografia, cultura e capital social. Embora cada elemento destes seja importante, nenhum deles obteve consenso como o elemento fundamental que poderia destravar o desenvolvimento dos países.
Na década de 1980 e começo da década de 1990, surgiu uma nova visão de que a chave para o crescimento dos países pobres seria focar nas políticas públicas para tirar todas as distorções e falhas de governo que impediam os preços de refletir fielmente a verdadeira escassez e a abundância relativa dos recursos. A ideia é que a incapacidade das economias atrasadas de realizar os ganhos de troca e oportunidades econômicas se devia a distorções como tabelamento de preços, barreiras de entrada, salário-mínimo, excesso de impostos, subsídios e incentivos fiscais, política monetária arbitrária, protecionismo, produção estatal, etc. Em conjunto, estes elementos criavam obstáculos e desincentivos para a acumulação, investimento, produção e inovação, condenando estes países ao atraso. A solução para esta situação seria reformar as políticas públicas para eliminar estas distorções e permitir que os preços, salários e juros pudessem livremente coordenar os mercados e orientar a alocação de fatores na economia. Este diagnóstico, que ficou conhecido como o Consenso de Washington, tinha como motto get the prices right e tinha como fundamento que, para atingir o crescimento econômico, a chave eram políticas públicas liberalizantes.
Adotado e recomendado por organismos internacionais como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial – logo o nome Consenso de Washington –, esta abordagem teve bons resultados em alguns poucos países, como o Chile, e em alguns setores específicos, como as privatizações de infraestrutura no Brasil. Mas, em geral, a tarefa de liberalizar os mercados provou ser muito mais difícil do que se previa e os repetidos resultados decepcionantes na maioria dos países logo levaram a uma forte reação contra esta forma de pensar o desenvolvimento econômico.
Desta reação emergiu uma nova abordagem que veio a se tornar a visão dominante sobre os determinantes fundamentais do crescimento econômico. Reconheceu-se que a falha do Consenso de Washington estava na presunção de que políticas que tinham bons efeitos quando pensadas nas abstrações do quadro negro, iriam funcionar na realidade crua e bagunçada de países reais, onde interesses conflitantes marcados por clivagens sociais e políticas construídas ao longo da história dificultam a coordenação, a cooperação, a negociação e a ação coletiva. Esta nova visão se baseou na visão de que o funcionamento efetivo de qualquer política depende de maneira fundamental das instituições formais e informais que estruturam as relações econômicas, sociais e políticas entre os indivíduos, firmas e outras organizações. Instituições, nesta acepção, são as regras do jogo que impõem incentivos e restrições aos agentes, determinando, assim, se estes têm incentivos para perseguir seus interesses através da produção, investimento, inovação e cooperação, ou através de violência, corrupção, rent-seeking e roubo. De acordo com esta abordagem, geralmente associada ao Prêmio Nobel em Economia de 1993 Douglass North, países que desenvolvem instituições do primeiro tipo crescem ao longo do tempo levando a uma melhor qualidade de vida para seus cidadãos, enquanto países com instituições do segundo tipo ficam presos em ciclos de booms e quedas, sem realizar a transição para a prosperidade. Esta abordagem institucionalista da Economia começou como uma área marginal nas ciências econômicas, mas a partir do ano 2000 se difundiu pela profissão, a ponto de hoje ser um consenso que a chave para a riqueza das nações seja acertar as instituições (get the institutions right).


  1. Mudança institucional como reforma de Estado

A recomendação da análise institucionalista para o desenvolvimento dos países é, portanto, mudar as instituições. A maioria dos países tem uma estrutura institucional marcada por instituições extrativas e excludentes, que concentram renda e poder, e impedem a realização do potencial produtivo e criativo da população. Mudança institucional que expande o acesso de indivíduos e organizações a mercados econômicos, políticos e sociais é vista como o primeiro passo no processo de transição para o grupo de países desenvolvidos. Isto requer instituições que sejam inclusivas, impessoais e que protejam direitos de propriedade econômicos e políticos, fomentando o rule of law, reduzindo custo de transações e facilitando o estabelecimento de compromissos críveis, ação coletiva, cooperação e coordenação. Na prática, o nome que usamos para se referir a este processo explícito e conjunto de mudança institucional é “reforma de Estado”.
