18 julho 2016

Crise Amplia Espaços de Diálogo com os EUA

O impeachment de Dilma Rousseff e a crise que o gerou não supreenderam Washington. Os primeiros movimentos do governo interino de Michel Temer e as novas ênfases de sua política externa foram bem recebidos e apontam para uma renovação do diálogo e da cooperação bilaterais, no momento em que o panorama continental se desanuvia graças a eventos como a eleição de Mauricio Macri na Argentina, a normalização das relações dos EUA com Cuba e o desmoronamento do regime chavista na Venezuela.

O impeachment de Dilma Rousseff e a crise que o gerou não supreenderam Washington. Os primeiros movimentos do governo interino de Michel Temer e as novas ênfases de sua política externa foram bem recebidos e apontam para uma renovação do diálogo e da cooperação bilaterais, no momento em que o panorama continental se desanuvia graças a eventos como a eleição de Mauricio Macri na Argentina, a normalização das relações dos EUA com Cuba e o desmoronamento do regime chavista na Venezuela. Não se subestimam, porém, na capital americana, os desafios que a crise apresenta aos brasileiros, entre os quais se incluem a exaustão do capitalismo de Estado, a falência da corrompida classe política nacional e do sistema que a produziu. A estes, acrescentam-se as incertezas trazidas pela forte popularidade demonstrada por candidatos populistas de direita e de esquerda na campanha à Casa Branca. O desejo da administração Obama de investir numa relação mais próxima com o Brasil permanece, mas sua concretização depende da conclusão do processo de impeachment em Brasília, da consolidação da posição de Temer e do desfecho das eleições de 8 de novembro nos EUA. A boa notícia é que as dificuldades favorecem o realismo e deixam espaço e tempo para os governos e demais interessados prepararem o caminho para iniciativas produtivas.
Os fatores que levaram ao estado de calamidade política e econômica que o Brasil vivia em meados de 2016 eram conhecidos nos centros de decisão nos Estados Unidos. O assalto a grandes empresas públicas brasileiras durante os governos do Partido dos Trabalhadores e seus desdobramentos, o desmanche da economia e a crise política que levou ao impeachment da presidente Dilma Rousseff não causaram surpresa. A revelação, em 2013, por Edward Snowden, de escutas telefônicas realizadas pelo serviço de inteligência americano no Brasil incluiu negócios da Petrobras e sugere que Washington estava monitorando as tenebrosas transações que envolveram a empresa estatal e sua subsidiária nos EUA. A progressiva deterioração fiscal, a perda de confiança dos agentes econômicos na gestão governamental e a notória incapacidade política de Rousseff estavam no radar. Também no radar estava a possibilidade do afastamento da presidente, que se tornou evidente em dezembro de 2015, quando o Supremo Tribunal Federal revisou o rito do impeachment. As ausências de mulheres no ministério do presidente interino Michel Temer certamente causou espanto. Mas, as derrapagens da decolagem não eram inesperadas.
Se gerou perplexidade e preocupação, a crise abriu também novos espaços para Washington e Brasília explorarem uma maior aproximação ao revelar fortes sinais de esgotamento do capitalismo de Estado brasileiro e obrigar o país a confrontar o isolamento econômico a que se condenou durante os governos petistas, desperdiçando oportunidades, como a dos Brics, e turbinando o tradicional protecionismo nacional com as grandiosas fantasias ideológicas. A maior destas foi a de liderar uma “transformação na geografia econômica mundial” quando a economia brasileira, pautada pela promoção do consumo, temporariamente facilitada pela expansão do comércio de commodities, e não por políticas voltadas à promoção dos investimentos, perdia competitividade, e o PIB encolhia como proporção da economia global.
Não se subestima no governo Obama a gravidade da crise brasileira e a possibilidade de o presidente interino Michel Temer não conseguir apoio no Congresso para aprovar medidas fiscais impopulares, mas indispensáveis para restaurar a confiança dos agentes econômicos e reverter o pavoroso quadro fiscal que herdou. A aposta, no entanto, é que a dificuldade extrema da situação, que alguns comparam a uma depressão econômica, trabalhará a favor da adoção de medidas duras e ajudará o líder interino a se consolidar no poder e fazer da crise uma oportunidade para preparar o caminho para reformas estruturais que a realidade impõe. Em outras palavras, a percepção nos EUA sobre o momento brasileiro é que a crise, essencialmente doméstica, nasceu de escolhas equivocadas feitas que terão que ser corrigidas, num processo que levará anos. O mesmo raciocínio reforça a conviccão no governo Obama de que o Brasil reorientará a política externa num sentido benéfico para as relações bilaterais num momento de mudanças na região.
