18 setembro 2017

Criminalidade, Segurança Pública e Segurança Nacional

Este artigo aborda o problema da violência e da criminalidade no nosso País, procurando mostrar que, dado o nível que alcançou, extrapolou os limites do campo da segurança pública e da criminologia. Passou a ameaçar a qualidade da nossa democracia, o conceito de soberania do povo e o monopólio do Estado no uso legal da força, vindo a situar-se na seara da segurança nacional.
Isso não significa, em absoluto, que deva ser combatido necessariamente por meio das Forças Armadas. Mas, sim, que seu enfrentamento precisa mobilizar outros sistemas do Estado e da sociedade nacional, que não apenas o policial-judicial-penitenciário, eliminando tabus e quebrando paradigmas que se vêm mostrando ineficazes.

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No início de fevereiro, eclodiu mais um grave episódio eivado de violência, na área de segurança pública. Desta feita, no muito bem administrado estado do Espírito Santo, onde se externou uma sanha popular com arrombamentos, saques, roubos de carros (200 em um dia, para a média costumeira de 20) e homicídios dolosos (147 nos 10 primeiros dias, ante 38 no mesmo período em 2016). Tudo decorrente do “simples” fato de a Polícia Militar se ver “impedida” de sair dos quarteis pelos piquetes de familiares femininos em protesto por melhores salários (a propósito, reconhecidamente baixos na maioria dos estados da federação). Uma farsa inovadora na história dos motins. No quarto dia, a Polícia Civil aderiu à rebeldia.
A rebelião gerou duas grandes anormalidades na democracia: 1) governo estadual sem capacidade policial preventiva e repressiva, tendo de se socorrer do apoio federal das Forças Armadas e da Força Nacional de Segurança – o que, por sinal, não gerou o impacto inicial que seria lícito esperar; e 2) comércio de portas cerradas, desabastecimento, falta de transporte público e parte da população autoconfinada nas residências, dada a sensação de insegurança pelo risco de se expor na terra de ninguém.
Desde o início deste 2017, vem se acelerando o que pode ser chamado de vórtice da agressividade já crônica em setores da população brasileira, outrora exaltada em verso, prosa e música por sua sociabilidade, docilidade e alegria. Por um lado, os eventos bárbaros nas penitenciárias, que mataram mais de 130 pessoas nos 40 primeiros dias do ano. Eles escancararam de vez os antivalores consolidadores da subcultura das organizações criminosas, prenunciada paulatinamente durante décadas por eventos que, de tão frequentes, acabaram banalizando a afronta à lei, à Nação e ao Estado e anestesiaram a capacidade de indignação de grande parte dos brasileiros de bem. Por outro lado, os fatos em terras capixabas indicam podermos estar construindo uma civilização que só se comporta segundo os padrões supostamente instituídos na sociedade apenas quando contida dissuasoriamente pela possibilidade da repressão policial. Acrescente-se que essa preocupação recebe o reforço do dado de 87 ônibus terem sido incendiados no País nas primeiras seis semanas do ano; mais uma prática criminosa que vem sendo banalizada.
Anualmente, 60 mil pessoas são assassinadas no nosso Brasil, o equivalente a uma taxa média de quase 30 homicídios por 100 mil habitantes ante a média mundial de 5 por 100 mil! É um dado terrivelmente alto; não obstante, ainda não serviu para convencer nossas autoridades a aceitar que se vivencia uma guerra permanente na segurança pública, cujos instrumentos e processos operacionais governamentais clássicos são inócuos há muito. Por ser, em si, muito elevado e impactante, esse número tira o foco da tragédia em certas regiões e municípios nos quais, segundo o Atlas da Violência 2016, a taxa cresceu mais de 100% em dez anos, havendo caso em que o aumento chegou a mais de 300%.
Igualmente assustadora é a estatística que nos informa da crescente incidência de mortes por homicídios na faixa dos 18 aos 29 anos, perpetrados por rapazes no mesmo segmento etário. São os próprios jovens matando parte do futuro do País, que seria seu.
Violência e decisões de investimento
Outros índices que não podem ser relegados como se fossem normais: 28% dos apenados foram condenados por narcotráfico, fora os cerca de 50% entre os que aguardam julgamento, e a estimativa de que 80% dos crimes violentos se referem ao tráfico de drogas ilegais. Esses dados trazem embutida a informação de que, além da violação da lei sobre drogas, grande parte dessa criminalidade se situa no campo das rivalidades entre quadrilhas no muito rentável mercado ilegal. As organizações criminosas já extravasaram do âmbito interno nacional e se lançaram externamente, não apenas como compradoras de drogas nas fontes e recrutadoras de ex-guerrilheiros das Farc, mas também como associadas das grandes narcoempresas internacionais. Reforçam, assim, a disposição de ignorar solenemente a soberania nacional ao longo das rotas do tráfico, que incluem os pontos de entrada e a faixa de fronteira.
