Número 51

Ano 13 / Outubro - Dezembro 2020

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Ronaldo Bianchi é diretor da Bianchi&Associados, conselheiro do Conselho Superior de Infraestrutura (Coinfra) da Fiesp e conselheiro da Revista Interesse Nacional. Foi diretor-executivo do Instituto Lina Bo Bardi, vice-presidente de Gestão da TV Cultura, secretário-adjunto da Cultura do Estado de São Paulo, vice-presidente do Itaú Cultural, superintendente-geral do Museu de Arte Moderna de São Paulo e gerente administrativo do Memorial da América Latina.

Cultura no governo Bolsonaro: avaliação e ajustes

“…a cultura antecede e sustenta o conhecimento, orienta-o e confere-lhe uma funcionalidade precisa…”

Vargas Lhosa

A eleição de 2018 apresentou três prováveis finalistas para o segundo turno: Jair Bolsonaro, Fernando Haddad e Ciro Gomes. Examinando seus planos de governo, verificamos que o tema Cultura é encontrado com destaque nos planos do PT e PDT. No plano ‘Caminho para prosperidade’, do candidato vencedor, não há citação sobre Cultura [1]. Quando examinamos os 67 registros da Câmara dos Deputados, de 2016 a 2018 [2], não encontramos qualquer referência sobre o tema. Portanto, não surpreende o tratamento dispensado pelo presidente à Cultura. Vargas Lhosa, que está longe de ser um esquerdista, posiciona a Cultura como pilar do processo civilizatório. Bolsonaro despreza a matéria.
O desmonte
Após 18 meses de governo, o setor foi rebaixado de ministério para secretaria, abrigada em dois ministérios, e está no quarto dirigente. O desmonte se concretiza por alguns fatores. Destaco:
 

  1. A inépcia – Se o governo empreendesse uma ideologia de direita, haveria referências que sustentariam uma política pública. Mas, o governo não apresenta nada concatenado. Vivemos uma ausência ideológica, preenchida por atitudes que desaceleram a eficiência pública e prejudicam a produção cultural. Não há referencial ideológico. A gestão é pautada pela incapacidade de organizar uma relação do que fazer. O presidente e seu grupo elegeram como áreas de influência: as Relações Exteriores, o Meio Ambiente e a Educação. A Cultura, creio, é um substrato mal-acabado do que pensam sobre Educação. Veja artigo de Bolívar Lamounier (Estadão 26 jul. 2020) [3]. Além disso, o presidente não cita qualquer referencial teórico ou de melhores práticas como modelo público de gestão a seguir em seu governo. Ele ignora referenciais e não se acerca de ou não conhece quem poderia colaborar com eficácia. Portanto, o que podemos enxergar deste governo é um encontro do nada com o lugar nenhum. A inépcia confirma o desmonte.
  2. Agressões – O presidente, seus mais próximos seguidores e o influenciador oficial, o autodidata Olavo de Carvalho, atacam a reputação de artistas [4] e as funções da lei de incentivo, quando não ironizam as premiações internacionais de artistas e as produções nacionais.
  3. A liderança inapta – Os dirigentes indicados pelo presidente não reuniram as qualidades necessárias para um bom desempenho à altura da importância do cargo. Isso é comprovado pela alta rotatividade dos ocupantes: em 18 meses de governo, estamos no quarto candidato. Alguns dos presidentes anteriores escolheram pessoas que reuniam pelo menos experiência, representatividade política e contribuições para o serviço público. Entre eles, podemos citar: Celso Furtado, José Aparecido de Oliveira, Ipojuca Pontes, Jerônimo Moscardo e Francisco Weffort. Agora, o quarto, o ator Mario Frias. Cedo para avaliar, mas comparações são inevitáveis.
  4. A cultura não é estratégica – O governo não tem uma proposta, por mínima que seja. O presidente, quando candidato, não mencionou o tema Cultura em seu programa de governo. Nem quando deputado, nos últimos três anos que antecederam a sua eleição. Não faz saber suas propostas e o legado de seu governo. Não há referência ou rascunho sobre o que deveria ser ajustado para melhorar o desempenho do setor. Salvo quando um dos antigos secretários do cargo citou Joseph Goebbels: “arte brasileira da próxima década será heroica e imperativa”. Foi demitido pela pressão da opinião pública por associar o governo ao ideário nazista.
  5. A visão da categoria cultural como inimiga – Há dificuldade em separar o setor cultural dos desafetos do setor para com seu governo e vice-versa. O desprezo paralisa a possibilidade de ajustes que seriam necessários para organizar o setor dentro e fora do governo. Uma proposta mínima de política pública não foi elaborada.
  6. A inexplicável dificuldade em nomear uma equipe resolutiva – Não faltam nomes da direita, centro-direita ou de centro com qualificações para empreender uma razoável gestão. As nomeações foram baseadas em critérios discutíveis, como fama e amizades. O despreparo é o máximo divisor comum dos dirigentes indicados para liderar a Cultura deste governo. Não se faz boa gestão com gente despreparada.