Gestos positivos
A exaustão dos regimes bolivarianos da América do Sul, a começar pela Venezuela, aumenta a expectativa em Washington de que o Brasil voltará a atuar de forma a reduzir tensões em sua vizinhança, valorizando a capacidade tradicional de sua diplomacia de promover estabilidade. Três gestos ilustraram, no meses de maio e junho, a interpretação esperançosa da Casa Branca sobre o quadro aflitivo que o Brasil enfrenta e seu desejo de investir num diálogo mais próximo com o país. O primeiro foi a nomeação do experiente diplomata Peter Michael McKinley para embaixador em Brasília. Anunciada quando o governo Temer mal decolara e era vulnerável aos efeitos do envolvimento de alguns de seus ministros em tramoias imaginadas para melar a operação Lava Jato. Mas, ela revela o desejo de um acercamento, tanto para melhor monitorar o complexo quadro de crise com que o país se defronta e suas implicações regionais, como para identificar caminhos possíveis para uma cooperação produtiva. McKinley é peso pesado nos quadros do Departamento de Estado e conhecedor profundo da região. Nascido na Venezuela, criado no Brazil e no México, foi embaixador no Peru e na Colômbia e número dois da representação dos EUA na União Europeia antes de ser alçado ao commando da embaixada em Kabul, um dos maiores e estrategicamente mais sensíveis postos da diplomacia americana. Uma vez instalado em Brasília, ele terá papel chave na articulação de posições com o Brasil e os vizinhos da América do Sul para lidar com as consequências da crise terminal do governo de Nicolás Maduro.
A viagem a Brasília da secretária de Estado adjunta para as Américas, Mari Carmen Aponte, que ocupa o posto interinamente, no começo de junho, estava programada antes do afastamento de Rousseff. Mas, acabou sendo o primeiro contato de alto nível entre os governos Obama e Temer. As reuniões de Aponte em Brasília incluíram o novo embaixador do Brasil nos EUA, Sergio Amaral, diplomata aposentado, aliado do chanceler José Serra e ex-ministro do Desenvolvimento, que foi chamado de volta à ativa para estabelecer uma linha direta entre os centros de decisão em Washington e Brasília.
Para Washington, impeachment não foi golpe
O terceiro gesto foi a evolução da atitude americana sobre o impeachment entre a decisão da Câmara dos Deputados, em abril, e a votação, em maio, de sua admissibilidade pelo Senado. A intenção inicial da administração Obama era de se limitar a destacar o caráter institucional e a legalidade do processo, sem entrar no mérito. Os fatos, contudo, cuidaram de tornar a posição americana mais explícita. Na sequência da votação no Senado, que acolheu a decisão da Câmara por 55 de seus 81 membros, e da mobilização de simpatizantes de Rousseff para promover na imprensa internacional contestação da legitimidade do governo interino, Washington discordou da tese do “golpe”.
“Há um claro respeito às instituições democráticas, uma clara separação de poderes, vigora o Estado de Direito e há uma solução pacífica de disputas”, afirmou o representante dos EUA na Organização dos Estados Americanos (OEA), Michael Fitzpatric. O diplomata reagia a declações de representantes da Venezuela e da Bolívia sobre o suposto carater antidemocrático do impeachment de Dilma Rousseff. “Nada disso parece existir na Venezuela hoje, e essa é a nossa preocupação”, acrescentou ele. Em entrevistas, Fitzpatrick rechaçou expressões como “golpe brando” e outras usadas pelos bolivarianos para caracterizar o impeachment. “Não acreditamos que seja um golpe suave ou de outro tipo”, disse o diplomata. “O que ocorreu no Brasil seguiu o processo legal constitucional respeitando completamente a democracia”.
A posição americana certamente foi encorajada pelas declarações de repúdio às interferências de Caracas e aliados bolivarianos na crise brasileira que o novo ministro das Relações Exteriores, José Serra, fez antes mesmo de assumir formalmente o posto. Ao tomar posse, Serra confirmou que o Brasil deixaria para trás a cumplicidade dos governos Lula e Dilma ante a perseguição dos opositores e outras estrepulias e se pautaria pelos valores de sua constituição democrática e pelos interesses da nação – “não mais do governo e nunca de um partido”, disse Serra.