Menos importantes do que as perdas humanas e de valores culturais, mas também marcantes, são os custos da violência, que atingem anualmente 10% do PIB, ou cerca de R$ 130 bilhões. É quantia que deixa de entrar na cadeia produtiva e de gerar incontáveis benefícios. Além disso, a violência urbana afeta drasticamente as decisões de investimento no País.
Todavia, a criminalidade não pode ser imputada apenas aos grandes vilões desse fenômeno brasileiro, apontados com argumentos repetidos quais mantras curadores de um mal nem sempre diagnosticado com o critério sistêmico necessário. Por exemplo, a ideia sempre aventada de unificação ou integração operacional das polícias certamente não preveniria, por si só, as consequências da falta de quadras esportivas polivalentes iluminadas e com acompanhamento de professores de educação física, em bairros da periferia das metrópoles. O exemplo pode ser qualificado de exagerado e simplório, mas serve bem para indicar a diversidade do espectro de providências para o enfrentamento sistêmico preventivo ou repressivo dos indutores de violência. A simples vista de uma relação de possíveis indutores de violência ajuda a perceber seu inter-relacionamento em ciclos retroalimentados da violência e da criminalidade.
A busca das causas admite pelo menos três linhas de pesquisa: 1) a de cunho psicossocial, econômico e sociológico; 2) a do sistema policial-judicial-criminal-penitenciário; e 3) a abordagem bastante pragmática, à luz da rentabilidade do mercado ilegal de drogas, que tanto motiva quadrilhas violentas. Considero as três válidas e passíveis de serem equacionadas preventivamente, segundo uma ampla visão criminológica. Todavia, há que ter em mente que o enfrentamento das causas específicas da criminalidade não dispensa o pressuposto de que todos os sistemas do Estado e da sociedade civil com influência direta ou indireta na normalidade da vida da população cumpram rotineira e eficientemente seus deveres institucionais. Isto tendo sempre como norte o conceito de que é fundamental para a democracia as pessoas terem o sentimento básico de que seu direito constitucional à segurança lhes é garantido pelo Estado. Em resumo, a quem cabe governar, que governe; a quem cabe o direito, que coopere e proteste.
No primeiro enfoque, vão-se encontrar razões como desigualdade social e proximidade física de pobreza e bonança nas metrópoles; miséria e fome; recessão econômica, desemprego e competição por emprego; exaltação do ganho fácil de dinheiro, do consumismo e do hedonismo, tendente a provocar frustrações; glamourização do crime e da violência em filmes e programas na televisão; falta de moradia; caos urbano; falta de equipamentos públicos de lazer e esporte; baixa qualidade dos serviços básicos de saúde, transporte coletivo e saneamento e dificuldade de acesso a eles; inexistência de vida social comunitária; individualismo e impessoalidade das relações nas cidades; pai e/ou mãe ausentes; desarmonia no lar; violência doméstica; infância na rua; influência do círculo de amigos; consumo de álcool e drogas ilícitas; injustiça e desrespeito social; baixa autoestima; falência dos valores e princípios éticos e de comportamento moral; deficiências do sistema escolar e dificuldade de acesso ao ensino de qualidade; falta de vínculo afetivo dos estudantes com professores e com a escola e apartação entre esta e as famílias; afastamento da religião e/ou de polos indutores de valores culturais; péssimo exemplo de desonestidade de políticos eleitos, de demais agentes do Estado corruptos e de “bem-sucedidos” megaempresários corrompidos e corruptores.
Esses indutores de violência participam fortemente da formação de atitudes ou predisposições para comportamentos agressivos ou rebeldes. Devem ser enfrentados por meio de políticas e estratégias governamentais integradas, que chamo de progresso social, contribuintes da prevenção primária do crime.
A dissuasão de indivíduos tentados a descumprir a lei é um dos efeitos mais nobres de um sistema policial-judicial-penitenciário eficiente. É o que se conhece como prevenção secundária da violência e do crime, seja por efeito do policiamento rotineiro seja por essas pessoas terem ciência do alto risco de virem a ser investigadas eficientemente, descobertas, presas, processadas e condenadas, caso transgridam. Nesta linha de pesquisa das causas da violência ou da criminalidade, serão encontrados os aspectos que podem prejudicar a eficiência do sistema e, assim, reduzir ou, mesmo, anular a prevenção secundária do crime.