Em uma maior ou menor medida todo país está sempre realizando alguma mudança em suas instituições. Uma reforma do Estado, no entanto, vai além de mudanças incrementais nas margens e consiste de um processo consciente de alterar as regras e estruturas do Estado de maneira significativa, de modo a corrigir distorções e permitir um melhor funcionamento da máquina do governo para atingir melhores resultados econômicos e sociais. Isto envolve não só instituições econômicas que mediam entrada, saída e atuação dos agentes em mercados econômicos, mas também, e talvez mais importante, as instituições políticas que estabelecem para cada área de atuação do Estado quem pode iniciar um processo, quem tem voz, quem tem voto, quem tem veto, como cada grupo participa, qual o locus de ação (Congresso, tribunais, ministérios, ruas, etc.), qual a sequência de ações, qual sua frequência, etc.
Dado que há hoje um amplo consenso sobre o papel primordial de instituições abertas e inclusivas para o crescimento econômico e a prosperidade, é um paradoxo que tão poucos países tenham feito ou estejam no processo de fazer a transição do grupo não desenvolvido para o grupo de países ricos. Se existe um diagnóstico preciso e um bom entendimento sobre o tipo de reforma que precisa ser feita, por que não vemos mais países realizando reformas de Estado que os coloquem no caminho desta transição?
A literatura institucionalista elenca duas grandes classes de explicações complementares para explicar este paradoxo. A primeira envolve a dinâmica de economia política pela qual elites e grupos dominantes reconhecem as limitações impostas pelas instituições atuais, mas preferem mantê-las por perceber que as reformas necessárias fariam o país como um todo crescer, mas poriam em risco sua dominância e suas fatias pessoais do bolo total. Nesta visão, as ineficiências, distorções e atraso estão ali por desenho e não por que não se saiba como corrigi-las. Esta linha de raciocínio, que forma, por exemplo, a base do livro de 2012 de Daron Acemoglu e James Robinson Por Que as Nações Fracassam, certamente explica grande parte da ausência observada de países realizando a transição para o desenvolvimento. No entanto, os ganhos de acertar as instituições são muitas vezes tão grandes, que permanece um paradoxo de que os grupos não consigam negociar algumas formas de realizar ao menos algumas daquelas reformas. Além disto, é comum vermos países onde os governos estão genuinamente tentando melhor o bem-estar geral da nação, mas, mesmo assim, sistematicamente falham.
Estas considerações fizeram surgir uma segunda linha de explicações que não está radicada na disputa por poder e recursos. Estas explicações reconhecem que a economia e a sociedade são sistemas complexos que são diferencialmente percebidos e interpretados por diferentes sociedades dadas sua cultura, crenças e identidades. Ao realizar uma reforma de Estado, ou seja, ao optar por mudar as instituições, os grupos dominantes sabem quais resultados querem obter para o país e para si, porém não há qualquer forma inequívoca de saber quais instituições levariam àqueles resultados. Eles têm, portanto, de lançar mão de suas crenças de como funciona o mundo, isto é, de qual seria a verdadeira relação de causa e efeito entre instituições e resultados. A vasta diversidade de experiências entre países no desenho de instituições, mesmo quando confrontando situações semelhantes e visando a objetivos semelhantes, sugere que há uma grande variedade de modelos mentais entre países, isto é, grande variedade de crenças.