A atitude brasileira fora antecipada a Washington pelo presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, Aloysio Nunes, em visita realizada a Washington em abril, nos dias que se seguiram à aprovação do impeachment na Câmara. Colega e aliado de Serra, Nunes manteve reuniões com os senadores Bob Corker, republicano que preside a Comissão de Relações Exteriores do Senado americano, e com Benjamin Cardin, democrata e número dois da comissão, com quem já vinha articulando posições comuns sobre a Venezuela desde meados de 2015. Em reunião com subsecretário de Estado para Assuntos Políticos, Thomas Shannon, ex-embaixador dos EUA em Brasília no primeiro mandato de Dilma Rousseff, o senador adiantara que o imperativo de enfrentar a calamidade econômica deixada por Dilma levaria o país a investir numa articulação de posições com Washington, não apenas na política hemisférica, mas em temas globais e, em especial, nas pautas econômicas.
Efeitos da derrocada chavista são preocupação prioritária
A expectativa de uma atitude consistente do Brasil ante o desmoronamento do regime de Caracas e suas repercusões na região era o primeiro dos assuntos de uma lista elaborada nas primeiras semanas de 2016 pela Casa Branca, com aportes dos vários departamentos do governo, para guiar o diálogo dos Estados Unidos com o Brasil no período pós-Dilma. Entre os mais urgentes, a epidemia de Zika e a cooperação para garantir a realização em segurança dos Jogos Olímpicos do Rio, foram tratados por Aponte em sua visita a Brasília.
Os demais temas não são novos. Incluem iniciativas que facilitem o comércio bilateral, que têm sido acanhadas. Outro tópico que pode ganhar peso é a retomada da assistência mútua na área judicial, prevista em acordo firmado pelas administrações de Fernando Henrique Cardoso e Bill Clinton, no ano 2000, mas que foi aos poucos deixado de lado no governo Lula. A importância da cooperação judicial entre o Brasil e os EUA foi evidenciada pelas ramificações internacionais das malfeitorias escancaradas pela Operação Lava Jato e outras investigações. A cooperação em defesa é também tema da pauta alinhavada em anos recentes nos vários “diálogos” de interesse mútuo. Quase todos ficaram no papel, mas podem, agora, ser retomados. Supondo-se que Temer governará até dezembro de 2018 e que a democrata Hillary Clinton prevalecerá sobre Donald Trump nas eleições de 8 de novembro – esse é o único desfecho com que aparentemente trabalha a administração Temer, segundo indicou o chanceler José Serra em entrevistas – são razoáveis as chances de as relações bilaterais ganharem substância e altitude.
Panorama regional favorece engajamento
O contexto regional favorece um maior enjagamento. A eleição de Mauricio Macri na Argentina facilita uma renovação do Mercosul orientada pela visão do regionalismo aberto que inspirou a formação do grupo. A reinvenção do Mercosul por seus dois maiores sócios, a partir de reformas internas das economias brasileira e argentina, é condição para uma aproximação com os mercados dinâmicos nos EUA e na Ásia, seguindo o caminho já trilhado com sucesso pelo Chile, Peru, pela Colômbia e pelo México. É bem vista na capital americana a intenção de Serra de privilegiar as relações com o México.
Operam nessa mesma direção o fim do estranhamento de mais de uma década entre Washington e Buenos Aires e a normalização das relações dos EUA com Cuba. Articulada por Ben Rhodes, vice-conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca, e pelo diplomata Ricardo Zuniga, atual cônsul dos EUA em São Paulo, o acordo Washigton-Havana desanuviou o ambiente hemisférico ao colocar a última pendência da Guerra Fria no caminho de uma resolução, que deverá culminar com o levantamento do obsoleto e contrapoducente embargo econômico contra a ilha.
As crises políticas que marcaram as relações dos governos petistas e Washington–a confrontação em torno da deposição do presidente Manuel Zelaya, em Honduras, em setembro de 2009, e a desastrada tentativa de mediação de um acordo nuclear entre a comunidade internacional e o Irã, feita em 2010 pelo então popularíssimo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e o episódio Snowden, em 2013 – são questões do passado. Mesmo tendo causado curto-circuitos no diálogo, elas não impediram a busca de entendimento entre os EUA e o Brasil num tema de primeira grandeza da diplomacia global – no acordo histórico alcançado na Conferência das Nações Unidas sobre Clima, em dezembro de 2015, em Paris, quando a crise que levaria ao afastamento da líder brasileira já estava desenhada.
