05 julho 2015

Críticas à Política Cultural Brasileira

Introdução

Proponho-me, neste artigo, a comentar as políticas públicas aplicadas no Brasil, de Vargas até a atualidade. Na introdução, defino o conceito de política pública, para se perceber como foram as condutas de cada período de governo. Enumero as tipologias preponderantes para cada período. Indico um conjunto de funções transversais para o exercício da gestão cultural, útil para qualquer governo administrar as suas políticas públicas. Aponto a introdução da sociedade civil organizada na gestão de bens e serviços públicos. No decorrer do texto, relato ocorrências, papéis e funções que, de alguma forma, impactaram a sociedade e a cultura, por período de governo. Finalizarei o artigo fazendo uma avaliação relativa aos períodos abordados.

Escolhi para realizar este artigo alguns conceitos que auxiliarão na compreensão do papel do Estado e de respectivos governos.

O que podemos compreender como política pública?
Política pública, seja na forma singular ou plural, é uma forma de circunstanciar e abrigar um conjunto ordenado de ações jurídicas e administrativas para o exercício da gestão pública nas áreas de sua atuação, como: educação, transporte, urbanismo, saúde, cultura, habitação e desenvolvimento econômico (mineração, agricultura, indústria, comércio e serviços). A qualidade de uma política pública reside na possibilidade de ultrapassar o estágio de pertencer a um governo ou partido e de alcançar o status de política de Estado. Desta forma, a ação abrigada no guarda-chuva de política pública não se restringiria a uma determinação programática de um partido. Seria uma formulação a favor do desenvolvimento social e econômico de uma nação com alcance de longo prazo. A política pública inclui os papéis a serem desempenhados de forma ordenada: o Estado (primeiro setor), as empresas ou mercado (segundo setor) e as organizações da sociedade civil (terceiro setor).

Quais seriam as tipologias ou tendências que deveríamos perceber para cada período de governo?
Destacamos três tipologias ou tendências sobre o papel do governo: 1) Articulador 2) Assistencialista e 3) Regulador-intervencionista.

1) O articulador define-se por medidas governamentais que disciplinam recursos sem a obrigação de o Estado ser o seu realizador. Conta com a participação da sociedade.

2) Assistencialista: os recursos são repassados pela conveniência das forças, interesses e representação política e social.

3) Regulador-intervencionista: define um conjunto de normas e leis para regular o exercício cultural e determinar o que poderá e o que não poderá ser realizado quanto à matéria.

Quais são estas funções transversais para o exercício de uma política de Estado, independentemente de governo?
Defino quatro formas transversais de funcionamento da estrutura pública para que se dê conta das funções do Estado para trabalhar as expressões culturais cinema, literatura, artes plásticas, música, dança, circo e teatro, bem como para tratar de assuntos imateriais e sociais que permeiam a sociedade na atualidade. Este modelo foi adotado pela Secretaria de Cultura paulista e tem dado bons resultados.

A) Formação – Considera-se a dedicada ao ensino e à transferência do conhecimento de determinada expressão ou atividade cultural.
B) Difusão – Ações para levar à população o trabalho artístico, contemporâneo e histórico de todas as expressões culturais.
C) Memória e Patrimônio Histórico – Ações dedicadas à preservação, difusão de determinada edificação, sítios e acervos material, imaterial e histórico da sociedade.
D) Fomento – Ações voltadas ao financiamento total ou parcial das atividades anteriores, por meio da execução orçamentária definida em lei. O montante pode ser definido anualmente, conforme a disponibilidade e o interesse do governo. O fomento deve ser regulamentado por princípios republicanos de transparência, impessoalidade, probidade e acessibilidade.

Por último, coloco como relevante as leis das Organizações Sociais (OS) e das Organizações Sociais de Interesse Público (Oscip) que tratam da gestão compartilhada, entre a sociedade civil organizada e o Estado, de bens e serviços públicos. Criadas em 1998 pelo governo FHC, estas leis são um paradigma, porque têm a propriedade de deslocar do centro da questão pública “o controle” de realização de certas atividades pelo Estado para que sejam realizadas por entidades da sociedade civil organizada. Desta forma, valoriza-se o resultado sobre o controle.

A somatória destes itens poderia redundar em uma execução mais adequada da administração cultural. Em outras palavras, a gestão cultural poderia ser cumprida a partir das seguintes premissas: 1) estabelecer uma política pública definida, 2) a prática de funções transversais e 3) a execução da gestão de bens e serviços que passam a ser assunto compartilhado entre o Estado e a sociedade civil. Só assim avançaríamos neste processo. Ao revisar o que aconteceu na esfera federal no Brasil nos últimos 80 anos, vemos o quanto deixamos de avançar, comparando com os resultados alcançados pelo governo paulista a partir de 1998, na Saúde, e de 2003, na Cultura.