  1. Uma análise institucional da reforma do Estado no Brasil

Qual tem sido a experiência do Brasil no processo de reforma do Estado analisado do ponto de vista desta literatura institucionalista que foca no papel central das instituições e atribui às crenças dos grupos dominantes papel fundamental na escolha de quais instituições implementar? Tal análise é feita por Alston, Melo, Mueller e Pereira em seu livro de 2016 “Brazil in Transition: Beliefs, Leadership and Institutional Change” (Princeton University Press). Estes autores identificam três períodos na história recente do Brasil em que prevaleceram diferentes crenças e instituições, com diferentes resultados econômicos, sociais e políticos. Eles usam um arcabouço evolucionário em que novas crenças emergem em períodos de crise, onde as crenças anteriores provaram não serem compatíveis com os resultados observados. Nestas janelas de oportunidade, que podem vir através de revolução, eleições ou até por mudança incremental, a rede de grupos dominantes é alterada e a crença anterior se dissipa. Por diferentes processos em diferentes instâncias, uma nova crença emerge muitas vezes, mas não necessariamente através da influência de um líder (ou grupo), que propõe uma nova visão e provê persuasão e coordenação necessárias para a nova tentativa de organização nacional. As novas crenças levam a novas instituições através de amplas reformas do Estado. Enquanto os resultados induzidos por estas novas instituições estiverem em linha com os resultados esperados dadas as crenças, a rede dominante, as crenças e as instituições permanecem estáveis com mudanças apenas incrementais ao longo do tempo. Se, no entanto, os resultados divergirem sistematicamente do esperado dadas as crenças, outra crise eventualmente levará a uma nova janela de oportunidade e a outro ciclo nesta dinâmica. Realizar a transição crítica envolve adquirir crenças e instituições que sistematicamente entreguem resultados desejados adaptando-se de maneira eficiente a mudanças no ambiente (tecnológica, ambiental, geopolítica, etc.). Há algum consenso nesta literatura que instituições inclusivas que facilitam acesso à participação em mercados econômicos e políticos são necessárias para atingir crescimento de longo prazo.
Dado que o conteúdo e o impacto de mudança institucional dependem fundamentalmente das crenças dominantes de cada país, convém ver como estes autores classificaram as crenças que dominaram nos três períodos analisados da história brasileira recente. Baseado nesta análise podemos, na próxima seção, especular sobre quais são as crenças dominantes atualmente no Brasil, e o que isto nos diz sobre o que poderemos esperar em termos de reforma do Estado nos próximos anos. Embora esta análise não permita prever quais reformas serão priorizadas e quais os seus detalhes, ela pode indicar quais serão as características gerais de qualquer reforma que vier a ser realizada. Ou seja, não podemos prever “substantivos” – reforma da previdência, reforma tributária, etc. e seus detalhes – mas podemos prever “adjetivos” – inclusiva vs. extrativa, volátil vs. estável, rígida vs. adaptável, etc.
O primeiro período analisado por aqueles autores foram os anos sob regime militar de 1964 a 1985. Este período sucedeu um período anterior marcado por grande volatilidade econômica e conturbação política, sujeito a inflação, clientelismo, fraude eleitoral, violência e concentração de renda. A crença que emergiu em reação a esta situação via que a melhor forma de atingir o desenvolvimento seria através da priorização do crescimento econômico via industrialização, via planejamento tecnocrático, e que outros problemas como pobreza e desigualdade seriam resolvidos indiretamente através deste crescimento. Esta crença, que os autores chamam de “desenvolvimentismo”, orientou a escolha de instituições econômicas e políticas que levaram a grande crescimento econômico e avanço industrial, mas ao mesmo tempo impuseram restrições a liberdades individuais e direitos políticos e econômicos. À medida que os resultados econômicos se degeneraram, a partir de meados da década de 1970, contribuindo para a insatisfação gerada pela opressão política e crescente desigualdade, a crença em desenvolvimentismo se desfez, levando à janela de oportunidade representada pela democratização.