Nos meses que antecederam a conferência, houve uma aproximação efetiva e coordenação de posições entre Brasília e Washington. A então ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, recebeu elogio público do presidente Barack Obama por sua atuação no encontro, que resultou num inédito acordo entre 195 países para reduzir emissões de carbono. A Casa Branca se empenhou para garantir o apoio do Brasil aos compromissos anunciados na conferência durante a visita que Dilma Rousseff fez a Washington no final de junho de 2015. “Foi o nosso único objetivo na visita”, contou, em janeiro de 2016, um funcionário graduado diretamente envolvido nos preparativos da visita.
A rápida deterioração da economia brasileira em 2015 e das incertezas trazidas pela perspectiva do impeachment de Rousseff levaram a administração americana a fazer uma pausa no diálogo bilateral à espera de que o processo político criasse novas oportunidades de engajamento. “Mantemos o interesse no Brasil, é claro, mas ele está focado em iniciativas tangíveis, como programas de cooperação em andamento sobre assuntos prementes para os dois países, como a epidemia de Zika e as preocupações com a segurança dos Jogos Olímpicos do Rio”, disse um diplomata, em fevereiro deste ano. Washington continuou a sublinhar a importância que passou a atribuir, a partir do governo Lula, à crescente conectividade entre as duas sociedades, derivada do aumento da classe média brasileira e de seus efeitos econômicos. “People to people relations”, no jargão oficial americano, foi a fórmula adotada para indicar interesse em relações que vão além dos contatos oficiais e incluem as interações entre estudantes, educadores, cientistas e empresários, que se intensificaram nos últimos 20 anos. O forte crescimento do movimento de turistas brasileiros nos EUA durante os governos petistas foi um componente importante do cálculo de Washington.
O papel de Thomas Shannon
A ênfase numa aproximação entre os EUA e o Brasil ancorada nos interesses de suas sociedades, e não apenas nas prioridades momentâneas de seus governos, vem de uma noção simples mas potente, segundo a qual as convergências entre os interesses permanentes entre as duas maiores democracias do continente são maiores do que as divegências. Essa visão começou a ganhar contornos na Casa Branca no final da administração Clinton, promovida pelo cientista político Arturo Valenzuela, estudioso das transições democráticas que era, na época, diretor da assessoria do Conselho de Segurança da Casa Branca para a América Latina, e por seu vice, o diplomata Thomas A. Shannon. Nessa visão, as convegências são impostas pela realidade, independem, em boa medida, de decisões dos governos e funcionam como uma espécie de baliza e estabilizador das relações bilaterais. O desafio é identificá-las e trabalhar para que se traduzam em resultados.
Primeiro representante do governo Obama em Brasília, no único posto de embaixador que ocupou no exterior, Shannon foi alçado em fevereiro de 2016 a subsecretário de Assuntos Políticos do Departamento de Estado, a posição mais alta da diplomacia americana para um funcionário de carreira. A trajetória do talentoso diplomata foi feita em funções nas quais lidou direta ou indiretamente com o Brasil, começando pelo posto de assistente executivo do embaixador Harry Schlaudeman, em Brasília, no final da década de 1980. Shannon passou a se dedicar especialmente aos assuntos do maior país da América Latina e de sua relação com os EUA, a partir do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, quando foi chamado por Valenzuela para a Casa Branca. Nessa trajetória, que incluiu governos antagônicos nos dois países, o diplomata construiu sua perpecção sobre o Brasil. Com a chegada de George W. Bush ao poder, foi alçado a diretor regional do staff do Conselho pela conselheira de Segurança Condoleeza Rice. Nessa posição, trabalhou nos preparativos das visitas que Lula fez à Casa Branca, como presidente eleito, em dezembro de 2002, e sete meses depois, acompanhado por quase todo seu ministério, apenas três meses após a invasão do Iraque pelos EUA, que seu governo condenara.