Era Vargas 1930-45 e 1950-54
O golpe que conduz Vargas ao poder determinou uma nova formação do Estado brasileiro. Foi criada e consolidada a centralização de atividades. Isto se reflete na formação de ministérios, órgãos e autarquias que passam a regular atividades de cunho nacional por meio de um orçamento unificado. O Brasil começou a ser administrado de forma orgânica e centralizadamente. Podemos dar como exemplo a criação do Ministério da Educação e Saúde, em 1930.  A partir de 1934 até o final do governo Vargas, Gustavo Capanema e seu chefe de gabinete, Carlos Drummond de Andrade, dirigiram o Ministério da Educação e Saúde. Esse ministério abrigou, desde o seu início, todas as iniciativas da função cultural. A partir de 1953, passou a denominar-se Ministério da Educação e Cultura, o MEC, até 1986, quando seria criado o Ministério da Cultura. Uma nova legislação foi implantada para dar início a um processo assistencialista de governo. Em 1935, a lei nº 91 estabeleceu como as entidades sem fins lucrativos receberiam recursos do Estado e determinou a criação das entidades reconhecidas como de utilidade pública que puderam receber, a fundo perdido, recursos para realizar suas atividades. As mesmas condições foram reproduzidas nas esferas de estados e municípios. Assim, as entidades conquistaram também isenções fiscais locais. O mecanismo era simples e bastava à entidade apresentar anualmente um relatório de atividades e um balanço fiscal para que a autorização fosse renovada e as isenções ou recebimento de recursos se realizassem. Os recursos eram liberados como convênio, ou seja, as entidades assinavam com a autoridade pública um termo com uma obrigação: 1) fazer determinado conjunto de atividades e 2) prestar contas dos recursos recebidos. Ainda quanto ao fomento, via renúncia fiscal, o período Vargas adotou pelo menos mais duas iniciativas: 1) em 1943, a federação abriu pela primeira vez a isenção do imposto de renda para as pessoas físicas e jurídicas que doassem recursos para as entidades qualificadas e 2) em 1952, as mesmas entidades que provassem a gratuidade significativa de suas operações poderiam deixar de recolher a totalidade, da parte do empregador, da contribuição do INSS. Desta forma, por estes mecanismos, como convênio e recebimento das isenções fiscais para as entidades sem fins lucrativos, conseguiram financiar parte de suas despesas e investimentos. Voltando a registrar as realizações do período 1934/45, podemos resumir as seguintes: Superintendência de Educação Musical e Artística; Instituto Nacional de Cinema Educativo (1936); Serviço de Radiodifusão Educativa (1936); Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (1937); Serviço Nacional de Teatro (1937); Instituto Nacional do Livro (1937) e Conselho Nacional de Cultura (1938). No segundo período Vargas, registra-se a inauguração do sistema de televisão como um marco para a vida cultural e do entretenimento brasileiro. A partir desta iniciativa de Assis Chateaubriand, as atividades para apresentações artísticas de diversas expressões se consolidariam no país, propulsionando sua importância no cenário nacional.

Períodos Juscelino, Jânio e Jango
A criação de Brasília alterou o cenário cultural. O Rio de Janeiro perdeu a centralidade. Os museus, biblioteca, órgãos públicos nacionais da área de cultura e os teatros mais importantes do país na época permaneceram na antiga capital. Porém, a clientela cativa deslocou-se para a nova capital. Por sua vez, a nova cidade não substituiu a exuberância da antiga. Mas, o que acontece com o Brasil neste período? A Bossa Nova, o Cinema Novo e os núcleos de cultura preenchem a cena nacional. “O Pagador de Promessas” ganha a Palma de Ouro em Cannes. No esporte, o Brasil amealha duas copas mundiais de futebol e uma de basquete. Havia uma euforia no ar. Mas, a história nos mostraria um Brasil tenso, intolerante com os valores democráticos sofrendo sérios abalos, culminando numa ditadura militar.
Um resumo sobre o período JK pode ser lido no site Projeto Memória.

Reproduzo, aqui, o conteúdo da informação digital sobre os anos JK na cultura.

Grande momento cultural
“Vistos à distância, os anos JK aparecem como um dos períodos mais ricos da produção cultural brasileira, num quadro de profundas mudanças de comportamento.”

“Foram os anos da consolidação do Cinema Novo, surgido pouco antes e que consagraria diretores como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e Joaquim Pedro de Andrade.”

“No teatro, aquele foi o tempo em que deslancharam os grupos Arena e Oficina, com o impulso de criadores como Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri e José Celso Martinez Corrêa.”