A solução do óbice está implícita na própria listagem das causas: impunidade penal por falhas no sistema policial-judicial; legislação penal desatualizada; lentidão dos processos judiciais; retorno à sociedade de apenados “pós-graduados” em crime nas penitenciárias e não sociabilizados; aplicação incompleta do conceito de polícia comunitária, sem a participação de outros setores do governo; vazio de presença do Estado no controle social em áreas com alto índice de violência; frustração policial causada pela soltura de criminosos imediatamente após a prisão; notícias de casos de corrupção na polícia, no Judiciário e demais órgãos de fiscalização e imposição da lei; descrença popular nas instituições da justiça e policiais; má remuneração dos policiais; uso das horas de folga do policial no segundo emprego, ao invés do relaxamento preventivo do stress próprio da profissão; falta de capacitação continuada do pessoal; integração operacional entre as polícias Militar e Civil, dependente de pessoas das duas corporações e não de rotinas internas, o que depõe contra essa dualidade; motins policiais; falta de prontidão da Força Nacional de Segurança para suplementação policial oportuna nos casos de risco de superação da capacidade da Polícia Militar; inteligência policial e análise policial ineficientes; falhas nas investigações iniciais nas cenas de crime; devolução de inquéritos policiais pelo Ministério Público, por erros formais ou de conteúdo, obrigando o retrabalho; não participação costumeira do Ministério Público na fase policial das investigações; falta de interação das polícias de diferentes estados; omissão da Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça ou falta de itens nas suas atribuições, que lhes dessem competências mínimas para normatização e articulação policial interestadual; falta de articulação entre Polícia Militar e Guarda Municipal em algumas cidades; permeabilidade dos quase 16 mil quilômetros de nossas fronteiras terrestres ao contrabando, entrada de drogas e de armas, facilitando a entrada de insumos para a criminalidade interna; porte civil não controlado de armas letais.
Descriminalização virá um dia
Finalmente, e sem a pretensão de esgotar a busca das causas da violência e da criminalidade, destaco a linha de pesquisa fulcrada na rentabilidade do tráfico de drogas ilegais, principal fator da deterioração da segurança pública e butim disputado violenta e barbaramente pelas maiores quadrilhas de narcotraficantes e pelos bandos vendedores na ponta da linha.
Classifico a criminalização ad aeternum das drogas como tabu que precisa ser, no mínimo, questionado. Creio ser um erro a estratégia de criminalização para o setor não ter objetivos intermediários nem final, de modo a se poder estabelecer uma métrica confiável de avaliação de sua validade. Principalmente quando está evidente que ela não vem resultando bem. Sem metas que permitam perspectivas de redução do crime de tráfico e do nível do consumo, os formuladores e executantes da estratégia do Estado se veem sem horizonte para se guiarem e ficam a tomar decisões erráticas em reação – sempre em reação – às iniciativas criminosas.
No início de janeiro, em artigo sobre os massacres nas penitenciárias, publicado pelo Estadão, afirmei, na introdução ao tema: “Um desses tabus é a ilegalidade do rentabilíssimo tráfico de drogas, geratriz da violência ora exposta nas matanças nos presídios. (…) Antecipo três pontos importantes: (1) enquanto for ilegal, será cada vez mais incontrolável; (2) enquanto o consumo aumentar, o tráfico será cada vez mais rentável; e (3) uma eventual descriminalização tem de ser condicionada ao êxito de um longo esforço preventivo nacional para a educação de nossa juventude, dando-lhe capacidade para discernir entre usar drogas ou não.” Acrescentei: “(descriminalização) somente após o Estado brasileiro, as famílias, as religiões e as escolas terem cumprido o dever ético de educar as crianças e os jovens sobre os malefícios que as drogas causam à saúde orgânica e mental e ao comportamento social”.
É incabível ter esperança de que a criminalização, a repressão e as medidas de redução de danos sejam a solução permanente para impedir a dependência química que causa danos à saúde, ao equilíbrio psicológico e à segurança pública. Esta superavaliação da eficiência infinita do tamponamento repressivo é uma espécie de laissez-faire, que poderia ser dito irresponsável não fosse a qualidade e a seriedade de muitas pessoas que a defendem, algumas das quais conheço bem, admiro e respeito. O quadro de incertezas é agravado pela dubiedade dos mesmos costumes que, com ares de peremptórios, negam-se a discutir a descriminalização das drogas hoje ilícitas e, antes de priorizarem a educação preventiva, legalizam o consumo.