As visitas neutralizaram efeitos deletérios que a chegada ao poder no Brasil de um líder esquerdista, de inclinações antiamericanas, poderia ter tido na Washington conservadora e belicosa de Bush. Este fez duas visitas ao Brasil, a primeira das quais para assinar um acordo de cooperação sobre o desenvolvimento de combustíveis renováveis no continente que prometia bons resultados até ser atropelado em Brasília pela mudança de foco da política energética, do etanol para o pré-sal, a partir de 2007, sob orientação da ex-ministra da energia e então chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, com consequências conhecidas. Enviado a Brasília em 2010, depois de atuar como secretário de Estado Adjunto para o Hemisfério Ocidental, Shannon organizou a toque de caixa uma visita do presidente Barack Obama ao Brasil, em março de 2011, para demonstrar boa vontade à recém-empossada Dilma Rousseff. O evento recolocou o diálogo bilateral nos trilhos depois da trombada no Irã e teve um aspecto simbólico significativo: foi a primeira vez que um presidente dos EUA veio ao Brasil antes de receber a visita de seu equivalente em Washington. O diplomata refletiu sobre o futuro da relação bilateral numa palestra que fez no Wilson Center, em seu retorno a Washington em dezembro de 2013.
Falando ainda sob o impacto do caso Snowden, ele salientou a importância “do surgimento de uma nova conectividade” entre o Brasil e os EUA na sequência da estabilização econômica na década de 1990 e da expansão da classe média, na década seguinte. “É essa nova conectividade das nossas sociedades que, crescentemente, determinarão o rumo de nosso relacionamento, e ambos os nossos governos, encorajando isso, vêm dando lastro à relação, o que ajuda em tempos difíceis”, disse ele.
A ideia segundo a qual as demandas dos cidadãos definiriam a pauta política num país democrático, provido de instituições estáveis, ainda que deficientes, estava presente na avaliação que Shannon fez ao autor destas linhas dez anos antes de sua palestra no Wilson Center, após o colapso das negociações para a criação da Área de Livre Comércio das Américas, a Alca. “Em democracia, a sociedade brasileira demonstra ter uma dinâmica interna que faz com que ela sempre identifique edeixe claro seus interesses”, disse ele após o fracasso de uma reunião ministerial do grupo, em Miami.
Essa avaliação transparece nas declarações públicas de Washington sobre o impeachment, nos motivos da nomeação do veterano McKinley para comandar a embaixada dos EUA em Brasília e em análises feitas reservadamente sobre a complexidade da crise política e econômica e os caminhos possíveis para superá-las. Ela informa, também, o discreto apoio de executivos de subsidiárias de empresas americanas sobre as investigações da Operação Lava Jato.
Acordo de leniência entre Petrobras e governo dos EUA testará relações bilaterais
Eu e meus colegas vemos com satisfação o respaldo que a população tem dado ao combate à corrupção no Brasil”, disse o presidente de uma dessas empresas. “Não é agradável ver executivos de empresas sendo levados para a cadeia, mas as pessoas estão fartas de trabalhar num ambiente dominado pela cultura do favorecimento e da propina”, explicou. “Além de gerarem enormes ineficiências, essas práticas, que são ilegais em nossos países, inibem os negócios, prejudicam a economia e destroem empregos”. O grau de vulnerabilidade de ministros do governo Temer e de boa parte do Congresso às investigações, que ficou claro nos acidentes da decolagem do governo interino, são sinal de que essa ficha ainda não caiu entre os políticos no Brasil e permanece como fonte de grande preocupação.
No curto prazo, as atenções estão concentradas, obviamente, no sucesso politico no Congresso da agenda da equipe econômica de Temer, que foi bem recebida. O ministro da Fazenda Henrique Meirelles fez carreira na banca americana e é bem visto na administração Obama e no mercado financeiro. A aprovação da nova meta fiscal e da desvinculação de 30% dos recursos da União na execução do orçamento, reforçaram a predisposição positiva. Mas, há muito por fazer e o caminho será longo e acidentado.
O efeito salutar teve também a nomeação de Pedro Parente para a presidência da Petrobras. Parente é conhecido e respeitado nos meios oficiais e empresariais americanos por seu desempenho nas funções que desempenhou no ministério de Fernando Henrique Cardoso e, depois, como alto executivo no setor privado. Ministro Chefe da Casa Civil no final do governo tucano. Pedro Parente foi incumbido de mapear e montar o processo de transição institucional das tarefas do governo para a administração Lula. O trabalho, modelado na transição de governos nos EUA, teve a colaboração da Casa Branca, que organizou uma série de reuniões para a equipe liderada por Parente.