“No terreno da literatura, o quinquênio de Juscelino Kubitschek viu chegar às livrarias obras imediatamente clássicas, como Grande Sertão: Veredas e Corpo de baile, de Guimarães Rosa, Laços de Família, de Clarice Lispector, O encontro marcado, de Fernando Sabino, Duas águas, de João Cabral de Melo Neto, e Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso.”

“O panorama literário enriqueceu-se, ainda, com o surgimento do concretismo e neoconcretismo, movimentos animados, entre outros, pelos poetas Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Ferreira Gullar, José Lino Grünewald e Reinaldo Jardim e divulgados nas páginas do influente Suplemento Dominical do Jornal do Brasil.”

“Os estudos brasileiros foram alimentados com o lançamento de ensaios semanais como Formação da literatura brasileira, de Antonio Candido, Visão do paraíso, de Sérgio Buarque de Holanda – também organizador da História geral da civilização brasileira –, Formação econômica do Brasil, de Celso Furtado, Os donos do poder, de Raymundo Faoro, e Ordem e Progresso, de Gilberto Freyre.”

O panorama  das artes
“O momento esplêndido que a arquitetura atravessava, sobretudo com a construção de Brasília, tinha uma contrapartida não menos fecunda no campo do design, em especial com os móveis concebidos por Sergio Rodrigues, o criador da internacionalmente conhecida e premiada Poltrona Mole.”

“No campo das artes plásticas, um passo importante foi a eclosão do movimento neoconcretismo, tentativa de encontrar uma expressão nacional para o projeto construtivista internacional, a partir de um manifesto assinado, em março de 1959, por Amílcar de Castro, Ferreira Gullar, Franz Weissmann, Lygia Clark, Lígia Pape e Reinaldo Jardim. O período foi marcado, ainda, por um adensamento da produção artística brasileira. É desse tempo, talvez, a melhor fase da pintura de Guignard. Artistas como Iberê Camargo, Sérgio Camargo, Alfredo Volpi e Mira Schendel entraram na posse de sua maturidade.”

O período de Jânio Quadros foi irrelevante para a cultura, ou seja, nada ocorreu que seja mencionável.
Quanto ao período Jango, a turbulência seria a tônica, e fez vítima. O início da década de 1960 indicava o fim dos “anos dourados”. A conta da construção de Brasília consorciada com a alteração dos fundamentos econômicos decretava o fim do ciclo da política da substituição das importações, que se arrastou de 1945 até o final de 1950. Os países da guerra recuperados pelo Plano Marshall e a pujança americana apresentavam uma nova divisão internacional do trabalho, em que o Brasil seria reduzido a um importador de manufaturas e exportador de matérias-primas e produtos agrícolas. Passo a relatar uma das consequências deste período ruim para o cenário brasileiro. A vítima mais emblemática da cultura paulista foi o Museu de Arte Moderna de São Paulo. Um dos que sofreram com a nova ordem da política econômica foi Ciccilo Matarazzo e seus negócios. Sua indústria, que era vinculada a embalagens metálicas, já sofria uma redução de rentabilidade desde meados dos anos 1950. Ciccilo era uma referência cultural, pois possuía em seu currículo a criação do MAM (1948), a Bienal de São Paulo (1951) e a participação em outras iniciativas culturais. Franco Zampari era amigo e associado de Ciccilo nas empresas e criou o Teatro Brasileiro de Comédia (1948) e a Companhia Vera Cruz de Cinema (1949). A crise nos negócios o obrigou a desistir da cooperação na Vera Cruz, que encerrou suas atividades em 1954. Ao mesmo tempo, o mecenas Ciccilo perdia fôlego ao administrar o MAM e a Bienal. Após várias tentativas sem êxito para passar para outros a função no Museu, decidiu doá-lo, na integralidade (nome, arquivos, mobiliário, acervo e funcionários) à Universidade de São Paulo. O destino do MAM foi selado a partir de conexões pessoais e não institucionais. O professor Ulhôa Cintra era o médico particular do casal Ciccilo e Yolanda e, na época destes acontecimentos, era reitor da USP, nomeado em 1960. Ele, com Matarazzo, define a forma da integração do MAM à USP. O que não contavam, é que o sucessor de Ulhôa não aceitou a integração do Museu. Interessava à Universidade e aos professores ligados às artes plásticas somente o acervo. Assim, ao final das contas, a USP se apropriou do acervo, não contratou os funcionários do Museu e devolveu os móveis e utensílios. Depois de uma longa reconstrução, o que restou do Museu abrigou-se definitivamente na marquise do Ibirapuera em plena ditadura militar (1968). O caso MAM é revelador da precariedade legal e funcional do setor público. O Estado não reconhecia as funções do Museu e não encontrava motivos para interferir nos seus destinos. Pode-se perceber o desprezo por uma entidade, apesar da sua importante funcionalidade e de seu acervo categorizado. O acervo, desde 1963, pertence ao Museu de Arte Contemporânea da USP, hoje localizado no maior edifício da América Latina, ocupando uma área de 33 mil metros quadrados, graças ao governo José Serra (2007 a 2010). O acervo está avaliado em mais de US$ 1 bilhão.