A impressão que se destaca é o desprezo unido ao despreparo revelados na ausência de proposta, inépcia sobre nomeações, ausência de repertório e a má qualidade da governança cultural deste governo.
Linha do tempo: poder público e Cultura
Abordaremos aspectos estruturais e de financiamento público federal.

  • Era Vargas – O governo impulsiona o financiamento ao sancionar as leis: das organizações de Utilidade Pública – Lei nº 91, de 28 de agosto de 1935; e das Subvenções – Lei nº 115, de 13 de novembro de 1935. O período iniciou a política do clientelismo institucional. Articulou, ainda, duas iniciativas favoráveis: a criação do sistema S, 1942 – Lei nº 4.048, de 22 de janeiro de 1942. Em 1953, cria o ministério da Educação e Cultura (MEC), sucedendo o ministério dos Assuntos da Educação e Saúde Pública, lei n. ° 1.920, de 25 de julho de 1953.
  • Eurico Gaspar Dutra – Criou o mecanismo da renúncia fiscal, inseriu no regulamento do imposto de renda a dedução de qualquer contribuição para a entidade reconhecida como de utilidade pública – decreto lei nº 5.844, de 23 de setembro de 1943. Em 1946, cria o Sesi – Serviço Social da Indústria e o Sesc – Serviço Social do Comércio, para a promoção cultural e esportiva às categorias que abrigavam. Tornaram-se entidades poderosas com orçamentos que superaram a renúncia fiscal e o orçamento público federal da Cultura.
  • Juscelino Kubitschek, 1959 – O governo de JK amplia a capacidade de financiamento. A partir da lei nº 3.577, de 4 de julho de 1959, as entidades deixam de recolher a parte do empregador sobre as contribuições sociais do INSS.
  • Os militares, 1964 – Criaram a Embrafilme e abrigaram a Cinemateca Nacional para promover o cinema nacional e sua memória, Fundação Nacional de Artes (1975), Fundação Nacional Pró-Memória (1979).
  • José Sarney, 1985 – Criou o ministério da Cultura (Minc). Logo em seguida, sanciona a primeira lei de incentivo federal (Lei 7.505/86). Acreditava a Cultura como sendo formadora da nacionalidade. A lei não exigia prestação de contas das atividades e a sua aplicação era facilitada. Com isso, multiplicaram-se as oportunidades. O que facilitou, por outro lado, o seu uso para ações inescrupulosas.
  • Fernando Collor de Mello, 1990 – Extinguiu a lei Sarney por motivos certos de forma errada. A lei se transformara em objeto de planejamento tributário. Tomou a parte como um todo. Para reparar o estrago, Collor promulga a lei de incentivo – Lei Rouanet – Lei nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991, ainda vigente.
  • Fernando Henrique Cardoso, 1986 – Criou a Ancine em 2001, na esteira da criação das agências nacionais, e promoveu a Lei Rouanet. Nesse período, as empresas públicas lideraram as contribuições de financiamento. Participaram: Petrobras, BNDES, Correios, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, Infraero, Embraer, Embratel, entre outras. Essas empresas ofereceram impulso decisivo para a aplicabilidade do mecenato.
  • Período dos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff – Foi criado o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), retirando do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) as funções de gerência dos museus públicos, regulando as coleções e os museus privados. Foi promulgado o Plano Nacional de Cultura, que, por ser genérico, não atende à prioridade da função do Estado. Surge o financiamento autônomo para o Cinema nacional gerido pela Agência Nacional do Cinema (Ancine), por meio das contribuições obrigatórias das redes de TV a cabo e das taxas de exibição de filmes e propagandas.
  • Michel Temer – O ex-presidente extinguiu e recriou o Minc.
  • Jair Bolsonaro – O presidente extinguiu o Minc e o submeteu primeiramente ao ministério da Cidadania e, posteriormente, ao do Turismo. Nomeou até o momento quatro dirigentes em 18 meses de mandato.