Estou certo de que a descriminalização virá a ser adotada, espero que não tarde demais. É, pois, urgente iniciar a estratégia preventiva cabal, baseada na educação e na boa qualidade da informação veraz. As avaliações de seus efeitos deverão considerar o ritmo e os níveis de redução do consumo por parte de uma maciça parcela da juventude que ainda não se conscientizou dos malefícios da dependência química, da importância de evitar o uso e de estar fazendo o papel de reserva de mercado como clientes potenciais dos narcotraficantes.
Já em 1998, quando da instalação da Secretaria Nacional Antidrogas (Senad), órgão da Presidência da República destinado à coordenação do esforço para a prevenção do uso, declarei-me a favor da descriminalização, frisando, porém, que estimava o tempo de uma geração (20 a 25 anos) para a capacidade de discernimento quanto ao uso de drogas prevalecer no quadro de referência dos jovens. Uma geração: esta deve ser a unidade de tempo no planejamento estratégico que envolva a educação.
Ocorre que houve descontinuidade na forma de governar o País e, naturalmente, na percepção da intenção da política sobre drogas. Falta apenas um, para se passarem os 20 anos; a necessária mobilização nacional fracassou; o consumo aumentou e, é universal, enquanto houver consumo, haverá oferta; a lógica das duas primeiras premissas acima (sobre o crescimento da falta de controle e da rentabilidade do tráfico) manteve-se válida e, desgraçadamente, prevaleceu, sem a interveniência da terceira (esforço nacional permanente para prevenção do uso). O poder das quadrilhas foi exponenciando e o Estado paralelo invisível sob seu controle cresce e já é obedecido. Basta atentar para as restrições que nos acostumamos a impor a nós mesmos, até mesmo no ir e vir, induzidos pela sensação do risco de virmos a cair no alcance delas.
Em consequência, as circunstâncias da segurança pública se agravaram, a ponto de a perversidade das suas resultantes superar em muito a ameaça das drogas à saúde orgânica e psíquica do usuário. O balanço dos argumentos pró e contra a quebra de paradigmas no enfrentamento do problema mudou em face de um dos fatores (a criminalidade) ter ganhado relevância avassaladora, numa situação de perda crescente da capacidade governamental de conter o robustecimento das quadrilhas, conforme estamos testemunhando a toda hora.
Era costumeira a capacidade repressiva do Estado de ser superior ao poder das quadrilhas. O costumeiro está mudando, porque estas estão se tornando tão ou mais poderosas que a capacidade de repressão do Estado. Ora, quando o que é costumeiro muda com tendência a ficar incontrolável, as leis e políticas de base consuetudinária têm de ser atualizadas, a fim de mudar essa propensão.
Note-se que o tempo de espera pela mudança do nada fazer para começar a fazer o certo sempre se torna mais custoso na medida em que não se questione o que seja certo e se continue a nada fazer.

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É fácil constatar que o tema deste artigo não fica solto na ação governamental e que recebe influência de (e influi sobre) diversas outras áreas, além das concernentes classicamente à segurança pública. Daí o enfrentamento da violência e do crime ter de ser compreendido no âmbito de um grande sistema, que abarque setores intrinsicamente relacionados com segurança pública e outros com especificidades próprias, mas influentes sobre ela.
Verifica-se que todas aquelas causas podem ser enquadradas em sistemas abertos e interagentes tão diversos quanto as áreas da própria atividade humana. Elas seriam, pois, consequências de falhas internas nesses sistemas ou na interação deles. Logo, a anamnésia dos casos de violência e criminalidade tem de levar em consideração os processos das atividades internas e, também, os impactos do mau funcionamento de um sistema sobre os demais.
Falha na prevenção secundária do crime
Por exemplo, quando ocorrer descoordenação operacional crônica entre as ações das Polícias Militar e Civil estaduais, será reduzida a qualidade do enfrentamento de criminosos e, portanto, o efeito dissuasório sobre indivíduos predispostos ao crime ficará aquém do necessário. Essa falha na prevenção secundária do crime e da violência resultará em mais violações da lei e, é claro, o número de criminosos aumentará, exigindo mais ação policial, mesmo não otimizada. No médio prazo, a intensificação da repressão gerará mais prisões, apesar da falta de integração das polícias; mais criminosos serão encarcerados aguardando julgamento; prisões ficarão superlotadas; maior será a lentidão da justiça às voltas com número crescente de processos; maior o caldo de cultura para revoltas nos presídios; menor a probabilidade de ressociabilização dos presos durante o período das penas; maior a reincidência no crime. Um ciclo gerado pela deficiência da prevenção secundária por dissuasão. Quando as estatísticas mostram aumento de crimes e da violência, o analista pode estar certo de que esse e outros ciclos estão ativados. Já o funcionamento policial operacionalmente bem coordenado é mais eficiente, exerce forte dissuasão de criminosos e cria uma tendência de decréscimo da quantidade de crimes. Idêntico raciocínio aplica-se à eficiência do Poder Judiciário, outro fator dissuasor do crime.