Entre outros desafios que enfrentará para reeguer a minada Petrobras, caberá ao novo presidente da companhia negociar com o Departamento de Justiça e a Securities and Exchange Comission um acordo de leniência que resolva as alegadas violações ao Foreign Corrupt Practices Act (FCPA) e às leis que regem o mercado de capitais nos EUA cometidas durante os mandatos de Lula e Dilma.
Em outubro de 2015, o promotor federal americano Patrick Stokes, então chefe da unidade do Departamento de Justiça encarregada da aplicação do FCPA, passou quatro dias em Curitiba em reuniões com a força tarefa da Lava Jato. Stokes foi promovido desde então na divisão criminal do ministério especializado na repressão a fraudes. Segundo relatos de imprensa, a multa à Petrobras poderia atingir a casa de US$ 1,5 bilhão. Este ano, o Departamento de Justiça ampliou as investigações sobre o Petrolão e incluiu a Odebrecht, Andrade Gutierrez, Braskem e OAS entre as empresas monitoradas. Elas têm em comum o fato de operarem subsidiárias nos EUA, ou terem emitido dívida no mercado de capitais americano ou, ainda, feito pagamentos a partir de contas em bancos americanos. O endividamento e a fragilidade financeira da Petrobras tornam as tratativas das autoridades judiciais americanas com a estatal tarefa políticamente sensível. O assunto é de alta visibilidade e testará a capacidade dos dois governos de chegar a um entendimento. Paralelamente às investigações, há os processos judiciais iniciados por acionistas da Petrobras que se dizem lesados pelos crimes do Petrolão.
São vistas como alvissareiras em Washington as ênfases dadas pelo chanceler José Serra, em discursos e entrevistas, na busca de uma aproximação efetiva com os EUA e os países da região que cultivam boas relações com Washinton, bem como parceiros tradicionais de peso, de modo a tirar o país do isolamento econômico. A nova estratégia de Brasília aponta para o abandono da “diplomacia de prestígio” perseguida pelo governo Lula, muito além das possibilidades orçamentárias do Itamaraty, sem alcançar nenhum dos três objetivos declarados por Brasília em 2003: a reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas e a ascensão do país a uma cadeira permanente no Conselho de Segurança; um acordo de liberalização global na Organização Mundial de Comércio e a aceitação pelos vizinhos da América do Sul da liderança brasileira.
Disposição positiva à nova postura do Itamaraty
Anotada com particular interesse em Washington foi a reafirmação da importância, na agenda diplomática brasileira, de temas como a sustentabilidade, que Serra elencou como terceira das dez diretivas de seu discurso inaugural no Itamaraty. A dimensão do território e as grandes reservas florestais e de água doce e a biodiversidade que o Brasil possui fazem com que o país seja visto como ator central na questão do aquecimento global. Tema essencialmente econômico, com importantes implicações nas áreas social e de segurança, a sustentabilidade ambiental do planeta é prioridade na sociedade americana e deve assim permanecer, mesmo num cenário alterado por uma vitória do republicano Donald Trump nas eleições presidenciais de novembro. Pressupondo-se, no entanto, que os americanos optarão pela democrata Hillary Clinton, a aposta numa forte colaboração bilateral nessa área faz sentido, pois o Brasil possui ativos que fazem dele uma potência em matéria ambiental. Reforçada por uma disposição de executar uma política de comércio exterior balizada pela busca de resultados, a nova postura da diplomacia brasileira abre espaços para a articulação de iniciativas conjuntas.
Assunto igualmente relevante é a remoção das barreiras não tarifárias no comércio com os EUA, no menor prazo possível. Este foi o único tópico específico que o chanceler brasileiro abordou em seu discurso de posse, ao falar sobre a necessidade de ampliar o intercâmbio entre os dois países e com outros parceiros tradicionais do Brasil. Trata-se de assunto antigo e difícil. Envolve, de um lado, a seletividade das barreiras erigidas pelos EUA ao comércio agrícola. De outro, toca nos vários obstáculos estruturais que reduzem a competividade brasileira e alimentam o protecionismo no país. Confrontá-lo não será exercício simples em meio a uma recessão prolongada que dificulta ações de liberalização comercial num país historiamente avesso a ela. Complicando o cenário, o comércio internacional perdeu dinamismo nos últimos anos, já não puxa mais o crescimento econômico dos países como antes e reduziu seu apelo como gerador de empregos, o que, por sua vez, amplia um sentimento antiliberalização nos EUA e nos países desenvolvidos.