O Brasil da ditadura
O cenário cultural brasileiro viveu uma contradição importante. De um lado, a disposição do regime em investir em cultura nas suas diversas expressões ou temas e, de outro, desde que não o confrontasse. Implantou a censura nas mídias e nas expressões. Meios de comunicação foram censurados a partir da redação, as exibições de músicas e peças foram proibidas arbitrariamente. O regime sabia que para ser reconhecido e aceito precisaria investir em elementos culturais e assim o fez. Podemos dividir, sem a pretensão de esgotar o tema, que o regime definiu pelo menos três aspectos relevantes: 1) a tecnologia, 2) a implantação de um Conselho Federal de Cultura para definir ações culturais e 3) a implantação de uma empresa de filmes: Embrafilme.

No viés tecnológico, investiu na satelitização de sinais para a mídia televisiva por meio da Embratel. Valia a teoria da integração nacional. Essa alternativa propiciou que empresas, como a Globo, alterassem seu patamar de abrangência, passando de uma transmissora regional para uma rede nacional. Outro fator importante que determinou o crescimento exponencial da rede Globo foi uma conjugação de fatores, como: 1) a decadência da rede Tupi, pela ausência da liderança de Chateaubriand e 2) a má administração da rede Record. A programação da rede Globo começou a pautar o cenário de entretenimento brasileiro. As telenovelas, o jornalismo e suas comédias marcaram a vida da nação. O Brasil mudou a partir desta iniciativa. Para melhor.

Quanto ao Conselho Federal de Cultura, o regime indicou representantes de diversas áreas culturais para determinar ações que fossem representativas para satisfazer as diversas tendências das expressões culturais. A função desse Conselho era formular políticas de alocação de recursos para conquistar a simpatia dos intelectuais.

A terceira intervenção significativa foi a instalação de uma empresa voltada para produção e distribuição do cinema brasileiro: a Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilme), compondo a versão cultural do conjunto de “Embras” que o regime implantou para criar o Brasil dos nossos sonhos.

O que foi a Embrafilme?
A Embrafilme foi criada em 1967 para oferecer soluções a duas situações de má formação que, até hoje, não foram resolvidas: o financiamento da produção e a distribuição cinematográfica dos produtos nacionais. Quanto à produção, a alternativa foi a empresa adquirir cotas dos produtores, associando-se ao risco do empreendimento. Quanto à distribuição, a saída seria alterar um quadro de garroteamento exercido pelas grandes distribuidoras internacionais sobre os exibidores nacionais. Desde sempre esta situação de oligopólio prejudicava a produção nacional. Conseguiu um significativo avanço quanto a facilitar e promover a produção nacional, mas não obteve o mesmo sucesso quanto à distribuição. O poder de barganha das “majors” (como são conhecidas as empresas multinacionais da distribuição cinematográfica) não foi abalado pela Embrafilme.

A redemocratização – período Sarney
José Sarney era intelectual e surpreendeu o país quando criou dois fatos relevantes: 1) o Ministério da Cultura e 2) a lei de incentivo cultural via renúncia fiscal.
Não há registro sobre os fundamentos da Lei Sarney; acredito que se inspirou na lei americana da benemerência, criada em 1917, em que empresas e pessoas físicas poderiam deduzir do seu imposto de renda a pagar uma porcentagem para beneficiar entidades sem fins lucrativos dedicadas à educação, saúde, filantropia e cultura.

O presidente Sarney desde 1972 havia proposto, como congressista, uma lei de incentivo à cultura. Todas as vezes os projetos foram considerados inconstitucionais e arquivados. Sarney consegue aprovar a lei em 1986, depois de uma árdua batalha no Congresso que somente foi alcançada pelo esforço do ministro João Sayad, do Planejamento. A lei Sarney, número 7.505/86, foi promulgada em 2 de julho de 1986. Essa lei proporcionava três possibilidades para pessoas físicas e jurídicas aplicarem os recursos do seu imposto de renda a pagar conforme enquadramento da aplicação. O artigo 1º da lei expressa suas condições gerais:

Art. 1º. O contribuinte do imposto de renda poderá abater da renda bruta, ou deduzir com despesa operacional, o valor das doações, patrocínios e investimentos, inclusive despesas e contribuições necessárias à sua efetivação, realizada através ou a favor de pessoa jurídica de natureza cultural, com ou sem fins lucrativos, cadastrada no Ministério da Cultura, na forma desta Lei.