Panorama setorial
Visto de longe, o setor cultural parece uma massa decifrável e homogênea. Não é. Ele é bem complexo e particularizado. Composto por linguagens, gêneros, identidades, interesses institucionais e empresariais diversos. Algumas situações convergentes e outras antagônicas. Constituído por funções específicas que, isoladamente, harmonizam o todo: formação, difusão, memória e patrimônio histórico.
O setor sofre de assimetria quanto à governança. Algumas áreas estão bem-postas, enquanto outras não alcançam uma representatividade qualificada. Faltam foco e preparo. Falta liderança para organizar e definir alvos de interesses e agir profissionalmente como qualquer outro setor econômico /produtivo. Outro fato relevante é o da imagem coletiva. O setor deveria trabalhar muito mais para ser percebido pela sociedade como força criativa, formadora e econômica. Quais são os pontos para serem superados? Apontamos alguns:
1. Aprimorar a governança de cada subsetor e o seu conjunto;
2. Criar uma política pública de Cultura que determine quais seriam os pontos de interesse do Estado para promover a cidadania e a ascensão social;
3. Reformular o atual formato de financiamento público do setor;
4. Estimular uma produtiva representação das categorias profissionais;
5. Dialogar, em vez de se opor. Encontrar interlocutores no Legislativo para fazer valer seus interesses.
Faço aqui uma ressalva. O setor de Cinema há muito tempo entendeu seu papel e definiu seus interesses, unificando o discurso. Não disputa verbas e distribui os recursos angariados pelo sistema de TV a cabo, exibições de filmes internacionais e outras fontes. O setor é atento às horas exclusivas para conteúdos nacionais, no montante arrecadado para o fundo setorial. Alcança foco, independência e governança.
Enquanto isto, os outros setores não consolidam formatos de interesse. Há razões que explicam, mas não justificam a dispersão. O esforço por ampliação de recursos e alteração do atual formato de financiamento público não é concatenado. Acrescente-se a isso o repúdio da categoria pela gestão atual, e o que se apresenta são manifestações catárticas. Os setores proporcionam luzes, mas não geram energia para alterar a situação. O modelo atual é mal operacionalizado e, de certa forma, precisa de reformas. Não atende à maioria dos agentes culturais. Como o modelo não é simétrico, atende a uma minoria organizada e impede o benefício isonômico para a maioria. Explicarei nas conclusões uma proposta para reparar assimetrias. A maioria dos setores não reúne liderança para definir quais esforços deveriam ser empreendidos para alcançar representatividade e estabelecer uma união de propósitos.

Para entender a complexidade do setor cultural, podemos enumerar as seguintes características:

  • A peculiaridade das expressões artísticas – Artes plásticas, cinema, circo, dança, literatura, música, memória, patrimônio histórico e teatro;
  • A diversidade das representações – Diversos elementos culturais, como gênero, etnias, raça e migrantes, entre outros;
  • As personalidades jurídicas dos agentes operadores:
  1. a – Artesãos, artistas e trabalhadores autônomos;
  1. b) Empresas individuais até corporações com ações em bolsa de valores;
  1. c) Cooperativas profissionais;
  1. d) Entidades sem fins lucrativos vinculadas a empresas e afortunados;
  1. e)Entidades sem fins lucrativos independentes;

    1. f Entidades paraestatais, como Sesi e Sesc, que atuam em paralelo ao Estado, recebendo recursos de renúncia pública;

  1. g) Entidades governamentais coligadas, como Cinemateca, Funarte, Ibram e Iphan, entre outras.