O segundo ciclo, de 1985 a 1994, viu o surgimento de uma nova crença que, em reação ao período autoritário, via o caminho do desenvolvimento como uma priorização de inclusão social, onde as instituições deveriam priorizar participação, cidadania, voz, transparência, democracia, direitos, liberdade de expressão, entre outros. Isto envolvia várias formas de transferências para uma grande gama de grupos incluindo não só as populações marginalizadas, mas também as elites empresariais e grupos políticos. O resultado destas instituições e as políticas que elas induziram foi um grande aumento de voz e participação política, mas ao mesmo tempo uma hiperinflação recorrente e destrutiva. O impacto perverso de uma década de uma das piores hiperinflações da história mundial eventualmente levou ao fim da crença em inclusão social irrestrita.
No entanto, o que surgiu em seu lugar não foi uma guinada na direção oposta, mas sim uma manutenção de muitos aspectos da crença em inclusão, só que agora associado com a crença de que este objetivo teria que ser perseguido de maneira economicamente sustentável, com ortodoxia monetária e econômica e com uma aversão à inflação característica de países que passaram por hiperinflações marcantes. Esta crença em “inclusão social sustentável” pautou o Plano Real, que deu fim ao período inflacionário e foi a base conceitual do longo período subsequente em que diversas reformas do Estado foram empreendidas. Estas reformas políticas e econômicas foram profundas e mudaram o Estado e a nação de maneira marcante. Entre elas estão as privatizações de serviços de infraestrutura e bancos estaduais, criação de agências regulatórias, Lei de Responsabilidade Fiscal, fortalecimento do processo orçamentário, Banco Central (informalmente) independente, disciplinamento de concursos públicos, novo Código Civil, Lei de Falências, programas de transferências condicionais (e.g. Bolsa Família), entre muitos outros. Coerente com a crença, a mudança institucional empreendida foi em grande parte virtuosa, buscando justiça social, estabelecendo um amplo sistema de freios e contrapesos, melhorando a governança do Estado, e respeitando o Estado de Direito e o império das leis, sempre sujeito à forte restrição de sustentabilidade fiscal e monetária. Os resultados induzidos por esta combinação de crenças e instituições foram variados. Durante todo o período, o país experimentou taxas do PIB per capita relativamente baixas em comparação com outros países em desenvolvimento. Por outro lado, houve um fortalecimento institucional muito grande com uma marcante guinada para o maior respeito às regras e ao Estado de Direito. E, no campo social, observou-se uma queda sem precedentes na história brasileira da pobreza e da desigualdade. A classe média, elemento essencial no processo de desenvolvimento, expandiu-se significativamente com a inclusão de um grande contingente que passou a ter acesso a bens e serviços antes restritos a parcela muito menor da população, como geladeira, dentistas e viagens aéreas.
As instituições políticas que balizaram este período estavam centradas no papel preponderante do poder Executivo. Estas instituições asseguravam ao Executivo poderes, direitos e recursos que permitiam que, via de regra, dominasse a agenda política e conseguisse aprovar com facilidade grande parte de seus projetos e programas. Estes poderes institucionais incluíam desde medidas provisórias e amplo poder de veto até monopólio de proposta em diversas áreas, assim como diversas moedas de troca políticas, como poder de execução sobre emendas parlamentares ao orçamento e um grande número de cargos na estrutura federal para conceder aos aliados. Conceder tal poder a um presidente pode ser temeroso. Boa parte da história da América Latina envolve desastres derivados de um presidencialismo exacerbado. Por outro lado, pode fazer sentido colocar mais poder no Executivo, que tem incentivos eleitorais a considerar o bem da nação como um todo, do que no Congresso, que foca em bases mais estreitas e localizadas. A forma encontrada pelas instituições políticas brasileiras para fechar esta equação foi manter a preponderância Executiva, dando-lhe os meios de fazer as reformas de Estado necessárias, porém estabelecendo, ao mesmo tempo, um forte sistema de freios e contrapesos que assegura que estes poderes sejam usados de maneira compatível com a crença de inclusão sustentável, e não em projetos de interesse pessoal ou de grupos restritos.