§ 1º Observado o limite máximo de 10% (dez por cento) da renda bruta, a pessoa física poderá abater:
I – até 100% (cem por cento) do valor da doação;
II – até 80% (oitenta por cento) do valor do patrocínio;
III – até 50% (cinquenta por cento) do valor do investimento.
§ 2º O abatimento previsto no § 1º deste artigo não está sujeito ao limite de 50% (cinquenta por cento) da renda bruta previsto na legislação do imposto de renda.
§ 3º A pessoa jurídica poderá deduzir do imposto devido valor equivalente à aplicação da alíquota cabível do imposto de renda, tendo como base de cálculo:
I – até 100% (cem por cento) do valor das doações;
II – até 80% (oitenta por cento) do valor do patrocínio;
III – até 50% (cinquenta por cento) do valor do investimento.
Para que uma entidade fosse beneficiária bastaria o seu cadastramento no ministério. A produção cultural floresceu por este mecanismo. Porém, o seu desvirtuamento, representado pela emissão de recibos sem a execução do correspondente produto cultural, custou a sua extinção no governo Collor, na esteira do conceito de moralização fiscal.

Era  Collor
Três primeiros atos do governo Collor atingiram a proa da área cultural: 1) o Ministério da Cultura foi rebaixado à Secretaria vinculada à presidência 2) Extinção da Lei Sarney e 3) Extinção da Embrafilme.
O governo Collor não colocou nada em seu lugar, de forma a reparar possíveis fragilidades da lei Sarney ou da Embrafilme. As consequências foram dramáticas para o setor. A câmara dos vereadores da cidade de São Paulo reagiu de imediato e aprovou a lei municipal de cultura. O mecanismo da lei era simples e inteligente. O município definia um valor para a renúncia, o proponente submetia o projeto a uma comissão e o investidor poderia deduzir em até 70% sobre 20% do valor devido da somatória do ISS e IPTU. A lei foi útil, gerou uma boa movimentação, porém não resolveu as consequências da medida federal.

Depois de quase dois anos, Collor foi obrigado a promulgar a Lei Rouanet, como substitutivo da lei Sarney. A lei foi promulgada em 23 de dezembro de 1991 sob o número 8.313. A lei tem corpos de ação, baseia-se na renúncia fiscal do IR e está vigente, até a data desta publicação. Quais corpos e características que se destacam e têm operacionalidade?

1) Programa Nacional de Cultura (Pronac), em que o proponente submete seu projeto ao ministério e, se aprovado, poderá captar recursos das pessoas físicas (4%) e jurídicas sob a condição de lucro real (6%) do IR a pagar.

2) Fundo Nacional de Cultura, administrado pelo MinC: recebe recursos orçamentários e sobras do Pronac e os distribui nas condições específicas do ministério e no atendimento das emendas dos parlamentares e suas bancadas. Os vínculos são por convênio.
3) Sobre o alcance dos benefícios para o investidor: poderia variar de 100% a 66%, na conformidade da função de doação ou patrocínio, respectivamente por parte do investidor ou do enquadramento definido pelo ministério ao projeto.

Com esta lei, a cultura recomeçou a circular como uma forma de participação conjunta entre empresas e Estado. Porém, o trabalho ficou mais árduo, porque os vínculos de confiança entre governo, sociedade civil e empresa foram abalados pelas abruptas medidas do início do governo Collor. Só bem mais tarde, já no governo FHC, o financiamento público de cultura volta a ser objeto de confiança por parte das empresas e toma um impulso importante na era PT. O governo Collor pode ser considerado o pior momento da função cultural, dado o desmonte orgânico e institucional. Ao mesmo tempo, articulou a lei de incentivo vigente.

A Era Itamar
Itamar reconstruiu a função cultural dentro do plano nacional, criando as seguintes ações: 1) Reconduziu a cultura ao status de ministério, 2) Criou a lei do audiovisual e 3) Iniciou a funcionalidade da Lei Rouanet.
A cadeia de negócios do cinema nacional conseguiu se articular e formulou junto às áreas de governo um sistema de financiamento próprio. Não se contentou com a Lei Rouanet. A lei do audiovisual criou um formato para que o investimento dedicado à produção de filmes alcançasse um patamar de retorno superior a 100%. De certa forma, criou uma fissura (nós e eles) e uma desproporcionalidade com as outras áreas de expressão.