 Financiamento público
Ocorre na execução da lei federal O assunto lei federal é pacificado para as empresas que aportam as suas renúncias fiscais. A lei funciona. As empresas aportam o que podem e onde querem. É uma prerrogativa da lei. Atendem, em consequência, a minoria de agentes de produção e formação. O Fundo Nacional de Cultura, que deveria corrigir distorções, não é operante. Assim, fica de fora a maioria das empresas. Resta a essa massa compartilhar recursos por escassos editais públicos das esferas estaduais e municipais.
Emendas parlamentares
São articuladas a favor de algumas entidades, porém sob supervisão ou vinculadas aos estados e municípios.
Estes pontos formam um conjunto complexo e assimétrico quanto à distribuição de recurso e ao acesso a oportunidades. A maioria exerce precariamente suas funções.
Conclusões
Podemos concluir que ocorreram avanços nas eras Vargas, Sarney, FHC, Lula e Dilma, com a criação de estruturas e formatos de financiamentos. Porém, não houve definição de uma proposta de política pública. Temer paralisou a Cultura e Bolsonaro a está afundando.
O que melhorar e corrigir?

1. Nenhum dos governos estabeleceu uma política pública de Cultura com definição das áreas de interesse público. Portanto, há necessidade de se criar uma lei que defina o que é prioritário para o investimento público, distinguindo os aspectos institucionais dos econômicos.

2. Distorções e correção no texto da lei federal e aplicação em mecanismos existentes.

1. A. O mecenato tornou-se extremamente seletivo. As empresas privadas elegeram e estratificaram as suas aplicações em núcleos de interesse permanente. Esse processo tem impedido o acesso a recursos para a maior parte dos desprovidos de relacionamento ou de esfera de influência.

  1. B.
    O Fundo Nacional de Cultura está desativado. Ele serviria para regular as assimetrias quanto à distribuição de recursos geograficamente e por áreas de expressões. Verbas de orçamento são negadas e as de origens, contingenciadas. O FNC está morto. A sua correta aplicação ofereceria algum equilíbrio para financiamento público.
  1. C.
    Fundos de Investimento Cultural e Artístico (Ficart) não contêm interesse operacional.
  1. D.
    Reformar a lei para eliminar o capítulo do Ficart; introduzir a aplicação exclusiva de editais para as aplicações das renúncias empresariais; alterar a dedução do IR por outro imposto de consumo – desta forma, empresas de todos os setores poderiam participar, sem a condicionante do lucro –; e introduzir a obrigação orçamentária de dedicar igual valor da renúncia para o Fundo Nacional de Cultura.

3.
Avaliar se uma Agência Nacional de Cultura, espelho da Ancine, poderia financiar as áreas do entretenimento, vinculando a lei de incentivo à função de atender exclusivamente às entidades sem fins lucrativos e às expressões remanescentes.


Referências bibliográficas

1. Disponível em: https://www.justificando.com/2018/08/28/disponibilizamos-na-integra-o-plano-de- governo-do-seu-candidato-a-presidencia-da-republica/.

2. Disponível em: https://www.camara.leg.br/internet/sitaqweb/resultadoPesquisaDiscursos.asp?CurrentPage=30&txIndexacao=&BasePesq=plenario&txOrador=JAIR%20BOLSONARO&txPartido=&dtI.

3. Disponível em: https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,elegia-para-um-pais-a-deriva,70003326409.

4. Disponível em: https://diplomatique.org.br/primeiro-ano-de-governo-bolsonaro-e-marcado-por-ataques-a-cultura/;  https://veja.abril.com.br/blog/veja-gente/olavo-de-carvalho-tentaultima-cartada-para-processo-de-caetano-veloso/.



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