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Para problemas sistêmicos, soluções sistêmicas.
Nos parágrafos de introdução, foi antecipado que a violência e a criminalidade não cabem mais nos limites de alcance dos instrumentos e da legislação de segurança pública. Já assumiram um tal nível de ameaça a princípios, direitos e deveres definidores da democracia, que hoje estão situadas no campo de atenções da segurança nacional.
Quando se deparam com essa expressão – segurança nacional –, as pessoas comuns tendem a imaginar a militarização da segurança pública, com o emprego corriqueiro das Forças Armadas no dia a dia das investigações e do policiamento, até mesmo com suspensão de liberdades constitucionais. Por essa razão, cuidei de antecipar que não é disso que se trata, mas sim de ampliar a capacidade do Estado de, juntamente com a Nação, mobilizar sistemas capazes de corrigir, preventiva ou repressivamente, os sistemas contrapartes contaminados pelos “vírus” que vimos apontando ou analisando. Esse tratamento se ajusta ao conceito de segurança nacional, que é muito mais abrangente do que defesa nacional e não pressupõe, necessariamente, o emprego de forças militares federais.
Entendamos segurança nacional.
É uma condição básica, decorrente da capacidade do País para garantir a soberania, a integridade da Nação, do território, do mar territorial e do espaço aéreo; a paz social; e os interesses e objetivos nacionais. Mas, não só isso. O País tem de ser capaz também de gerar nos cidadãos a convicção de que o Estado tem poder e vontade para, além de cumprir essas atribuições, lhes assegurar o exercício dos direitos e deveres constitucionais, nos quais se inclui o preceito constitucional da segurança. Em suma, as ações multidisciplinares voltadas para a segurança nacional também devem assegurar o exercício da cidadania, desde os tempos de normalidade da ordem pública.
Liberdade para exercer a cidadania
Verifica-se, portanto, que, além da defesa do patrimônio da Nação, a construção da condição e sentimento de segurança nacional tem de ver diretamente com a percepção das pessoas de que têm liberdade para exercer a cidadania. Voltemos ao caso recente do Espírito Santo e comparemos as condições a que ficaram sujeitas as pessoas de bem que ali residem com a situação desses mesmos cidadãos dias antes da eclosão das anormalidades. Em que período o Título II da Constituição (Dos Direitos e Garantias Fundamentais) esteve em aplicação plena? Quantos dias a democracia deixou de funcionar para aqueles brasileiros, no tocante à segurança pública? Por que ministros – inclusive o da Defesa – e forças federais deslocaram-se para o estado? Teria o governador (que administra muito bem o estado) interrompido sua convalescença pós-cirúrgica e retornado à chefia pessoal do governo em razão apenas de problemas na ordem pública? Qual o alcance imaginável da continuidade daquela situação anômala, se ela servisse de guia para as polícias de outros estados da federação, como em 1997, na esteira de Minas Gerais?
A resposta a essas e a outras indagações leva à conclusão de que, nos círculos concêntricos do espectro amplo do conceito geral de segurança, o círculo correspondente à segurança pública (restrito à desobediência somente à lei ordinária e de repercussão e solução no âmbito estadual) fora ultrapassado, em muito. O círculo seguinte, do campo da segurança nacional, demarca uma zona de competências e efeitos além dos da segurança pública, conforme vimos.
Caso real de segurança nacional
Nessa nova faixa, as características das leis violadas e dos efeitos dos crimes cometidos requerem a vigência de políticas federais e estaduais permanentes ou, quando necessário, extraordinárias, a serem geridas de forma integrada, com viés também de segurança pública, desde a fase preventiva. Essas políticas e suas estratégias podem ser reunidas em três grandes grupos: (1) Segurança Institucional (Segurança Nacional; Relações Exteriores; Defesa Nacional; Segurança e Ordem Públicas); (2) Desenvolvimento Nacional (Planejamento e Orçamentação; Infraestrutura; Integração Nacional; Ciência, Tecnologia e Inovação); (3) Progresso Social (Moradia e Saneamento; Saúde; Educação e Cultura, com atenção especial aos valores e ao enraizamento da democracia; Alimentação, Trabalho e Renda; Planejamento Urbano). Pode-se estranhar a ausência de outras áreas da atividade governamental; aí estão relacionadas as que mais têm de ver com o conceito de segurança nacional.