A Era FHC
O governo FHC deu continuidade à proposta de financiamento público da produção cultural nos formatos das leis Rouanet e do Audiovisual. O que torna relevante este período foi a estabilidade funcional. Não ocorreram surpresas. O MinC se estruturou por unidades de expressões culturais (música, cinema, teatro, entre outras) conjugadas com a unidade de fomento que encaminhava os projetos para análise. Manteve a estrutura das fundações e autarquias coligadas. Foi uma gestão conservadora e disciplinada. A prioridade foi reintroduzir a confiabilidade no sistema de renúncia fiscal como núcleo do investimento público. Escolhida a alternativa central, o sistema foi conduzido com aplicação, apesar dos recursos escassos.

A Era atual  –  de Lula a Dilma
A partir da posse do governo Lula, a campanha contra a continuidade da Lei Rouanet passou a ser pauta do MinC. Foi criada uma agenda nacional para discussão da disfuncionalidade da Lei Rouanet. Os principais argumentos para alterá-la: 1) o governo não aparecia como o real investidor dos projetos. Diziam que o setor privado agia de forma mercadológica para angariar resultados a partir da iniciativa pública; 2) os projetos beneficiavam os produtores e artistas consagrados; 3) a região Sudeste monopolizava o uso do recurso em detrimento das outras regiões; e 4) a produção de livros de mesa sobre temas irrelevantes era uma prática considerada abusiva. O fato real é que as discussões sobre as leis de incentivo se alongaram por anos a fio, sem qualquer resultado prático. O que o governo do PT conseguiu foi dar continuidade ao que Collor, Itamar e FHC realizaram.

O trabalho mais importante do MinC, nesse período, foi ter montado um arcabouço de leis e instruções normativas que se apresentam com a pretensão de dar uma ordem ao campo cultural.

1) Levaram sete anos para encaminhar uma proposta ao Congresso para substituir a Lei Rouanet. Criaram o PL 6722/2010 denominado Procultura, que está sendo examinado pelo Congresso desde 2010. O projeto permanece há cinco anos em discussão, sem perspectiva de votação. No primeiro instante, transparece uma inoperância do MinC, mas é uma falsa impressão.

2) As instruções normativas sobre a Lei Rouanet foram revistas, interferindo na forma da aplicabilidade da lei e da prestação de contas dos projetos. Inibiram por normas os usos que consideravam impróprios. Criaram limites e dificuldades por meio de pareceres, interferindo nos processos dentro da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC).

3) Criaram em uma tacada: a) o estatuto dos museus pela lei nº 11.904, de 14 de janeiro de 2009, e b) o Instituto Brasileiro de Museus pela lei 11.906, de 20 de janeiro de 2009. As duas medidas geraram um cenário aparente de uniformização processual. Porém, não promoveram a eficácia esperada, além de, por um lado, desprezar a experiência exitosa do sistema paulista de museus e, por outro, criar um cipoal para os colecionadores. Nas palavras de Pedro Mastrobuono, que especialmente colaborou com este artigo:
“O Ministério da Cultura procurou passar a ideia de que houvesse apenas o desdobramento natural de um processo em curso, em que sua atuação limitar-se-ia a regulamentar duas leis de janeiro de 2009, de números 11.904 e 11.906, sendo certo que a primeira institui o denominado Estatuto dos Museus e a segunda cria o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram). Ocorre que o MinC produziu o Decreto 8.124, com o discurso de que estaria apenas regulamentando as duas leis citadas, quando, na realidade, extrapolava os limites estabelecidos, criando novos direitos e obrigações e indo flagrantemente em direção contrária a determinações das próprias leis que pretendia regulamentar… mais adiante…” Continua Mastrobuono: “Passemos, pois, a colocar nossos dedos nas feridas, uma a uma. A Lei 11.904, conhecida por Estatutos dos Museus, cria uma obrigação formal. Note-se que não se trata de uma faculdade ou de uma opção. Trata-se de um dever, qual seja: “Os museus facilitarão o acesso à imagem e à reprodução de seus bens culturais e documentos conforme os procedimentos estabelecidos na legislação vigente e nos regimentos internos de cada museu”. A simples leitura deste artigo 42 não deixa margem para quaisquer dúvidas. É dever dos museus facilitar o acesso à imagem e à reprodução de seus bens. E o que diz o Decreto 8.124 a esse respeito? Indo na contramão da expressa determinação legal, o decreto cria dois entraves. Isso mesmo: dois obstáculos que dificultam o acesso que deveria ser facilitado – entraves burocráticos e financeiros. Inicialmente, o decreto prevê autorização prévia dos museus para reprodução de bens de seus acervos. Cria-se, assim, um primeiro entrave, de natureza burocrática. Em seguida, o mesmo Decreto estabelece algo ainda mais grave. Prevê a possibilidade de os museus cobrarem por tais reproduções. Este segundo entrave, agora de natureza financeira, além de ser contrário ao estabelecido pela lei federal, fere também a Lei de Direitos Autorais em vigor, conhecida por LDA. É mister esclarecer que o denominado “direito de imagem” é um direito patrimonial exclusivo do autor, transmissível por sucessão aos seus familiares, com duração de 70 anos após seu falecimento”. Em outro ponto: “Há, ainda, os entraves de natureza constitucional, ainda mais graves, aduzidos a seguir. A Lei 11.904, como toda lei, prevê seu âmbito de aplicação. A simples leitura de seu artigo 6º não deixa margens para quaisquer dúvidas ou inquietações, estabelecendo formal e expressamente que tal diploma legal não é aplicável às coleções visitáveis. Define de modo muito claro, no parágrafo único do mesmo artigo, que as coleções “visitáveis” são conjuntos de bens culturais conservados por uma pessoa física ou jurídica, que sejam abertos à visitação, ainda que esporadicamente. Estes são seus exatos termos. A redação final desta lei, discutida e aprovada no Congresso Nacional, foi bastante cautelosa ao esclarecer que uma coleção privada, ainda que esporadicamente visitável, não pode ser confundida com a prestação de serviço de um museu ou entidade afim. E por que tamanha precaução de explicitar que a referida lei não se aplicaria a tais coleções? A resposta está na previsão do instituto da “declaração de interesse público” e seus desdobramentos. Antes de analisar os efeitos da declaração de interesse público, cumpre esclarecer que a Lei 11.904 limita sua aplicação, restringindo-a aos bens de propriedade dos museus, conforme estabelece seu artigo 5º, in verbis: “Os bens culturais dos museus, em suas diversas manifestações, podem ser declarados como de interesse público, no todo ou em parte”. No que concerne aos seus efeitos, diferentemente do quanto afirmam as autoridades públicas que respondem pelo Decreto 8.124, a declaração de interesse público estabelece, sim, flagrantes limitações ao exercício da propriedade. Não se pode, por exemplo, negar o fato de que o valor mercantil de qualquer bem esteja diretamente ligado à sua disponibilidade, à sua liquidez. Se uma obra privada vier a ser declarada de interesse público, sua comercialização dependerá de um processo administrativo prévio, para o qual não se pode precisar duração e resultado. Tal circunstância gera depreciação imediata.”