Esta rede de freios e contrapesos é composta por uma diversificada rede de instâncias que tem o poder e o interesse de fiscalizar e monitorar o Executivo, assim como os próprios membros da rede. Isto inclui um judiciário independente que rotineiramente decide contra o governo, mesmo em casos de grande relevância para os interesses do governo. Tal nível de independência do judiciário é raro em países em desenvolvimento (considere o caso Rússia atualmente, um outro país com Executivo forte, porém sem freios e contrapesos), embora seja um pré-requisito essencial para o crescimento de longo prazo. Há também um Ministério Público também absolutamente independente, atuante e com boas dotações de recursos humanos, financeiros e instrumentos legais (ações civil públicas, ajustamento de condutas, etc.) Da mesma forma, tribunais de conta e agências de controle têm assumido um protagonismo cada vez maior na fiscalização do poder Executivo. Outro elemento crucial nesta rede de freios e contrapesos é a imprensa, que no Brasil é livre, diversificada, atuante e de boa qualidade. Ela garante o acesso à informação para uma sociedade civil organizada em uma grande gama de formas – sindicatos, agremiações, comissões, conselhos, partidos, etc. – que participam de maneira tanto formal (orçamentos participativos, conselhos educacionais, etc.) como informal (protestos e manifestações) na vida pública.
O resultado destes arranjos institucionais, que emergiram no contexto da crença de inclusão social sustentável, foram políticas com uma série de características marcantes. A primeira característica era um imperativo em manter a estabilidade monetária, com forte disciplina macroeconômica – por exemplo, superávits fiscais e alta tributação –, especialmente nos períodos de pressões inflacionárias. Este tipo de medida é contrário ao instinto de sobrevivência de políticos, mas sua adoção, mesmo pelo governo Lula, é um tributo ao funcionamento destas instituições. A segunda característica é a troca de recursos políticos (emendas parlamentares, cargos) por apoio. A disponibilidade de meios providos pelas instituições políticas para o Executivo assegurar apoio às suas iniciativas facilitava a manutenção do imperativo monetário e fiscal. A terceira característica é a rigidez do gasto público, dado que orçamento da União engessava mais de 90% das despesas, dificultando, assim, a obtenção daquele imperativo. Finalmente, a quarta característica das políticas governamentais era a natureza residual das políticas que não eram cobertas por aquele engessamento. Estas eram políticas sociais, ambientais e projetos de infraestrutura. Nas épocas em que a economia ia bem, o imperativo fiscal não impunha restrições e estas políticas avançavam. Porém, quando surgiam ameaças à estabilidade monetária e econômica, estas políticas eram a margem que o governo tinha para buscar o equilíbrio, o que fazia com que programas e projetos fossem suspensos ou abandonados. Desta forma, estas políticas residuais tendiam a ter grande volatilidade. A isto contribuía o fato de que quando havia uma troca na presidência, eram estas políticas não amarradas pelo orçamento que costumavam ser substituídas pelo novo governo.
Em resumo, no período de 1995 a 2010, a crença em inclusão social sustentável e as instituições que elas induziram produziram um sistema centrado em um Executivo forte, porém submetido a uma rede efetiva de freios e contrapesos. Este sistema assegurou ao Executivo bons níveis de governabilidade e capacidade e incentivos para empreender uma profunda reforma do Estado ao longo de todo o período. Estas mudanças fortaleceram o estado de direito (rule of law) significativamente, estabelecendo regras mais claras e críveis para as relações econômicas, sociais e políticas. Isto resultou em grandes ganhos sociais, especialmente em termos de redução das desigualdades e da pobreza. Embora o crescimento do PIB per capita tenha sido medíocre, este resultado não é incompatível como uma crença que prioriza a inclusão social e o controle macroeconômico. O crescimento econômico em si supostamente seguiria em tempo à inclusão e à estabilidade monetária e fiscal.