O nível político do Estado tem de gerir essas políticas setoriais sistemicamente, acrescentando o foco em segurança pública, tendo sempre em vista fazê-las interagir nos pontos comuns e criar sinergia que potencialize a capacidade do País para produzir desenvolvimento, progresso social e a já tão distante condição constitucional de direito à segurança.
A melhor forma de gestão governamental integrada de políticas e estratégias é por meio de câmaras setoriais no Conselho de Governo. Cada um daqueles três agrupamentos teria um foro de discussão na câmara correspondente, presidida pelo presidente da República ou chefe da Casa Civil e, no caso da primeira, chefe do Gabinete de Segurança Institucional. Em certas reuniões periódicas ou extraordinárias, governadores ou representantes seriam convidados para opinar sobre assuntos do interesse direto dos seus estados.

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Como consolidação das ideias, encerro com um caso real de segurança nacional, antes do qual ou não houve medidas preventivas ou elas foram inócuas. Foi a operação de reconquista da soberania plena do Estado brasileiro em uma região “semiliberada” pelo narcotráfico.
Convém que o leitor o percorra com os seguintes pontos em mente: (1) o Exército foi empregado (a) em pontos estratégicos de cerco das áreas palcos das operações táticas policiais; (b) na atividade de inteligência; (c) no apoio logístico, inclusive transporte terrestre e por helicópteros; (2) as investigações anteriores à execução da operação dedicaram-se também ao levantamento das carências nos itens que compõem o Índice de Desenvolvimento Humano médio local de 0.45, considerado crítico pela Organização das Nações Unidas, o que em muito serviu para orientação dos trabalhos dos agentes sociais e de saúde; (3) concomitantemente às ações militares, policiais e sociais, o Banco do Nordeste conduziu atividades no âmbito do seu Projeto Moxotó-Pajeú, de fortalecimento da economia local; (4) ações judiciais eram iniciadas pelas equipes do Poder Judiciário presentes, pari passu com as operações policiais; (5) após o encerramento formal da operação, o follow up deu continuidade às conquistas no terreno e nas mentes das pessoas. Haveria acompanhamento periódico, inclusive por seminários do Conselho Nacional Antidrogas (Conad), o primeiro dos quais ocorreu em fevereiro de 2002, na cidade de Petrolina, Pernambuco.
No final da década de 1990, existia no Brasil uma grande região no médio rio São Francisco – a maior parte em Pernambuco (13 municípios) e uma área menor na Bahia –, durante muito tempo conhecida pelo triste epíteto “polígono da maconha”. Apesar do trabalho repressivo intenso da Polícia Federal, principalmente na erradicação de plantações, o Estado brasileiro lá não exercia plenamente a soberania, porque as quadrilhas de plantadores, atravessadores e traficantes da erva se organizaram de tal forma na área, que assumiram o controle paralelo das estradas, de várias fazendas e até de parte do comércio. O presidente da República considerou a situação inadmissível e desafiadora e determinou ao Gabinete de Segurança Institucional que estudasse a solução.
Tratava-se de assunto pertinente à segurança nacional, em uma área geográfica extensa (os 13 municípios do polígono mais 15).
Múltiplas ações deveriam ser desenvolvidas por vários setores do governo federal em conjunto com os estaduais. Logo, seria necessário utilizar na operação uma organização do tipo força-tarefa multiagências, que requereria ampla coordenação. Criou-se, assim, a Operação Mandacaru, que requereu quatro meses de planejamento e preparação e teve a sua parte operacional militar-policial-judicial-social realizada durante mais de 50 dias, de 29 de novembro de 1999 a 20 de janeiro de 2000, seguida das ações permanentes de consolidação e ampliação dos resultados, pelos governos federal e estaduais.
O caráter multidisciplinar da operação pode ser constatado na própria composição. Foram envolvidas cerca de 2 mil pessoas do Exército, Marinha e Força Aérea; Ministério da Reforma Agrária; Poder Judiciário; DNER; Polícia Federal; Polícia Rodoviária Federal; Polícias Militar e Civil; Receita Federal; Incra; Funai; Ibama; Conselho de Controle da Atividade Financeira (Coaf), do Ministério da Fazenda; Banco do Nordeste; e agentes sociais e de saúde. Foi a maior operação de segurança nacional realizada pelo governo federal na região. Os R$ 7,5 milhões investidos na operação foram recuperados com folga por multas aplicadas pela Receita Federal e pela Polícia Rodoviária Federal, que chegaram a quase R$ 17 milhões, naqueles 53 dias.