As colocações de Mastrobuono dão a dimensão do que está em vigência: altera-se a lei por decretos e normas.

4) Acredito que o elemento mais representativo da ideologia deste governo está representado pelo Plano Nacional de Cultura, lei 12.343, de 2 de dezembro de 2010, que estabelece no seu Capítulo I, entre outras finalidades, as seguintes: 1.1.4 Ampliar e desconcentrar os investimentos em produção, difusão e fruição cultural, visando ao equilíbrio entre as diversas fontes e à redução das disparidades regionais e desigualdades sociais, com prioridade para os perfis populacionais e identitários (está escrito desta forma) historicamente desconsiderados em termos de apoio, investimento e interesse comercial. 1.4.1. Estabelecer critérios transparentes para o financiamento público de atividades que fortaleçam a diversidade nacional, o bem-estar social e a integração de esforços pelo desenvolvimento sustentável e socialmente justo. 1.4.2. Articular os marcos regulatórios dos mecanismos de fomento e incentivo das esferas federal, estadual e municipal. 1.4.3. Aprimorar os instrumentos legais de forma a dar transparência e garantir o controle social dos processos de seleção e de prestação de contas de projetos incentivados com recursos públicos. 1.4.4. Ampliar e regulamentar as contrapartidas socioculturais, de desconcentração regional, de acesso, de apoio à produção independente e de pesquisa para o incentivo a projetos com recursos oriundos da renúncia fiscal. Capítulo II item 2.2.2. Formular e implementar planos setoriais nacionais de linguagens artísticas e expressões culturais, que incluam objetivos, metas e sistemas de acompanhamento, avaliação e controle social. (Grifei os itens que considero importantes para serem destacados no texto da lei).

Apesar de o texto da lei garantir que não haverá censura, palavras e termos como: “controle social, processo de transparência, promover equilíbrio entre as diversas fontes e à redução das disparidades regionais e desigualdades sociais, com prioridade para os perfis populacionais e identitários (está escrito desta forma) historicamente desconsiderados em termos de apoio, investimento e interesse comercial” nos transmitem outra intenção: a de que o governo federal poderá alterar ou não aprovar propostas que não lhe convêm. Quando o governo ameaçou praticar as mesmas condições às empresas e organizações informativas, de mídias, a gritaria foi de tal ordem que a proposta foi adiada sine die. Porém, para a cultura está vigente. Acreditamos que esta lei sintetiza o ânimo articulador/ intervencionista que não existiu em outros governos.