Mesmo diante deste cenário adverso, presume-se que a crise gerará as pressões internas necessárias para que o Brasil reexamine a tradição protecionista que, turbinada na era Lula-Dilma, tornou a economia brasileira uma das mais fechadas e menos competitivas do mundo. Reverter o quadro passa por reformas tributária e trabalhista e por mudanças nos modelos de gestão de agências regulatórias que hoje inibem os investimentos produtivos e operam contra o crescimento econômico e a criação de empregos.
Depende, também, da disposição do setor privado brasileiro de guiar-se pelos exemplos de seus setores competitivos, que buscam a expansão de seus negócios nas cadeias regionais e globais de produção e comércio. Movimentos nessa direção têm sido incentivados pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e pela Confederação Nacional da Indústria (CNI). Trata-se de abandonar a postura defensiva, definir objetivos mensuráveis e traçar estratégias articuladas com um governo motivado a aumentar a produtividade e a competitividade da econonomia, preservando setores estratégicos.
Não se pode, é claro, subestimar as dificuldades que essa agenda apresenta para o Brasil. Não é apenas a difícil conjuntura nacional que recomenda realismo. Pesam as incertezas de uma realidade internacional repleta de desafios nos polos dinâmicos da economia mundial na Ásia, na Europa e nos Estados Unidos. O panorama da campanha de 2016 à Casa Branca, em particular, revelou dúvidas novas sobre o ânimo da sociedade americana a engajamentos externos, que pautaram Washington depois da Segunda Guerra Mundial. No que interessa às relações bilaterais, essas dúvidas estão expressas nas posições francamente protecionistas dos candidatos que estavam na contenda à presidência à vésperas das convenções partidárias de julho de 2016. Fenômenos políticos da temporada, o empresário Trump, candidato republicano, e o senador democrata Bernard Sanders, introduziam na discussão uma forte hostilidade a acordos de liberalização de comércio que eram até anos recentes parte das plataformas dos dois partidos, mas perderam apoio entre eleitores.A erosão progressiva do poder de comprar da classe média, que encolheu entre 20% e 25% nas últimas quatro décadas, contribuiu para que esse novo fator, politicamente tóxico, ganhasse audiência na campanha presidencial.
Sob pressão, a ex-senadora e ex-secretária de Estado Hillary Clinton, provável candidata do Partido Democrata, renegou seu apoio à Parceria Transpacífica (TPP) como modelo de acordo comercial na era pós-OMC, tanto para não perder a briga pela candidatura do partido para Sanders como para se preparar para a dura disputa com Trump nas eleições de 8 de novembro. Uma tese popular entre seguidores de Hillary que acreditam na agenda liberalizante de comércio é que, uma vez eleita, ela negociará com Obama e o presidente da Câmara de Representantes, Paul Ryan, a ratificação do TPP antes de tomar posse, no dia 20 de janeiro. Mas, não há garantias.
A boa notícia, se há alguma nesse cenário francamente negativo, é que as conjunturas políticas do Brasil e dos Estados Unidos manterão baixas, no curto prazo, as expectativas sobre o que pode ser feito para melhorar as relações. O desejo de busca de um maior engajamento ficará no terreno da renovação de contatos, de prognósticos e do mapeamento do terreno. Não há muito mais do que isso que os dois governos possam fazer antes de o Senado finalizar o processo de impeachment de Rousseff, Temer consolidar sua posição, mostrando-se apto a governar, e os eleitores americanos pronunciarem-se nas urnas de novembro. Confirmando-se a hipótese da eleição da primeira mulher à presidência dos EUA e pressupondo-se uma evolução positiva do processo político brasileiro, podem-se abrir perspectivas bem mais positivas entre os dois países. Uma das razões é que haveria continuidade na estratégia de engajamento de Washington. Outra é que a Casa Branca seria habitada por uma líder que tem uma visão bem informada sobre o Brasil, adquirida ao longo de anos como primeira-dama, senadora e secretária de Estado, e reforçada por uma boa rede de contatos. Este não é um detalhe trivial.
Washington, 6 de junho de 2016.

Paulo Sotero é jornalista, professor visitante da Universidade de George Washington e colaborador do jornal O Estado de S.Paulo, do qual foi correspondente na capital americana entre 1989 e 2006. Dirigiu por 14 anos, o Brazil Institute, do Woodrow Wilson International Center for Scholars, no qual permanece como pesquisador sênior.

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