Meta estratégica
Como vimos, a meta estratégica era a reinstalação do exercício pleno da soberania do Estado brasileiro na região. Para isso, se fazia necessário neutralizar o predomínio da influência intimidatória dos bandidos, criar condições para a população voltar a desfrutar o sentimento de segurança e conquistar sua confiança. Prender as pessoas empregadas pelos chefões para o cultivo e a colheita não era prioridade. Depois de investigadas, elas recebiam um microcrédito do Banco do Nordeste e eram orientadas na constituição de um pequeno negócio ou prestação de serviço (carrinho de pipoqueiro, barraca na feira, triciclo para entregas, barco de pesca, equipamento para lavoura etc.).
Duas cooperativas de produtores foram constituídas para que pequenos lavradores agregassem valor aos seus produtos legais (sucos embalados, por exemplo) e os comercializassem diretamente em Recife, e não mais com os atravessadores. Na sequência da operação, com a participação da Prefeitura de Petrolina (PE), um grupo deles instalou um “bodódromo” (espécie de praça da alimentação com produtos elaborados exclusivamente com carne de bode), à margem do rio, sob a cabeceira da ponte. Dois ministros estiveram presentes à inauguração e os discursos daqueles pequenos empresários mostravam bem o sentimento coletivo de alívio e esperança.
Os “peixes grandes”, traficantes de peso do Polígono da Maconha que lograram fugir no início da operação, foram presos após investigação financeira, um trabalho feito pelo Coaf. O levantamento inicial das operações monetárias suspeitas foi iniciado na região por dois funcionários do órgão e finalizado na sede em Brasília.
Foram restaurados trechos esburacados das rodovias, que obrigavam os veículos ao deslocamento lento, ficando sujeitos aos assaltos frequentes. As estradas passaram a ter patrulhamento intenso pela Polícia Rodoviária Federal e Polícia Militar, e os automóveis, ônibus e caminhões de carga que demandavam ou vinham dos estados da Bahia, Alagoas, Paraíba, Ceará e Piauí não mais precisaram constituir comboios escoltados, para cruzar o “polígono” pernambucano.
O Incra deu andamento aos processos de expropriação, sem indenização, de fazendas com plantações de maconha, com base no artigo 243 da Constituição. A primeira das expropriações de terra foi oficializada em junho de 2000, em Petrolina, cidade na qual o Incra instalou um escritório. Outras aconteceram e nelas fizeram-se assentamentos da reforma agrária.
Como o crime está sempre tentando se antecipar à imposição da lei, as quadrilhas passaram a plantar em terras do Estado (principalmente em ilhas do São Francisco habitadas por indígenas), para escapar do confisco. Mas, como sempre fez desde a década de 1980, a Polícia Federal continuou atuante e o trabalho de combate ao plantio e à comercialização da maconha teve continuidade, inclusive com a instalação de uma delegacia regional em Salgueiro. Além disso, visando garantir o ímpeto que a repressão ao narcotráfico adquiriu, a Justiça Federal constituiu Varas específicas em cidades do sertão, e a Agência Brasileira de Inteligência manteve agentes operando na área e fornecendo informações para os órgãos de repressão pernambucanos.
Números da operação
Ademais, a força-tarefa emprestou para a polícia de Pernambuco um helicóptero e quatro barcos para a manutenção do trabalho aéreo e de rondas nas ilhas do Rio São Francisco. Trezentos e cinquenta fuzis automáticos leves foram doados pelo Exército à Polícia Militar e 40 viaturas foram mobilizadas na região pela Polícia Rodoviária Federal. O governo do Estado comprou 14 veículos de transporte de tropas e empregou 350 policiais militares e 120 agentes civis no sertão.
Alguns números da operação: 544 mil pés de maconha erradicados em 255 plantios; 224 mil mudas destruídas; 620 kg de maconha embalada apreendidos; 242 mil pessoas abordadas; 188 prisões em flagrante; 16 prisões de “gerentes”, por mandado; 110 mil veículos fiscalizados e 155 apreendidos; 257 armas de fogo apreendidas.