5)    A lei Nº 12.485, de 12 de setembro de 2011, que dispõe sobre a comunicação audiovisual de acesso condicionado, cria um conjunto complexo de obrigações para os canais de televisão paga. O que nos parece mais representativo e adequado foi a obrigação de os canais internacionais serem obrigados a transmitir pelo menos três horas semanais de conteúdo nacional.

6)    A lei Nº 13.018, de 22 de julho de 2014. Lei Cultura Viva. Resume o conjunto de ações para garantir as manifestações populares e contemporâneas.

7)    A lei Nº 13.019, de 31 de julho de 2014, atinge indiretamente as entidades vinculadas à cultura, pois dispõe sobre convênios da união com entidades sem fins lucrativos. A sua promulgação altera a forma de estabelecer a transferência de recursos da união para as ONGs.

Conclusão
As políticas públicas para a cultura começaram a ser articuladas no governo Vargas que, nos seus primeiros momentos, foi assistencialista e articulador. Quando passou a ser ditatorial, tornou-se intervencionista-regulador, chegando ao extremo de exercer censura. No período da ditadura militar repetiu-se o modelo.

No retorno à democracia, o ponto alto encontra-se no governo Sarney, que estabeleceu um organismo federal, o Ministério da Cultura, e uma lei de incentivo para promovê-la. Foi, portanto, um governo articulador.

O ponto mais baixo fica por conta de Collor, que não apenas diminuiu a representatividade da área como exauriu os seus recursos, apesar de ter instituído a mais longeva lei de incentivo do país.
Os períodos Itamar e FHC revitalizaram a área e deram funcionalidade à lei de incentivo. Foram períodos de articulação e fomento. Creio que seja um período articulador.

A era Lula-Dilma demonizou a lei de incentivo, que não foi alterada até o momento, quando escrevi este artigo. Porém, criou um conjunto legal de características intervencionistas para montar, de certa forma, uma versão moderna de assistencialismo. A principal crítica que faço ao atual governo é que este poderia aumentar os recursos orçamentários para sanar todas as mazelas das quais acusam a lei de incentivo e as desigualdades existentes. Ao que parece, no fundo, é que seria possível assumir a totalidade do controle dos recursos, se pudesse. Hoje, toleramos o atual sistema de compartilhar o processo cultural.

O artigo de Ivana Bentes, dirigente do MinC, publicado no número anterior desta revista, só confirma nossa preocupação. Ela propõe uma nova orquestração cultural, com o apoio do Estado, para iniciativas em rede e manifestações populares, além de colocar em xeque a atual compartimentalização da cultura. Não há novidade no discurso. No fundo, confirma o “bolsa cultura”, já em funcionamento desde o governo Lula. Este “novo” MinC parece ser mais do mesmo. Leiam a declaração do ministro Juca Ferreira  sobre a regulamentação da Lei Cultura Viva no dia 8 de abril 2015, no ato comemorativo da regulamentação da Lei na sede da Funarte em Brasília: “Esta legislação traz uma ferramenta muito importante, que é autodeclaração. Agora, qualquer manifestação cultural com mais de dois anos de atividade poderá se declarar Ponto de Cultura. Existem mais de 100 mil grupos culturais no Brasil, dos mais diversos segmentos, e o Estado tem obrigação de se relacionar com eles, de disponibilizar recursos para que esses grupos cresçam e aumentem seu raio de ação.”

Se isto não for um “bolsa cultura” e assistencialismo o que será?

Creio que todos os governos falharam quanto:
1) Ao tratamento de indigência orçamentária dispensado à área cultural;
2) À não articulação com a sociedade civil para administração compartilhada dos equipamentos públicos e corpos estáveis;
3) À criação de uma regulação abusiva com o propósito de atender aos desprovidos. Uma falsa hipótese, pois o regime orçamentário direto daria conta de reequilibrar o que quer que acreditem estar desequilibrado, desprovido e injustiçado;
4) À vinculação do incentivo à cultura por renúncia fiscal baseado no imposto de renda das empresas e pessoas, quando deveriam propor a renúncia para empresas nos impostos de consumo e não de resultados;
5) À não desvinculação do incentivo entre as empresas de entretenimento das organizações sem fins lucrativos; e
6) Por fim, ao não fomentar com vigor a área de formação.

Ronaldo Bianchi é diretor da Bianchi&Associados, conselheiro do Conselho Superior de Infraestrutura (Coinfra) da Fiesp e conselheiro da Revista Interesse Nacional. Foi diretor-executivo do Instituto Lina Bo Bardi, vice-presidente de Gestão da TV Cultura, secretário-adjunto da Cultura do Estado de São Paulo, vice-presidente do Itaú Cultural, superintendente-geral do Museu de Arte Moderna de São Paulo e gerente administrativo do Memorial da América Latina.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Cadastre-se para receber nossa Newsletter