  1. Novas crenças e a reforma do Estado

Apartir de 2010, o país entrou em um período conturbado política e economicamente à medida que os impactos da grande crise financeira mundial alcançaram o Brasil e com o surgimento de diversos escândalos de corrupção envolvendo grande número de políticos e grupos empresariais. A reação do governo (gestão Dilma Rousseff) para lidar com os impactos desta crise foram na contramão da crença em vigor ao expandir o gasto público e aumentar a interferência governamental em diversos setores da economia em uma tentativa não ortodoxa de aquecer a economia. O insucesso desta abordagem e o consequente agravamento da crise no Brasil, aliados à revelação do crescimento da magnitude e alcance dos escândalos de corrupção, induziram uma grande polarização política e social no país, levando ao impeachment da presidente e com a instauração de um interregno com pouco poder ou legitimidade para prosseguir com as reformas de Estado.
À primeira vista, este período conturbado tem todas as características de uma janela de oportunidade em que uma crença se desfaz e inicia o processo de surgimento de uma nova crença. A frustração com os resultados induzidos pela crença e instituições vigentes levaria ao seu abandono e, de alguma forma difícil de prever, surgiria uma nova interpretação sobre como funciona o mundo e as relações de causa e efeito entre instituições e resultados. Em alguns momentos recentes, como os protestos populares de 2013, o impeachment e alguns eventos da Operação Lava Jato, parecia que este processo já havia se iniciado: estávamos em uma janela de oportunidade e ainda íamos ver o que iria emergir. Pode ser que seja isto que estamos vivendo atualmente em 2018. Janelas de oportunidade vêm de diversas formas e podem ser explosivas ou graduais, rápidas ou prolongadas.
No entanto, outra possibilidade é que apesar da recente trajetória caótica e dos resultados econômicos frustrantes, a crença em inclusão social sustentável sobreviva. Muitas das reformas de Estado empreendidas ou ensaiadas pelo governo enfraquecido têm características compatíveis com aquelas crenças, como o estabelecimento de um teto constitucional para gastos públicos e a reforma da previdência. Certamente não tem surgido nenhuma visão alternativa para o país que pareça estar ganhando aceitação. Também não há no horizonte o surgimento de nova liderança que possa catalisar a transição para novas crenças. Mesmo com dois anos de contração do PIB em mais de 3,5% cada, não parece haver um abandono da priorização de inclusão social como caminho para o desenvolvimento.
Antecipar quando e como uma nova crença irá surgir é praticamente impossível, de modo que é insensato fazer previsões. No entanto, pode ser instrutivo e um pouco menos arriscado especular que talvez a crença em inclusão social sustentável, que predomina desde 1995, possa sobreviver aos recentes percalços. O novo governo que assumirá em 2019 terá legitimidade política conferida pela eleição popular e a dinâmica institucional descrita acima, de um Executivo preponderante sujeito a freios e contrapesos pode voltar a prevalecer. Além disto, o novo governo provavelmente será beneficiado por uma economia mundial ascendente após uma década de estagnação. Estas condições serão altamente propícias para uma forte aceleração das reformas de Estado de que o país precisa. Se isto de fato vier a ocorrer, e se for mantida a crença em inclusão social sustentável, não há como prever quais serão estas reformas, mas pela lógica do argumento descrito neste trabalho deveremos esperar que reformas continuem a expandir o acesso e a participação de todos grupos sociais, sem pôr em risco a estabilidade monetária e o equilíbrio macroeconômico.

Bernardo Mueller é professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília. Fez doutorado em economia pela University of Illinois at Champaign-Urbana (1995), pós-doutorado na Colorado University (2004-2005) e estágio sênior na Indiana University (2015-2016). Sua pesquisa cobre temas de desenvolvimento, instituições, direitos de propriedade, regulação, economia política e complexidade. É coautor do livro Brazil in Transition: Beliefs, Leadership and Institutional Change, lançado em 2106 pela Princeton University Press. Em 2018, lançará o livro Institutional and Organizational Analysis: Concepts and Applications (Cambridge University Press).

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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