Paralelamente, o Banco do Nordeste articulou o Projeto Moxotó-Pajeú, harmonicamente com o conceito da Operação Mandacaru. O objetivo era incentivar novas oportunidades de trabalho aos produtores rurais, a partir das vocações econômicas da região, com assistência técnica, fomento, sementes e acesso aos mercados. Foram medidas que atenuaram ou neutralizaram dificuldades que criavam algumas condições para o desencadeamento da violência no campo.
Empreendedores e associações de produtores de 20 municípios pernambucanos e baianos do Alto Sertão do São Francisco foram beneficiados com operações de financiamento de longo prazo, totalizando cerca de 20 mil produtores. No total, foram R$ 50 milhões para estimular atividades produtivas, como a cultura do arroz, a piscicultura, a fruticultura irrigada e a criação de ovinos e caprinos. A meta do banco era fechar 2003 somando R$ 400 milhões de empréstimos.

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Como ato final da Operação Mandacaru, foi feita uma prestação de contas para a população local, em 20 de janeiro de 2000, em Salgueiro, centro de gravidade de todas as ações. Mais de 300 pessoas lotaram o auditório e marcaram um clima de alegria e orgulho por terem vivido, passo a passo, o processo de reconquista da sua espontaneidade. Quando a equipe de planejamento e preparação comparou aquele cenário com a situação que havíamos presenciado nos reconhecimentos, chegamos a nos emocionar. Em setembro, outubro e novembro de 1999, nem sequer conseguíamos avançar numa conversa com as pessoas na rua, quando falávamos sobre tráfico de maconha. Havia medo de tocar no assunto. Se houvesse maneira de traçar o gráfico da curva de confiança da população, participação das comunidades na operação e sentimento da relevância do Estado, certamente ela seria ascendente, com uma acentuada tendência à verticalização a partir, talvez, da segunda semana.
Somente essa transformação teria sido bastante como indicadora de que o Estado reassumira a soberania na área. Mas, foi realizada investigação metódica no período seguinte ao encerramento, a qual confirmou a impressão.
A exposição desse caso real visou, como afirmei no início, exemplificar a abrangência do conceito de segurança nacional e, também, a desmistificar o estigma, já anacrônico, que marcou a expressão.
Medidas preventivas
reio que o leitor pôde perceber que situações graves de perturbação da ordem pública tendem a extravasar da seara da segurança pública e a serem acolhidas na faixa seguinte, da segurança nacional. É uma transição que deve ser pavimentada precavidamente pelo nível federal, a quem cabe acompanhar perturbações da ordem nos estados como se fora uma gestão do risco de ter de vir a empregar seus elementos de repressão e de intervenção nas causas do problema. Sem, contudo, tornar corriqueiro o emprego das Forças Armadas.
Voltemos à “guerra de enésima geração” do tráfico de drogas nas grandes cidades. Não se pode continuar com o jogo em que a sociedade finge não ser responsável pelo aumento da demanda, e o Estado finge que previne esse aumento e que combate eficientemente a oferta. Um jogo no qual a grande mudança de atitude desses dois lados deve favorecer a eficácia da prevenção do uso por meio da educação voltada para a absorção dos reais valores da cultura brasileira.
Cabe, ainda, reafirmar a importância das medidas preventivas das causas da violência, inclusive a gerada pela disputa das organizações criminosas pelo mercado. Além disso, não há como não descartar a priori o estudo da descriminalização das drogas hoje ilegais, cujo mercado é a fonte maior da violência.
Quanto à repressão ao tráfico, enquanto for ilegal, e aos crimes correlatos, que seja feita à luz da segurança nacional. Convém frisar, não temendo ser cansativo, sem vulgarizar o emprego das Forças Armadas.

Alberto Cardoso é general de exército (Reformado). Ex-ministro chefe do gabinete de Segurança Institucional, na presidência da República (1995-2002). Nesse período, sua equipe criou o Sistema e a Agência Brasileira de Inteligência, o gabinete de Prevenção e Gerenciamento de Crises, a secretaria nacional Antidrogas, o 1º Plano Nacional de Segurança Pública, o Programa de Integração e Acompanhamento de Políticas Sociais para Enfrentamento dos Indutores de Violência e o Sistema Nacional de Inteligência de Segurança Pública. Foi membro da comissão planejadora do ministério da Defesa, secretário-executivo do Conselho de Defesa Nacional, presidente da Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Conselho de Governo. Professor de Liderança, Estratégia e Conjuntura Política na pós-graduação da Fundação Armando Álvares Penteado, de 2006 a 2013. Professor emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército. Sua última comissão no exército foi chefe do departamento de Ciência e Tecnologia (2003-2006).

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